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Entrevista a Ana Matos Pires

Entrevista a Ana Matos Pires

A situação excepcional que vivemos, obrigando ao confinamento e isolamento social, veio trazer, inevitavelmente, uma alteração profunda de hábitos e rotinas, pessoais e profissionais, do preenchimento do espaço familiar, assim como um conjunto diverso de receios ou incertezas, nomeadamente no que respeita à saúde e ao emprego.
Entrevista a Ana Matos Pires

Para compreender que impactos é que esta nova realidade está a empreender na sociedade, também ao nível da saúde mental dos portugueses, assim como das respostas do serviço público nesta área, o Ação Socialista Digital falou com Ana Matos Pires, coordenadora regional da Saúde Mental da ARS Alentejo e assessora do Programa Nacional para a Saúde Mental.

Como é que a Saúde Mental, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde (SNS), está a responder a esta realidade nova ?

Esta situação, completamente nova e imprevisível, obrigou a uma resposta do SNS e a Saúde Mental não foi exceção. Em todas as Administrações Regionais de Saúde [são cinco no país, Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve] existe um Coordenador Regional da Saúde Mental.

Na sequência dos incêndios de 2017, foi publicado, pelo gabinete do secretário de Estado Adjunto e da Saúde, o Despacho 7059/2018 que “determina o modelo de respostas de saúde mental no Serviço Nacional de Saúde e no âmbito do Sistema Integrado de Emergência Médica a implementar em caso de acidente grave ou catástrofe”.

O despacho resultou das indicações do Programa Nacional para a Saúde Mental (PNSM), um dos programas prioritários da DGS. Foi este modelo, com as adaptações necessárias a uma realidade que ninguém, em nenhuma parte do mundo, tinha previsto que serviu de base para a resposta que está no terreno. Os Coordenadores Regionais ativaram o Despacho nas suas áreas de abrangência e os Serviços Locais de Saúde Mental do SNS iniciaram, há já 3 semanas, a sua aplicação no terreno, em estreita colaboração, como previsto, com os CSP.

Para além da disseminação da formação em primeiros cuidados psicológicos, através de um modelo validado pela OMS e pelo PNSM – em muitos locais realizado a diferentes estruturas, nomeadamente autarquias, para além das estruturas de saúde – está implementada nas diferentes instituições do SNS uma resposta de apoio aos profissionais de saúde.

As respostas de proximidade são o objetivo de um SNS que se quer equitativo e justo. É esse o propósito do que já está no terreno e que se vai continuar a desenvolver, de modo articulado e generalizado a todo país.

A ministra da Saúde dedicou, também, atenção pública a esta questão, tendo sido anunciado um reforço de respostas. Como se processa no terreno e como podem as pessoas recorrer a esse apoio?

Vou usar uma explicação que já deixei no ‘Saúde Mental em Tempos de Pandemia’, um blogue criado por um grupo de psiquiatras e internos de psiquiatria, criado para reunir informação sobre Saúde Mental. Em cada Serviço Local de Saúde Mental e nos dois hospitais psiquiátricos do país existe um Núcleo Local de Resposta, constituído por um médico psiquiatra, um psicólogo, um enfermeiro especialista em saúde mental e um assistente social.

Em cada Agrupamento de Centros de Saúde (ACeS) existe um Núcleo Local de Resposta dos CSP, constituído pelo diretor executivo, presidente do Conselho Clínico e de Saúde, delegado de saúde, um médico de medicina geral e familiar, um psicólogo, um enfermeiro e um assistente social.

Todas as pessoas que integram os Núcleos Locais, nos CSP e nos SLSM, fizeram uma formação em primeiros cuidados psicológicos, posteriormente replicada a profissionais dos diferentes centros de saúde que constituem o ACeS. Em alguns sítios esta formação também foi feita a pontos focais de estruturas da comunidade, nomeadamente autarquias.A formação obedeceu a um modelo bem determinado e validado pela Organização Mundial de Saúde e pelo Programa Nacional para a Saúde Mental, adaptado à atual situação.

Deixo um exemplo prático. Estou em casa e sinto-me muito ansiosa ou angustiada, por exemplo, ou percebo que um familiar não está bem. Devo ligar para o meu centro de saúde a explicar a situação e um técnico de saúde, com formação na área, ouve-me e fala comigo. Feita a avaliação da situação, o profissional dos CSP ajuda-me e a situação fica resolvida, ou determina que eu preciso ser avaliada pelo SLSM e, nesse caso, pede-me um contacto e informa-me que irei ser contactada por um psicólogo ou psiquiatra do SLSM. O telefone toca e eu atendo o profissional de saúde mental, que faz a avaliação da situação e determina que, ou o caso ficou resolvido e despede-se de mim, ou que devo ser encaminhada para uma consulta de psicologia, ou que devo ser encaminhada para uma consulta de psiquiatria, ou, ainda, que devo ser encaminhada para a urgência psiquiátrica. Se fui encaminhada para uma consulta de psicologia ou de psiquiatria, sou informada do dia e da hora em que serei, de novo, contactada por um psicólogo ou um psiquiatra do SLSM. Se fui encaminhada para a urgência devo deslocar-me presencialmente à urgência psiquiátrica do meu hospital de referência.

Se se tratar de uma criança o percurso é o mesmo e a resposta, no SLSM, é dada por um profissional com formação específica para crianças e adolescentes – psicólogo ou médico de psiquiatria da infância e da adolescência.

Foi recentemente criado um site do Programa Nacional para a Saúde Mental da DGS? Porque decidiram fazê-lo?

Agradeço essa pergunta. Antes de mais quero dizer publicamente que sem os esforços, a articulação e o intenso trabalho dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e da DGS e, sobretudo, sem o envolvimento pessoal e institucional da Sra. Ministra da Saúde, este site do Programa Nacional para a Saúde Mental não seria uma realidade.

Respondendo à questão, vou dizer o que já referi em vários locais. Porque a literacia em Saúde Mental é muito baixa, porque a Saúde Mental – sobretudo os doentes mentais – são tantas vezes esquecidos, porque os doentes mentais graves são uma população de risco para a COVID-19 e porque informar e estar informado é fundamental. Para além disso, e relembrando o lema da OMS para a Saúde Mental, ‘Não há Saúde sem Saúde Mental’, o Programa Nacional para a Saúde Mental tem como obrigação informar a população sobre o que está a acontecer na Saúde Mental no SNS e desenvolver e promover instrumentos de comunicação com a comunidade. Não existia nada.

Do testemunho da sua experiência profissional, quais as preocupações que mais se evidenciam em quem procura ajuda?

São, sobretudo, situações relacionadas com estados de ansiedade e reações de adaptação com sintomas depressivos, como esperávamos. Importa, também, não esquecer as pessoas que já tinham doença mental prévia e que estão, neste momento, mais vulneráveis ainda. Os doentes mentais graves são um dos grupo de risco para a COVID-19, por características próprias da doença de base, e necessitam uma atenção especial. Foi a pensar nisso que surgiu, no final da semana, a Norma 11/2020 da DGS, especificamente direcionada à Saúde Mental e aos doentes mentais.

O diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental já reconheceu, numa recente intervenção pública, um aumento do número de pedidos de ajuda. É possível quantificar? Estaremos perante uma dimensão preocupante?

Não tenho números neste momento, mas, mais do que preocupante, são situações que nos obrigam a estar atentos e a ter resposta. Ter saúde mental é mais do que não ter doença mental, e isso é algo que todos nós, profissionais da saúde mental, sabemos bem e temos sempre em mente quando pensamos nas respostas que o SNS tem de dar. Miguel Xavier referiu e explicou muito bem o que refiro, no último domingo, na conferência de imprensa diária onde esteve presente.

Por outro lado, e é também uma preocupação do Programa Nacional para a Saúde Mental e dos organismos da tutela – Ministério da Saúde e DGS -, tão importante como esta fase aguda é a que aí virá, a médio e longo prazo, resultante das consequências disto tudo, nomeadamente a nível social.

Uma outra dimensão que também tem sido referida, diz respeito aos profissionais de saúde, que, no contexto atual, estão na primeira linha de resposta, naturalmente sujeitos a uma enorme pressão, também familiar, pelo dever e necessidade de isolamento. Esta pode ser caracterizada, também a este nível, como uma situação de exceção? Que apoios específicos existem?

Sem dúvida, e isso está também previsto no modelo de intervenção da Saúde Mental no SNS que referi anteriormente. Todos os Serviços de Saúde Mental do país têm uma linha específica de apoio aos profissionais de saúde, a todos e a todas, da sua instituição. Para além disso, a Linha de Apoio Psicológico do SNS 24, constituída por psicólogos clínicos e da saúde, também integra essa possibilidade na sua resposta mais geral. A linha ‘Cuidar de quem Cuida’, criada por psiquiatras da Universidade do Minho há mais de um mês, é outra alternativa, neste caso especificamente dirigida aos profissionais de Saúde.

O ASD agradece a José Ferrolho e ao Diário do Alentejo” a cedência da fotografia da entrevistada.