“Futura política de segurança vai colocar o Poder Local como produtor de segurança“
Este mês ficou a conhecer-se os números da criminalidade do ano de 2022. Isabel Oneto, secretária de Estado da Administração Interna, identifica as áreas – delinquência juvenil e severidade dos crimes – onde o Governo está a preparar medidas. E que se enquadram na reforma que se está a preparar na Administração Interna: a Estratégia Integrada de Segurança Urbana. O objetivo é evitar que o crime aconteça. Como? Aprofundando as parcerias, entre serviços públicos, e promovendo a proximidade com o poder local. A Secretária de Estado tem percorrido o país em reuniões para apresentar as mudanças que quer implementar nas cidades portuguesas.
Nuno Sá Lourenço: Bom dia e bem-vindos a mais uma edição do podcast Política com Palavra. Esta semana temos connosco Isabel Oneto. A Secretária de Estado da Administração Interna tem percorrido o país a apresentar a Estratégia Integrada de Segurança Urbana, na mesma altura em que se tornaram públicos os números do Relatório Anual de Segurança Interna 2022. Isabel Oneto, muito obrigado por ter aceitado o nosso convite. O relatório assinala o aumento da criminalidade numa série de indicadores. O documento apresenta algumas razões para esse aumento?
Isabel Oneto: Bom dia. Temos que olhar para os números, situá-los e compreender a sua evolução. Nós vivemos num período pandémico entre 2020 e 2021, em que o confinamento acabou por reduzir muito a atividade de toda a gente e, consequentemente, isso refletiu-se nos dados de criminalidade. E o que nós vemos agora é um aumento, uma ligação entre 2021 e 2019. Porque em relação a 2020 e 2021, naturalmente que existe um aumento, como aumenta a sinistralidade rodoviária, como se desenvolve a própria economia, como aumenta um conjunto de outros indicadores. Perante esses números, nós continuamos a registar um ligeiro decréscimo. E isso é significativo no sentido em que continuamos a ser um país pacífico, um país seguro. Ainda assim existem alguns indicadores que, não sendo comparável a outros países com tendências muito expressivas, nos leva, obviamente, a tomar medidas. Porque, por exemplo, no campo da delinquência juvenil, necessariamente tem de ser feita alguma coisa enquanto houver delinquência juvenil. Qualquer que seja a expressão em termos de criminalidade, é uma realidade à qual o governo estará sempre atento.
NSL: E quais são essas áreas em que o Governo decidiu que tem que agir?
IO: Há várias áreas que merecem a nossa atenção. Por exemplo, também fruto do desconfinamento e da identificação e regulação de determinadas rotas de tráfico, nota-se em todos os Estados-Membros da União Europeia um aumento do consumo e, portanto, o aumento do tráfico de estupefacientes. É uma realidade no nosso país e é também uma realidade noutros Estados-Membros. Há também, talvez fruto de uma maior intolerância por parte das pessoas, cansaço, identificado como efeito da pandemia, que decore numa maior agressividade na violência. Tudo isto resulta numa maior severidade dos índices de violência, identificado um maior recurso a armas brancas e armas de fogo. A criminalidade pode não aumentar, mas a severidade é maior, isso também nos leva a tentar perceber quais são as causas dessa situação.
NSL: Acha que isso tem que ver com a própria pandemia e o confinamento?
IO: Nós, no âmbito da Comissão para a Análise Integrada da Delinquência Juvenil e Criminalidade Grave, temos tentado compreender os fenómenos. Compreender, nomeadamente, porque é que na delinquência juvenil ocorrem este tipo de situações. Consultamos os estudos de entidades e também de investigadores, como a Doutora Maria João Aguiar de Carvalho, acerca da saúde mental, mas também os serviços de reinserção e serviços prisionais têm feito um excelente trabalho nesta área, assim como a Comissão de Proteção das Crianças. Enfim, temos procurado, com os membros da Comissão, e ouvindo mais de uma centena de pessoas e de investigadores - em áreas de intervenção, seja social, seja de saúde – concluímos que tem vindo a verificar que 3/4 das crianças, dos jovens, que foram sujeitos a medidas tutelares educativas, foram eles próprias vítimas de negligência, maus-tratos ou abandono. São agressores que foram vítimas. E, portanto, é essencial olhar para essas situações e perceber que aquela criança está a ser vítima de negligência. Isso tem um grande impacto nos menores e leva a situações de negligência ou de maus-tratos que depois se reproduz mais tarde. Portanto, todos esses casos têm de ser acompanhados, têm de ter um outro olhar. Por exemplo, o Doutor João Redondo, coordenador da saúde mental, deixou claro que uma mulher vítima de violência doméstica, enquanto está grávida, pode resultar em consequências para o posterior desenvolvimento da criança. Neste tipo de casos, a criança quando nasce tem de imediatamente ser acompanhada porque pode ter repercussões relacionadas com aquilo que a mãe viveu durante a gravidez.
NSL: E assim sendo, que tipo de medidas é que se podem…
IO: Temos de pôr em contacto, em rede as várias entidades.
Fotografias: José António Rodrigues / PS
Há uma tendência para dizer que são as polícias que identificam as crianças em risco. E nós dizemos: Não, quando as polícias reparam, já a criança passou por muitas outras entidades que podiam ter sinalizado. Portanto, nós temos de pôr em rede a saúde, a escola, a segurança social, enfim, o conjunto de entidades que podem intervir antecipadamente e dar o alerta.
Obviamente que as polícias, no âmbito da Escola Segura, têm feito um trabalho excecional a esse nível de acompanhamento dos jovens. Conhecem-nos, sabem o rendimento escolar, sabem onde vivem, sabem com quem se dão e fazem esse acompanhamento. Mas é preciso que a coordenação entre as várias entidades seja reforçada e isso é fundamental para nós podermos antecipar. Até porque os estudos também dizem que cada vez mais temos de antecipar a prevenção. O paradigma mudou, antes falávamos da prevenção em crianças de oito, nove, dez anos. Agora já falamos em prevenção de crianças de cinco e seis anos.
NSL: Sim, mas em que é que se reflete, na prática, essa coordenação e a inclusão de outras entidades públicas no sistema de alerta para este tipo de casos?
IO: Muitas vezes há situações em que há pais que não têm adequadas as suas responsabilidades parentais, e há uma negligência de que eles não se apercebem. Nestes casos, é preciso intervir, chamar a atenção. Estas situações levam a que a criança, depois, não tendo uma estrutura familiar consolidada, acabe por, no grupo do bairro, identificar-se com os valores do grupo e, portanto, ter uma ligação ao gangue da sua zona de residência e não tendo outras referências sociais, nem familiares, que lhe permitam fazer um outro percurso de vida. Há outras situações que nós também temos de ir identificando, de que forma as crianças e jovens podem fazer o seu percurso normal. Nós tendemos a negligenciar determinado tipo de comportamentos, dizemos que é da idade. Certo, pode ser da idade, mas é preciso acompanhar, é preciso estar atento, e ver se aquele comportamento se repete ou não ao longo do tempo. Um dos exemplos mais chocantes que eu ouvi no âmbito da comissão foi o relato de uma criança de quatro anos a perguntar à educadora “Tens um colar muito bonito. Onde é que o roubaste?” A expressão roubar para aquela criança, a naturalidade com que ela faz a pergunta, leva-nos a questionar em que ambiente é que a criança vive. Quando nós falamos em ambiente, temos realidades que exigem uma alteração do paradigma. E eu dou um exemplo: todos os fins de semana há jogos de crianças, jogos não profissionais. A maior parte das vezes em que é solicitada a intervenção das forças de segurança, é porque o jogo não consegue começar e terminar sem que um pai ou uma mãe se atirem para o relvado para bater no árbitro. Porque não gostaram da sinalização da falta, porque não gostaram que o treinador pusesse o filho em determinada posição, ou porque o filho naquele jogo não joga, está no banco. Quando um pai ou uma mãe que, à frente do filho, agride um árbitro, agride um professor, é porque algo vai mal nos valores que aquela família está a transmitir àquela criança. Isso não pode ser tolerado. O Ministério da Administração Interna paga quase 2 milhões € por ano para manter estes jogos controlados. E eu pergunto: então nós não devemos criar um ambiente em que as crianças vão jogar e não precisam de polícia? O que nós estamos a transmitir às crianças é que elas só podem jogar se a polícia estiver no campo e, portanto, é a lei do mais forte que vinga. Temos que alterar este paradigma, ou seja, os pais que têm este tipo de comportamento têm necessariamente de ser afastados da assistência e proibidos de entrar no estádio.
E se se repetir a situação e o próprio clube não tomar posição relativamente a essas situações, há jogo à porta fechada ou não há jogo. As pessoas têm de adaptar o seu comportamento às circunstâncias.
Senão amanhã estas crianças estão nas claques e em vez de estarem de um ponto de vista saudável da convivência no desporto, têm o ambiente inverso: é aqui que nós expressamos a nossa agressividade. Tudo isto tem de ser analisado porque se repercute depois, mais tarde, ao nível das questões de segurança.
NSL: Nesse outro ponto que falou sobre as áreas em que o Governo sente que tem que dar uma resposta, a severidade dos crimes, o que é que se pode fazer aí?
IO: O Governo tem vindo a alterar sucessivamente a lei das armas, no sentido de haver menos armas disponíveis ao cidadão. Em 2019, foi feita a alteração desta lei para, precisamente, limitar o número de armas por caçador, por exemplo. Algumas questões prementes que têm sido abordadas. São as licença de detenção de armas num período de dez anos, mas também evitar que as pessoas tenham armas em casa porque as herdaram. Adicionalmente, também aumentámos substancialmente o número de fiscalizações preventivas de armas, sejam elas armas de fogo ou armas brancas. Em suma, estamos a tomar medidas no sentido de cada vez mais limitar o acesso às armas de fogo. É também importante fazer a ressalva de que houve uma mudança de comportamento decorrente da pandemia. Tivemos um pico da delinquência juvenil e dos gangues nos finais de 2021, princípios de 2022, até ao primeiro semestre e depois começou a baixar e a estabilizar. Os relatórios da própria Polícia Judiciária indicam-nos que houve um decréscimo acentuado e uma estabilização. Há um outro aspeto extremamente importante que também tem sido bastante evidenciado: a questão do uso do digital. Nós temos de perceber a forma como o digital está a alterar as nossas vidas. O digital não é bom nem mau, depende da forma como se usa. E no caso dos nossos jovens, nós reparamos que eles vão para a escola de manhã, saem da escola e, ao contrário do que acontecia na geração anterior, em que a pessoa entrava num outro círculo de amizade, noutro círculo social ou no seu círculo familiar, agora quando saem da escola, continuam ligados através das redes sociais. Estão permanentemente em contacto, e através da internet, através do digital, vão criando várias entidades digitais. Há estudos que revelam que crianças que têm famílias estruturadas, alunos que faziam parte do quadro de honra, nunca teriam cometido um crime na vida se não fosse a sua adesão a redes sociais que acabaram por conduzir a comportamentos desviantes.
NSL: Então como é que se enfrenta isso, monitorização?
IO: Exatamente, tem de haver uma maior monitorização. Neste momento, o grupo coordenador do Programa Escola Segura está a fazer a campanha “Menos Vida Virtual, Mais Vida Real” para chamar a atenção das escolas e dos encarregados de educação de que é preciso monitorizar. As nossas crianças e os nossos jovens não podem estar tanto tempo online nas redes sociais. Até porque é pelas redes sociais que grande parte do discurso do ódio e da radicalização é feito, portanto, temos de olhar para essa realidade. O digital está a mudar as nossas vidas e nós temos que perceber os efeitos que daí advêm para tomar medidas relativamente a essas situações.
NSL: Mas quer dizer, em relação a esse tipo de situações de monitorização do comportamento dos mais jovens nas redes sociais, não pode ser só o Estado a fazer isso. Há aí um papel da família que é essencial.
IO: Claro, a família tem que perceber. A maior parte das vezes as crianças estão sossegadas em casa, mas não estão com os pais, não estão a conviver em casa, estão nas redes sociais. Portanto, nós temos que perceber que o mundo digital traz muitas vantagens ao nosso desenvolvimento, mas também traz muitos perigos. As pessoas têm de estar conscientes desses perigos resultantes do digital e na forma como está a influenciar o comportamento dos nossos jovens.
NSL: E como é que pode entrar aí a Estratégia Integrada de Segurança Urbana, que tem levado a Secretaria de Estado a reunir com diversas entidades pelo país?
IO: A Estratégia Integrada de Segurança Urbana tem quatro princípios: prevenção, integração, promoção das parcerias, e proximidade ao cidadão. A Estratégia tem um enquadramento: nós cada vez mais vivemos em centros urbanos. A ONU, em 2020, estimava que 45% da população vivia em centros urbanos. O número vai crescer em 2030 e, em 2050, a ONU perspetiva que 75% da população mundial viva em centros urbanos.
Os centros urbanos têm dinâmicas, têm fluxos, têm atividades que criam um ambiente completamente diferente do ambiente em meio rural, criam anonimato e quebram o chamado controlo informal social. Portanto, percebendo que nós vamos ter cada vez mais centros urbanos, temos que os preparar para a nova realidade. E isso faz-se como? Através, essencialmente, da centralidade do poder local como coprodutor de segurança.
O urbanismo, a gestão urbana e a mobilidade são um conjunto de fatores de políticas públicas municipais que interferem nas políticas de segurança e portanto, tem de haver essa interação. Os municípios têm já consolidado os seus conselhos locais de ação social. Fazem-no, precisamente, para reduzir vulnerabilidades sociais e procurar dar resposta àquelas que são as necessidades apontadas pelos seus próprios diagnósticos. O que nós temos de fazer, no âmbito desses conselhos, é acrescentar a visão da prevenção da criminalidade, olhar para essas situações. Nós temos de olhar para o território e ver como é que ele está a ser gerido e de que forma é que podemos melhorar.
Um exemplo de como há a necessidade de juntar as políticas municipais com as políticas governamentais de forma integrada para dar a resposta a situações é, por exemplo, um jovem que tem quebras do rendimento escolar. É evidente que isto não é um problema da Escola Segura, mas, nós podemos, com a escola e com os parceiros sociais, olhar para essa realidade e procurar fazer esse enquadramento. O que é que se passa com esta criança?
Ilustrando com o caso de um pai que agrida um professor. Nós temos de saber se aquela criança voltou a ter rendimento escolar, se tem integração social ou se, por exemplo, aquela situação de agressão para ela é uma normalidade? Portanto, temos que juntar aqueles que têm competências na área, que têm competências legais, consolidar e integrando a rede, para ver como é que aquela criança vai evoluir. Foi transferida de escola, mas a transferência resultou? Ela agora tem rendimento social, tem rendimento escolar, tem integração social? Nós vivemos num mundo de ameaça global, mas o efeito, a materialização desse risco, é local. Há um sítio onde ocorre, há uma rua, há um bairro, há uma instituição onde as coisas ocorrem e, portanto, nós temos que olhar para o local e ver o que é que está a acontecer e de que forma é que nós podemos, ao nível da gestão urbana, ao nível da resolução das vulnerabilidades sociais, ao nível do acompanhamento, fazer essa monitorização. A Estratégia tem uma dimensão proativa social e uma dimensão proativa operacional, com base nos princípios da prevenção, integração, proximidade ao cidadão e promoção das parcerias. Com a dimensão proativa social, temos de reduzir as desigualdades sociais com quem está no terreno hoje, de forma integrada, porque existem programas governamentais que têm de ser integrados nas políticas municipais, a par daquelas que já existem. Depois temos a vertente proativa operacional e aí vamos utilizar o Sistema Integrado de Informação Geográfica para começar a fazer os Hotspots do crime e começar a fazer modelos preditivos. Estudos revelam que 80% da criminalidade ocorre sempre no mesmo sítio e, portanto, nós temos que perceber o que é que acontece naquele sítio: quem são os autores, quem são as vítimas e fazer a identificação geográfica da situação. Temos de perceber se há ATM, se há bancos ou centros comerciais, se há estabelecimentos escolares, se é junto de paragens de autocarro ou até se aquela zona está mal iluminada. É necessário estudar porque é que o fenómeno ocorre ali.
Portanto, é preciso uma nova monitorização de determinados espaços e para isso também vamos recorrer à videovigilância e procurar ter um sistema de alarmística na videovigilância.
NSL: Como é que isso funciona ou funcionará?
IO: A alarmística funciona nestes termos: o sistema está a fazer a gravação das imagens e o operador tem perante si um conjunto de câmaras que perante determinados eventos predefinidos, disparam, lançando-lhe um alerta.
NSL: Isso é feito como?
IO: Por exemplo, estamos a fazer o projeto-piloto no Aeroporto. Se uma mala estiver parada durante x tempo num determinado sítio, se houver uma porta de segurança que é aberta, se houver um carro em contramão ou até se houver pessoas em fluxos contrários, o operador irá receber um alerta. Estes sistemas já são utilizados por hipermercados, por causa das questões de furto e é possível, sem identificação facial, perceber se há ali uma situação que exige meios e recursos.
NSL: E seria um sistema para colocar nos locais onde existe uma maior percentagem de incidentes anteriores?
IO: No âmbito do sistema de videovigilância, o sistema de alarmística é incorporado. Onde houver videovigilância, é possível ter alarmística para detetar as situações que devem ser detetadas.
NSL: E seria para estar a funcionar quando?
IO: Isto terá que ser gradual. Vamos experimentar, depois do Aeroporto, na Amadora, que tem já uma rede bastante consolidada. A Amadora tem videovigilância.
NSL: E quando vai começar?
IO: Vamos ver. Uma coisa é um aeroporto com situações específicas, a outra é muito mais abrangente. Mas esperemos que até ao final deste ano, no princípio do próximo ano, possamos ter já o sistema implantado, no sentido de já estar operacional.