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O governo teve de tomar decisões sem a informação total, não havia outra forma

O governo teve de tomar decisões sem a informação total, não havia outra forma

Alexandre Quintanilha, deputado pela segunda legislatura consecutiva na Assembleia da República, conta como foi convidado por António Costa para integrar as listas do PS nas legislativas de 2015.

Alexandre Quintanilha, deputado pela segunda legislatura consecutiva na Assembleia da República, conta como foi convidado por António Costa para integrar as listas do PS nas legislativas de 2015, faz a análise da gestão da pandemia, afirma que se deve investir até 2030 3% do PIB no conhecimento e sublinha que as soluções fáceis são sedutoras.

Luís Osório (LO) – O que o leva um homem como Alexandre Quintanilha, um cientista consensual, a aceitar um convite para ser deputado?

Alexandre Quintanilha (AQ) – Se calhar há duas respostas, a primeira foi a surpresa. António Costa convidou-me no Parque de Serralves e foi direto ao assunto…

LO – Direto ao assunto?

AQ – Direto ao assunto porque tinha chegado um bocadinho atrasado e sabia que sou esquisito com os tempos.

LOComeçou logo mal.

AQ – Não. Perguntou-me se estaria disponível e eu comecei a rir-me. Porquê, perguntei. Por ser importante ter alguém com o meu percurso no parlamento. Exclamei que não tinha nenhuma experiência de política e a resposta dele foi inteligente – é precisamente por isso que eu quero. Disse-lhe que tinha de pensar – tinha planos de fazer um curso de arquitetura.

Foto: José António Rodrigues

LOAlexandre Quintanilha é a prova de que o sangue que nos corre nas veias é misturado. A sua visão do mundo terá certamente a ver com isso.

AQ – Certamente que me influenciou. A minha mãe era alemã, cresceu em Berlim nos anos 20 quando era a capital do mundo, os anos antes da ascensão de Hitler. Era uma pessoa pragmática e achava que devíamos andar à procura de ser felizes. O meu pai era açoriano, um académico que na juventude foi anarco-sindicalista. Foi preso por ter feito campanha contra a entrada de Portugal na Primeira Guerra e depois na Segunda alistou-se como voluntário no exército francês por ter sido corrido em 1935 por Salazar.

LOTudo isso conta na conversa com Costa

AQ – Provavelmente.

LOHá um momento importante nesta sua passagem pelo parlamento. Em fevereiro, numa sessão que renovava o estado de emergência, falou aos deputados e durante muito tempo recebeu palmas da bancada do PS e do Bloco de Esquerda.

AQ – Falava da mentira, do medo, da maneira como a mentira é usada para controlar as pessoas. Quis transmitir um pouco que as fragilidades das democracias relacionam-se com a facilidade com que a mentira se propaga nos meios de comunicação. Há uma frase do Bertrand Russell que continua atual: o problema principal é que os ignorantes têm muitas certezas e os sábios muitas dúvidas.

Foto: José António Rodrigues

“Há uma frase do Bertrand Russell que continua atual: o problema principal é que os ignorantes têm muitas certezas e os sábios muitas dúvidas.“

LOA política é um território que tem tendência para abolir a dúvida.

AQ – E viu-se na pandemia. Houve imensa gente com necessidade de protagonismo quando ainda sabemos tão pouco. Nem se sabe onde começou, não se sabe quanto tempo é que ficamos protegidos depois da vacina, não se sabe se ficamos imunes depois de infetados, não se sabe das consequências das mutações.

LOO que é governar numa situação destas? E que balanço faz do trabalho feito pelo governo?

AQ – Um balanço muito positivo. Em todo o mundo estamos no mesmo ponto, aprender a fazer. É todo um mundo novo. E continuamos a aprender. Quais as pessoas prioritárias? Ainda não sabemos. Que liberdade podemos dar às pessoas? Quando as podemos libertar?

LOEstava tudo a correr tão bem até ao Natal…

AQ – Não diria que foi um erro a abertura no Natal. Estava tudo a correr tão bem que houve muita gente que achava que não era possível que corresse mal. Em política é problemático quando se passa a mensagem que está tudo controlado, as pessoas deixam de achar que há necessidade de ter cuidados. A forma como se governa tem de ser cuidadosa, dizer que tomamos esta posição, mas as pessoas têm de saber que podemos reverter as posições. Está a acontecer no mundo inteiro.

LOÉ uma nova forma de comunicar na política, isso seria impensável antes da pandemia.

AQ – Certamente. Aquilo que o governo fez, as reuniões no Infarmed, com as pessoas a apresentar o que sabiam e o que não sabiam. O governo teve de tomar decisões sem a informação total, não havia outra forma. Não é muito diferente da economia. A economia estuda-se olhando para o passado.

LOMuito difícil encontrar um economista que consiga antecipar o futuro.

AQ – Alguns dizem que sim, mas eu duvido. Há tantas variáveis. Mas voltando à pandemia, não nos esqueçamos que há 40 anos surgiu o HIV que matou e infetou mais pessoas do que o coronavírus… e repare que a ciência continua a não ter uma vacina para o HIV. Há tratamento, mas não há uma vacina. Termos conseguido em apenas um ano produzir uma vacina para a covid 19 é um dos acontecimentos mais importantes da história da ciência.

Foto: José António Rodrigues

“Infelizmente há muita gente a passar dificuldades e as respostas simples são muito sedutoras”

LONas reuniões do infarmed o país percebeu que existiam especialistas; cientistas e médicos, gente preparada, que pensava coisas diferentes sobre o combate à pandemia, diferentes e por vezes antagónicas.

AQ – Isso foi normal. Reuniram-se pessoas em domínios diferentes do conhecimento, gente com experiências diferentes. Natural que virologistas, enfermeiros, médicos de saúde pública, intensivistas tivessem visões diferentes. Olham para um problema e o centro do seu olhar parte do seu problema, do centro da sua preocupação. Achámos que o país já tinha a literacia suficiente para perceber isto, mas eu duvido. Fizemos um grande caminho, mas ainda não é suficiente.

LONota diferença no nosso país se o comparar aos dias em que chegou.

AQ – Foi já há 30 anos. Não há comparação. Quando cheguei ao Porto a cidade era pequenina e hoje em dia já abriu imenso, não tem comparação nenhuma. Os alunos que vinham falar comigo e faziam as perguntas mais fora da caixa possível, não tem nada a ver.

LONo discurso de fevereiro, falou da importância da literacia contra o obscurantismo e o medo.

AQ – Deixe-me voltar um bocadinho atrás. Das várias ameaças com que nos confrontamos as alterações climáticas são provavelmente o maior desafio que temos à nossa frente. Já sabemos isso há 63 anos, altura em que se começou a medir os níveis de CO2 na atmosfera e desde aí que fazemos previsões do que nos irá acontecer. Há gente que o nega, como aquele senhor com cabelo cor de laranja que saiu da Casa Branca. Voltando ao obscurantismo, tenho a sensação de que as explicações mais fáceis são muito apelativas. Dizer que o crime está associado aos refugiados, aos drogados, é apelar ao medo. Dizer que tudo o que é diferente é perigoso é uma mensagem que passa com muita facilidade.

LOE como há muita gente a passar dificuldades.

AQ – Infelizmente há muita gente a passar dificuldades e as respostas simples são muito sedutoras. Porque se há alguém com um certo carisma que diz que isto é o resultado daquilo… Depois os meios de comunicação gostam muito da confrontação, precisam até para vender mais um bocadinho. A literacia em Portugal é mediana, mas há 40 anos era um desastre. Mudámos imenso na literacia, mas precisamos de mudar mais. É sempre um trabalho inacabado. Temos de fazer perguntas, dar respostas e testar as respostas e algumas são muito difíceis de testar.

Foto: José António Rodrigues

“Penso que esta pandemia veio mostrar que estamos numa posição extremamente frágil. E não é só económica, é psicológica e emocional.”

LOEstamos todo a viver esta situação há mais de um ano, acumula-se stress, o consumo de antidepressivos aumentou exponencialmente.

AQ – Tudo isso. Existe nas sociedades modernas a ideia de que o nosso objetivo principal é ser feliz. E quando não se está feliz parece existir qualquer coisa que está mal. Penso que esta pandemia veio mostrar que estamos numa posição extremamente frágil. E não é só económica, é psicológica e emocional. Há muita gente que está a aprender muito com esta pandemia, também suspeito que muita gente não está a aprender nada. É com a ficção, as pessoas olham para a vida de uma maneira diferente.  

LOO tema das alterações climáticas tem-no acompanhado ao longo da sua vida – em Berkeley liderou um gabinete de investigação quando ainda não se falava do tema em Portugal.

AQ – É um tema central. Repare, se parássemos toda a indústria, mesmo assim, não sei se conseguiríamos cumprir as metas.

“De todas as espécies que já viveram no planeta, 99, 9 por cento já desapareceram. Não vejo razão para que não nos aconteça a nós.”

LOTemos futuro?

AQ – De todas as espécies que já viveram no planeta, 99, 9 por cento já desapareceram. Não vejo razão para que não nos aconteça a nós, mas acredito que iremos conseguir evoluir e ganhar tempo.

LOEste é um tempo de aceleração.

AQ – Fala-se muito da ciência dos dados e tenho muito medo da aceleração. O que eu construí levou muito tempo a construir, a pensar. E os dados não são a mesma coisa pois têm de ser trabalhados para passarem a ser informação, a informação tem de ser trabalhada para ser conhecimento e o conhecimento, se tivermos sorte, ainda pode chegar a ser sabedoria.

LONunca pensou ser ministro?

AQ – Não, de todo.

LOE se António Costa o convidasse para um café em Serralves?

AQ – Já não tenho energia para isso. Um ministro ou uma ministra tem de lidar com muitas coisas que eu já não tinha paciência para lidar. A visibilidade constante, a pessoa estar constantemente a dialogar com tudo e com todos… sei que é um bocadinho snob, mas não tenho muita paciência.

LOSentiu nas ruas, enquanto deputado, alguma mudança?

AQ – Senti, tenho várias histórias. Um senhor no autocarro que exclamou muito alto um “ah, afinal os deputados também andam de transportes públicos!”. Achei uma delícia. E noutro momento, nas Caxinas, com o António Costa ao lado, uma senhora com uns 80 anos uma expressão de felicidade enorme, uma cara cheia de luz, com rugas e muito poucos dentes, agarrou-se a mim e só me dizia “temos que correr com eles, temos que correr com eles”. Uma cara lindíssima a da senhora, inesquecível.

Foto: José António Rodrigues

“Até 2030 temos de investir 3% do PIB no conhecimento. Mas o conhecimento para mim não é apenas a ciência, algumas das inovações mais interessantes são também sociais.”

LONos próximos anos, antecipando o que serão os combates eleitorais, que o PS precisa de uns novos Estados Gerais que mobilizem a comunidade científica?

AQ – É um trabalho inacabado. Até 2030 temos de investir três por cento do PIB no conhecimento. Mas o conhecimento para mim não é apenas a ciência, algumas das inovações mais interessantes são também sociais – a ideia do género, a revolução nas famílias, o fim da escravatura. Estou farto de rótulos de toda a gente – eu sou de origem europeia, sou português, americano, gay. Gostava de viver numa sociedade pós isso tudo, uma sociedade em que não tivesse de confirmar se sou isto ou aquilo. 

LOOiço a sua pronúncia e tenho curiosidade de saber em que língua pensa?

AQ – Passei mais de 30 anos no mundo anglo saxónico, primeira na África do Sul e depois nos Estados Unidos. Quando escrevo tenho mais facilidade de escrever em inglês, sim.

LOQuando esta legislatura terminar pensa continuar no parlamento ou vai inscrever-se na faculdade de arquitetura?

AQ – Não sei. Vai depender muito de como me sentir. Vou fazer 76 anos e irá depender disso. A lei de bases do clima é essencial e se for assim talvez pondere, se for caso disso.

LOCom os aplausos que teve da bancada do BE, se o PS precisar de uma ova geringonça terá de contar consigo.

AQ – Até recebi alguns telefonemas de deputados do Partido Comunista a explicar que não bateram palmas porque iam votar contra a seguir.