Ana Paula Zacarias, secretária de Estado dos Assuntos Europeus, falou com o ‘Política com Palavra’, na semana em que a presidente da Comissão Europeia veio a Portugal celebrar simbolicamente a aprovação do nosso PRR. E na semana em que Joe Biden terminou a sua visita à Europa onde retomou uma relação de proximidade com a União Europeia interrompida com Donald Trump. Uma entrevista muito esclarecedora sobre a presidência portuguesa, os desafios de Portugal, a China e a Rússia, o processo de vacinação, os limites ao défice, as dificuldades com a Hungria e o futuro de uma Europa que soube responder à crise.
Luís Osório – Saltou-me à vista que é licenciada em Antropologia Cultural? Fê-lo para se preparar para a carreira diplomática ou para ter vantagens se um dia fosse chamada a exercer um cargo político?
Ana Paula Zacarias – Comecei em Direito, na Católica. Mas a certa altura achei que precisava de um voo um pouco mais amplo e decidi, para grande tristeza do meu pai, deixar o Direito e ir para Antropologia, na Nova. Era uma espécie de chamamento, o que é isto de ser humano, o que significa a cultura, o que significa a nossa diversidade. Não me passava pela cabeça que viria a ser diplomata, muito pelo contrário. Terminada a licenciatura pensei fazer um mestrado em populações ameríndias, cheguei a ir para Paris com esse objetivo.
LO – Então o que aconteceu?
APZ – Abriu um concurso para a carreira diplomática e um amigo meu, que concorreu e acabou por não ficar, convenceu-me a participar. Acabei por entrar. Começara a dar aulas na Nova em Antropologia quando recebo um telefonema do MNE para começar o mais rapidamente possível nos serviços do protocolo. Nem sabia muito bem o que era isso. Comecei pelos rituais, o que me foi bastante útil.
LO – Temos que iniciar a entrevista, senhora secretária de Estado. Fala-me de rituais no dia em que o governo português, já daqui a bocadinho, recebe a presidente da Comissão Europeia. Presumo que já saiba tudo sobre rituais de poder.
APZ – Sem dúvida. E são muito importantes. É muito simbólico que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, tenha decidido vir pessoalmente a Portugal dar a notícia de que o nosso PRR foi aprovado. É um sinal positivo. O sinal de que o dinheiro para a recuperação vem a caminho e que poderá entrar na economia no mês de junho e julho. Um sinal também de que as verbas foram desbloqueadas. A Comissão Europeia foi esta semana aos mercados levantar 20 mil milhões de euros para que o processo de recuperação possa iniciar-se.
LO – O dinheiro será então desbloqueado sem a necessidade de os 27 planos serem aprovados, uma informação que chegou a circular.
APZ – Não faz sentido. O importante é que todos os estados-membros aprovassem a decisão dos recursos próprios que permite à Comissão Europeia ir aos mercados levantar o dinheiro. O reembolso será feito até 4 de julho de 2031, o que significa que a Europa tem o futuro assegurado até meados de 2031. Agora é o tempo em que a CE está a trabalhar com cada estado-membro. Já foram entregues vinte e três PRR dos quais a Comissão aprovou cinco. Depois será a vez do Conselho Europeu intervir e validar os programas.
LO – O dinheiro será suficiente?
APZ – O dinheiro é suficiente. Tem-se falado muito na dimensão da crise, mas tudo aponta para uma saída nos prazos previstos no Plano. A dimensão financeira parece-me a adequada neste momento. Se infelizmente for necessário mais dinheiro a seu tempo se verá.
LO – Esta questão tem sido colocada de uma maneira muito constante, colocada até por muitos socialistas.
APZ – Temos de ir passo a passo. Não podemos desvalorizar este momento extraordinário, o que a Europa conseguiu era impensável para muitos. A flexibilização das regras orçamentais, a possibilidade de utilização dos orçamentos nacionais para acorrer à emergência das crises, um programa de manutenção de emprego, a aprovação do mecanismo de recuperação e resiliência e dos recursos próprios, os planos nacionais. E tudo isto feito num ano!
LO – Considera então, voltando à Antropologia, que estas interrogações têm muito a ver com a eterna insatisfação humana.
APZ – É verdade. Precisamos de dizer com clareza que enfrentámos esta crise de uma maneira extraordinária. Criámos uma vacina, fizemo-la de base. Começou a ser produzida, foi distribuída, criámos um plano de vacinação e mecanismos inovadores no quadro europeu. Jamais pensaríamos há três anos que a Comissão Europeia pudesse ir ao mercado para recuperar de uma crise no modo como o fez. E fê-lo com a colaboração e respeitando a especificidade de cada país. Isso permitiu-nos a diversidade na unidade. No dossier vacinação fizemos história, aprovámos tudo o que era para aprovar em tempo recorde
LO – A semana passada, o eurodeputado Pedro Marques comentava neste espaço acerca da urgência de se alterarem as regras orçamentais, nomeadamente em relação ao teto dos 3 por cento. Deu como exemplo, o que me parece lógico, a “dívida covid” não contar para as contas do défice.
APZ – O debate sobre os limites do défice, sobre a possibilidade de a “dívida covid” não contar para o défice, será um debate para a Cimeira da Recuperação que acontecerá, simbolicamente, no último dia da nossa presidência. Uma discussão que abordará certamente a aplicação das regras orçamentais europeias no futuro.
LO – Será certamente discutida esta questão na Cimeira da Recuperação.
APZ – Seguramente. Será o primeiro dia em que se discutirá o futuro desse ponto de vista, a primeira vez que pensaremos na aplicação das regras orçamentais e dos limites da dívida num quadro que se alterou profundamente. Isso será importante para assegurar a saída da crise e para que a transição digital e verde, prioridades absolutas e consensuais na União Europeia, possam avançar. E que tudo isso aconteça acautelando as implicações financeiras e sociais que serão inevitáveis.
LO – Muitas profissões deixarão de existir.
APZ – Será necessário compensar com novos trabalhos, novos empregos e muita formação profissional e é aí que entra a questão social e as metas que todos os estados-membros definiram como objetivo na Cimeira Social que organizámos na nossa presidência.
LO – A presidência portuguesa ainda não terminou, mas estes seis meses devem tê-la deixado exausta. Não está a equacionar pedir ao primeiro-ministro que a remodele?
APZ – (risos) Tem sido um grande desafio, mas estou muito grata por ter participado nestes quatros anos de governo socialista, sendo eu independente. Uma experiência que levarei para sempre, uma experiência que culminou com a possibilidade de ajudar o meu país nesta presidência. Mas faltam 15 dias!
LO – Não é ainda tempo para balanços.
APZ – Temos de resolver ainda a questão da política agrícola, discutir o alargamento à Sérvia e Montenegro, debater o Estado de Direito na Polónia e na Hungria e finalizar com a Cimeira da Recuperação.
LO – Tudo isso é um programa.
APZ- Verdade, tudo isso é um programa. Tudo isso exigirá a nossa melhor atenção até ao último dia.
LO – O que destaca nesta presidência? E peço-lhe para excluir da equação as mais faladas Cimeira Social e a Lei Europeia do Clima.
APZ – A presidência portuguesa foi capaz de construir pontes, somos muito bons construtores de pontes. Havia muitos dossiers bloqueados que a presidência portuguesa conseguiu desbloquear. Conseguimos cumprir os vários objetivos que tínhamos. Na vacinação, na recuperação económica, na transição verde e digital, no clima, na cimeira social, nos valores, na reaproximação aos Estados Unidos, no estreitar de relações com a Índia.
LO – Uma cimeira que contou com a presença dos mais altos representantes de todos os estados-membros, percebeu-se a importância que a UE dá ao estreitar de relações com a Índia.
APZ – Sem dúvida.
LO – Mas já lá vamos. Falava há pouco da Cimeira Social, do que se avançou, do que a Europa se comprometeu com números e objetivos muito concretos. Numa transição que traz perigos e oportunidades é ambicioso o compromisso de retirar milhões de pessoas da pobreza.
APZ – Mas é fundamental. Temos o objetivo de tirar 15 milhões de cidadãos europeus da pobreza. E o que todos pensamos, a pergunta que fazemos, é a de que como é possível que ainda existam 15 milhões de pessoas nesse limiar num continente como o nosso? Como é possível que dentro desse número estejam incluídas 5 milhões de crianças? Temos de o resolver, é uma obrigação europeia.
LO – Insisto na presidência, no que ficará da nossa presidência.
APZ – Falamos de resiliência, da economia, das pessoas, mas não podemos esquecer os valores. A nossa presidência será recordada por uma ação muito forte nesta área. E fizemos várias coisas. Fizemos uma conferência internacional em Coimbra com a participação de todas as instituições europeias e analisámos a situação do Estado de Direito em cinco dos nossos estados-membros. E não acabaremos a nossa presidência sem analisar ao detalhe a situação concreta na Hungria e na Polónia, algo que não se faz há mais de dois anos.
LO – Dois elefantes na sala.
APZ – Separo claramente a Hungria da Polónia. Há uma forma de exercer o poder na Hungria um pouco diferente. No respeito pela liberdade de imprensa, no tratamento das minorias, na relação com a sociedade civil, na independência do poder judicial, na independência das universidades. Teremos a oportunidade de ouvir a Hungria nos próximos dias ainda no âmbito da nossa presidência. Mas tem genericamente a ver com a forma como o poder se exerce e o modo como funciona o mecanismo de check and balances.
LO – É expetável que haja um alargamento da União Europeia à Sérvia e Macedónia?
APZ – Quisemos avançar com esse dossier na nossa presidência. Sabemos bem o que significou para Portugal, o que significou para a consolidação do nosso regime democrático. O alargamento só será possível com o aumento da exigência em relação aos países que querem entrar na União Europeia, nomeadamente da Sérvia e da Macedónia. Só poderão entrar os países que tiverem a consciência que estar na UE não significa apenas beneficiar de uma comunidade económica, mas partilhar valores e defender o Estado de Direito. Por isso, as negociações tornaram-se mais complexas, veremos o que acontece. Em relação à Sérvia e Macedónia o processo está mais avançado do que em relação à Macedónia do Norte e à Albânia.
LO – Países que têm sido um histórico barril de pólvora.
APZ – Temos que ter em mente que não devemos deixar esses países sozinhos, até por serem países que desejam fazer parte desta nossa comunidade europeia.
LO – Peço-lhe mais um pouco para falarmos de Joe Biden e do regresso americano à velha ordem.
APZ – A Europa está a redefinir quem são os seus aliados, os seus parceiros de caminho e os países com quem tem divergências. Daí a excelente notícia da aproximação da União Europeia à Índia. Quanto ao presidente Biden estamos aqui num momento extraordinariamente importante, é um regresso ao futuro que devemos saudar. Fundamental no quadro na NATO, fundamental na aproximação aos aliados europeus para discutir o mundo digital, fundamental na ideia que o Presidente americano apresentou no sentido de taxar as multinacionais…
LO – Uma ultrapassagem à esquerda a Margrethe Verstager e à União Europeia.
APZ – Há aqui também um aspeto tático. A União Europeia estava a fazer o seu caminho em relação às multinacionais tecnológicas que, na maior parte dos casos, são americanas. O encontro de vontades políticas precisa agora de ser concretizado. Mas o momento de aproximação é importante, em relação aos dossiers climáticos, digitais e de justiça social.
LO – A Europa tem futuro?
APZ – Provámos que sim pelo modo como gerimos esta crise.
LO – Dois temas para acabar. Como gerir a colaboração portuguesa com a China?
APZ – A nossa colaboração com a China não está em causa. Portugal consegue construir pontes e compromissos. E temos uma relação de muitos séculos com a China, mas o facto de termos investimentos e parcerias com os chineses não nos inibe de ter a nossa posição concertada no quadro da UE e uma relação de trabalho e colaboração próxima e estratégica com os Estados Unidos.
LO – E a Rússia?
APZ – É importante ter os canais abertos com a Rússia. Não é por acaso que o presidente Biden acaba esta sua viagem à Europa numa cimeira com Putin. Todos somos humanos, todos estamos num momento de dificuldade, todos temos desafios semelhantes, é um momento de encruzilhada para o mundo inteiro e temos de ser capazes de olhar para os grandes desafios. Talvez seja a antropóloga e a diplomata a falar, mas acredito convictamente nisto.
LO – Por curiosidade, pensa em que língua, inglês ou português?
APZ – Nas duas línguas, mas quando quero escrever uma boa frase penso em português.
