O que se critica ao Governo é que seja mais um departamento de propaganda do que um executivo nacional. Que tente enganar o país e fazer passar por suas medidas que herdou, legisladas e em execução: como foi o caso com a descida do IRS. Que não se importe de arriscar a credibilidade internacional do país por pura tática política: como foi o caso com a tentativa de denegrir o estado das finanças públicas, no que só recuou depois de desmentido pela Comissão Europeia. O que se critica ao Governo é a tomada de medidas que agravam as desigualdades em prejuízo dos que mais precisam, como é o caso da operação fiscal justificada como política para os jovens. O que se critica é a arrogância da incompetência, como tem sido demonstrado na área governativa da Saúde, com tantos casos que seria difícil ter aqui espaço para elencar todos. O que se critica ao Governo é que se esforce mais para parecer que governa do que para governar.
Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, tem de criticar-se o Governo por se esgotar na guerrilha política e mostrar completo alheamento face à responsabilidade, que é sua, de trabalhar pela estabilidade da governação que propõe ao país.
Se um governo minoritário, liderado por um primeiro-ministro cujo partido tem apenas uma bancada parlamentar da mesma dimensão da bancada do maior partido da oposição, claramente insuficiente para governar sozinho, aproveita o momento solene do debate parlamentar do estado da nação para atacar em puro “politiquês” o principal partido da oposição, mostra o nível da sua (fraca) ambição. Luís Montenegro não procura tempo e apoio para desenvolver políticas públicas que continuem o esforço de desenvolvimento do país, porque se o quisesse apresentaria ao Parlamento as suas ideias para construir as soluções que o permitissem. Luís Montenegro não procura construir convergências a partir da pluralidade, que é o esforço normal e necessário em democracias onde a representação popular é ela mesma plural – e até, cada vez mais, fragmentada –, continuando, ao contrário, num espírito de desforra que não pode ser bom conselheiro: como exibiu hoje, de novo, no parlamento, classificando como “usurpação” a constituição, em 2015, de uma maioria das esquerdas para interromper a governação “além da troika” (esquecido, talvez, daqueles que, no seu campo político, tinham já anteriormente teorizado a razoabilidade de explorar todos os mecanismos constitucionais para criar uma maioria política, mesmo contra a força que chegasse em primeiro lugar).
Se não se critica o Governo por não ter feito tudo em 100 dias, o mesmo tem de ser criticado por querer ser o Governo dos 300 dias. Quando o PS oferece disponibilidade para discutir, sem linhas vermelhas, as grandes opções contidas no orçamento de Estado, o Governo procura saturar a paciência dos socialistas com agressividade verbal e puro desdém. O Governo não quer ter condições para governar. O Governo quer, apenas, poder continuar em campanha eleitoral – e, para isso, procura umas eleições rápidas. Quem conduz politicamente este Governo quer repetir a tática do “deixem-nos trabalhar” e das “forças de bloqueio”, esquecendo que, passados todos estes anos depois da primeira volta dessa tática, a instabilidade política tem um preço exorbitante, que é a progressão do extremismo populista. A escolha da agressão constante ao maior partido da oposição, tentando que se torne para os socialistas insuportável negociar com quem assim se comporta, exibe uma má-fé política de quem, depois, proclama uma abertura retórica nunca concretizada para “consensos”.
A democracia não precisa de falsos consensos. A democracia não precisa de que estejamos todos de acordo; precisa que as forças democráticas sejam capazes de trabalhar por compromissos razoáveis e equilibrados, compromissos que não ignorem as diferenças políticas e não impliquem a renúncia aos valores fundamentais de cada um dos interlocutores. Pretender que, em democracia, a vontade do Governo prevalece “porque sim”, mesmo sem apoio maioritário, desconsiderando a representação cidadã que foi confiada também a outros partidos, é negar a própria democracia. Usar retoricamente a necessidade de compromissos e, depois, fazer tudo para afastar quem está disposto a discutir peças tão decisivas como o orçamento de Estado, é usar de má-fé. É preciso que o senhor primeiro-ministro compreenda que a má-fé no debate democrático vai contra a própria essência deliberativa da democracia – e vai de par com a sua tendência para desvalorizar o parlamento. A má-fé, a retórica do diálogo usada como mero ingrediente de uma estratégia de confrontação e rutura, com meros intuitos eleitoralistas, é deslealdade à própria democracia. Senhor Primeiro-Ministro, essa tática da má-fé prejudica a democracia – e a vida da democracia, estando difícil por todo o lado, bem dispensa que se ofereçam mais oportunidades aos que engordam na instabilidade e no clima de confrontação extremada.