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Depoimentos de Lídia Jorge e Maria Elisa Domingues

Depoimentos de Lídia Jorge e Maria Elisa Domingues

Eduardo Lourenço dizia que a Portugal tinha faltado um Montaigne. No século XX, passagem para o XXI, tivemos o nosso Montaigne, chamou-se Eduardo Lourenço.
Depoimentos de Lídia Jorge e Maria Elisa Domingues

É sinal de um grande bem quando as pessoas hesitam entre chamar-lhe filósofo e ensaísta, querendo diminuí-lo quando lhe retiram a classificação de filósofo. O assunto é de somenos importância. Eu prefiro vê-lo como um filósofo que se fez ensaísta por generosidade, simpatia e alegria de interpretação em relação aos textos dos outros. E nesse aspecto ele foi um pensador moderno. O seu método é hoje explorado por outros filósofos como é o caso de Byung-Chul- Han.

Mas Eduardo não se distingue apenas pela inteligente e sensível capacidade de se abeirar dos textos dos outros, distingue-se por tê-lo feito poeticamente. Ele é o poeta do nosso pensamento. Ele distingue-se também pela forma como se colocou presencialmente ao lado dos seus contemporâneos. Devemos-lhe companhia em debates, mesas redondas, colóquios, encontros dos mais variados.

Chegava antes de todos, partia depois, comia qualquer coisa, ria e aplaudia como se sempre tivesse quinze anos. Ele não foi apenas o homem mais inteligente de Portugal, a quem dedicou a subtileza da sua interpretação. Ele foi o filósofo miúdo que entrou com alegria nos folguedos da nossa imaginação. Até à dança de roda comum, Eduardo Lourenço.

Lídia Jorge, escritora

Sobre Eduardo Lourenço: a saudade, resgate da ausência

“É tentador assimilar o destino de um povo ao do indivíduo, com o seu nascimento, a sua adolescência, maturidade e declínio. A analogia organicista é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civilizações extintos o paradigma humano se aplica. O tempo do indivíduo, a leitura que ele próprio faz do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo de surgimento, afirmação e desaparição. Um povo tem igualmente uma história e, por comodidade hermenêutica, pode ser tentado a ler o seu percurso em termos subjectivos de afirmação de si, de presença mais ou menos forte entre os outros ou de existência precária ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas o tempo da história não é, como o dos indivíduos, percebido ao mesmo tempo como finito e irreversível. (…)

Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino”. *

Ao saber da morte de Eduardo Lourenço, que, assumindo até ao fim o seu destino ímpar, nos deixa no dia da Restauração, recolho-me junto aos seus livros, a que tantas vezes recorri para encontrar uma causalidade, um sentido, para factos e decisões políticas que, com frequência, me causaram perplexidade. Suponho que muitos outros portugueses o terão feito, ao longo das décadas, com o mesmo propósito. Extraordinário legado, esse, das palavras justas para melhor entendermos quem somos e para onde vamos, que ele nos deixa.

“A realidade efectiva de um povo é aquela que ele é como actor do que chamamos “história”. (…) Não é a pluralidade das vicissitudes de um povo através dos séculos que dá sentido à sua marcha e fornece um conteúdo à imagem que ele tem de si mesmo. A história chega tarde para dar sentido à vida de um povo. Só o pode recapitular”. *

*Eduardo Lourenço in “Portugal como Destino seguido de Mitologia da saudade” (Gradiva)

Para além desse convívio com as suas palavras, que permanecerá para lá do seu desaparecimento físico, tive a sorte de com ele conviver, por razões profissionais e também pessoais: entrevistei-o várias vezes e recordo, em particular, a “temeridade” de entrevistar Lourenço em “prime-time”, durante uma hora, na RTP, quando o facilitismo dos conteúdos já ameaçava a presença do pensamento em horário nobre, em particular fora do âmbito restrito das entrevistas político-partidárias.

Depois, enquanto estive à frente da direcção de comunicação da Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1995 e 1998, tive oportunidade de privar com Eduardo Lourenço com alguma regularidade, já que ele integrava então, a convite do Presidente da FCG, Prof. Dr. Ferrer Correia, o Conselho Geral da Fundação, que reunia uma vez por mês um conjunto de notáveis personalidades, entre as quais recordo também Maria Helena Rocha Pereira e Isabel Magalhães Colaço. Que privilégio ouvi-los dissertar, com total liberdade e independência, sobre as linhas de acção e actividades da Fundação e, a esse propósito, do que se passava no país! (dou-me conta, ao referir estes três nomes de forma espontânea, que tal certamente aconteceu por se tratar de algumas das personalidades mais livres e brilhantes que conheci).

Mas com Eduardo Lourenço tive também um contacto mais informal graças a uma amiga comum, Lídia Jorge: Lourenço tinha uma admiração e um carinho por Lídia Jorge absolutamente únicos e eu pude, nesse contexto afectivo, usufruir do seu convívio de uma forma mais próxima. Guardo, da sua presença em minha casa, uma recordação indelével.

“Com a saudade não recuperamos apenas o passado como paraíso; inventamo-lo. O nosso povo, imemorialmente rural, absorvido por fora em afazeres desprovidos de transcendência, mas levados a cabo como uma epopeia, com o seu talento do detalhe, da miniatura, é um povo sonhador.

(…) A saudade, descida no coração do tempo para resgatar o tempo – o nosso, pessoal ou colectivo -, é como uma lâmpada que recusa apagar-se no meio da noite. Talvez nos torne estranhos e mesmo complacentes para com essa estranheza, mas esse sentimento é puramente ilusório. Sob outros nomes ou sem nomes, a saudade é universal, não apenas como desejo de eternidade, mas como sensação e sentimento vividos de eternidade. Ela brilha sozinha no coração de todas as ausências”.

Maria Elisa Domingues, jornalista e escritora