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‘Politica Com Palavra’ com Tiago Oliveira

‘Politica Com Palavra’ com Tiago Oliveira


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“Precisamos de bons fogos durante o inverno para termos menos incêndios durante o verão”

Agora que os dias quentes se aproximam, fomos ouvir Tiago Oliveira que está à frente da Agência de Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF). Mandatada para fazer, “não a revolução” mas a “transformação” necessária para evitar que 2017 se repita, Tiago Oliveira passa em revista o que se tem tentado mudar na prevenção e combate aos incêndios florestais.

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Nuno Sá Lourenço: Bom dia e bem-vindos a mais uma edição do Podcast Política com Palavra. Esta semana temos connosco Tiago Oliveira, presidente da AGIF. Criada no rescaldo dos incêndios de Pedrógão, a Agência de Gestão Integrada de Fogos Rurais tem como mandato coordenar a nova forma de combater os fogos rurais, mas, acima de tudo, evitar ou tentar evitar que estes aconteçam. Tiago Oliveira, muito obrigado por ter aceitado o nosso convite. Na semana passada foi assinado um memorando de entendimento entre entidades portuguesas e entidades dos Estados Unidos na área da prevenção e gestão de incêndios. Qual é o objetivo deste memorando de entendimento entre os dois países?

Tiago Oliveira: Boa tarde, Nuno. Como há pouco falava na introdução, a agência tem como mandato melhorar a coordenação também no combate.

Fotografias: José António Rodrigues

Ponto relevante, antes de começar, acho que é importante dizer que o combate não é solução. Vai para combate quem não conseguiu fazer tudo o resto.

O combate, não sendo a solução, acaba por ser basicamente apostar tudo no guarda-redes. E o país aprendeu em 2017 que não pode ser assim. Têm sido dados passos relevantes. O protocolo com os Estados Unidos acaba por ser a formalização de uma relação que já vem desde os anos 80. Primeiro, Portugal teve com a Fundação Luso-Americana, ainda pela mão do Correia de Campos. Depois, em 2004, houve uma iniciativa da FLAD, que enviou um conjunto de pessoas aos Estados Unidos. A relação foi melhorando. Eles vieram cá já há quatro, cinco, seis vezes dizer repetidamente a mesma coisa: nós temos que adotar os standards internacionais. E este protocolo vem trazer outra vez essa oportunidade. Através do protocolo, nós podemos ter acesso aos manuais de formação, aos procedimentos operacionais, aos standards operacionais pela qual é feita a supervisão não só do combate, isto é, supressão, mas também de toda a fase do planeamento e da pré-supressão e da prevenção. Este protocolo tem a beleza de ser um edifício-chapéu em que, através da AGIF, todas as outras entidades portuguesas desde a ciência, a Direção-Geral do Território, a Proteção Civil, a Floresta e Conservação da Natureza podem aceder ao conjunto dessas ferramentas que referi: doutrina, formação, detalhes de procedimentos, tudo isso. Por exemplo, neste protocolo, todo o apoio que pode ser dado através dos programas da ciência (ainda há pouco tempo Portugal celebrou um protocolo com [a Universidade de] Stanford e vai assinar agora um protocolo com [a Universidade de] Berkeley) o trabalho destes investigadores pode ser orientado face às necessidades e à aplicação do conhecimento num campo em concreto. Neste caso, dos incêndios. E, portanto, é mais uma fórmula de coordenar, articular um conjunto de investimentos públicos e também privados, nesta matéria.

NSL: O protocolo tem só um sentido. Os Estados Unidos também têm algum interesse em aprender com algumas das coisas que têm sido feitas cá desde 2017?

TO: Nós, em 2019, 2020, aproximámos bastante a relação com a Califórnia. Também temos um protocolo só com o Coal Fire, que é um departamento norte-americano do Estado da Califórnia. A Califórnia é a quinta região do mundo mais rica e, portanto, eles aplicam muito conhecimento…

NSL: Também muito afetada por fogos…

TO: Muito afetada por incêndios. Eles estavam a gastar, até 2020, 2,4 biliões de dólares por ano para suprimir incêndios e a gerir o risco de incêndios. E também um bocadinho fruto da nossa experiência em Portugal, a partir de 2018, disseram “o combate não é solução, ou não é a única solução, é necessário gastar em prevenção”. E eles começaram também a afetar muito mais orçamento em prevenção. Eles estão a gastar 1 bilião de dólares por ano em prevenção e gastam 2,4 em supressão. Estão [num rácio de] 30% e 60%. Nós vamos em 46% de prevenção e 55% de supressão. Ou seja, estamos um bocadinho mais equilibrados. Os frutos demoram a acontecer, mas a maioria dos países inverteu a lógica de só gastar dinheiro em supressão. E eu acho que Portugal teve um papel pioneiro a partir de 2018. Há trabalho científico feito, nomeadamente, na afetação do planeamento, do orçamento, onde é que eu tenho que gastar o dinheiro. Os americanos aprenderam um bocadinho connosco na maneira de pensar e de formular o processo de transferir o edifício que era muito de gestão, para um edifício mais de governação do risco. Eles evoluíram também, fruto destas relações, e que agora são formalizadas por este protocolo e para o qual nós temos reuniões mensais, quase, com os americanos. Vêm cá cerca de 60 norte-americanos ao Congresso que vai haver no Porto na semana de 16 a 19 de maio. E quanto mais nós partilharmos conhecimento, mais preparadas vão estar as nações. Porque os fogos não se limitam às fronteiras, não se limitam àquele tipo de vegetação ou àquele tipo de problema. E os problemas são, todos eles, muito semelhantes. A questão da saúde ocupacional, a questão da performance física dos combatentes, a questão de onde gastar o dinheiro, quando gastar, com que frequência fazer a limpeza, tudo isso são questões que presidem à decisão destes países, em particular nos Estados Unidos e em Portugal. E nós podemos partilhar muitas coisas. Por exemplo, na Conferência vai haver um encontro do Tribunal de Contas português, espanhol e norte-americano para ver como é que nós estamos a seguir a aplicação deste dinheiro. E, portanto, este tema está na agenda do dia. O desenvolvimento de competências está nessa mesma agenda para tornar o dinheiro mais eficiente e eficaz e, portanto, a partilha da informação é muito relevante, tanto com os países mais evoluídos como os países com menos conhecimentos nesta matéria.

NSL: Desde 2018 até agora, qual foi a evolução dessa tendência da relação entre investimento em prevenção e investimento em combate?

   

TO: Antes de 2017, Portugal estava a gastar 20% em prevenção, de um orçamento de 143 milhões de euros, o que dá em números gordos 30 milhões de euros. No final de 2021 estávamos com 316 milhões de euros, com 45% em prevenção e 55% em combate. O combate também aumentou, mas a prevenção quintuplicou o esforço que o país fazia. Hoje em dia já representa 45% do orçamento. Estamos a fechar os números de 2022, mas os números andam à volta dos 420 milhões de euros, porque se está a conseguir pôr mais dinheiro no território vulnerável, na pequena agricultura e esse valor está a subir muito, no item da valorização do território. Importa dizer que o acréscimo marginal de cada euro que eu gasto a mais no combate é menor do que o acréscimo marginal do que eu gasto na prevenção. Por uma questão evidente, porque com as alterações na meteorologia, a campanha de incêndios, sendo mais comprida, havendo mais necessidade de travar grandes incêndios, esses incêndios grandes são evitáveis se houver gestão da vegetação. Primeiro, se não houver incêndios, através da boa adequação dos comportamentos (a maioria, 95% dos incêndios são de natureza humana). Esses incêndios não acontecem se as pessoas estiverem sensibilizadas, estiverem preparadas para usar bem o fogo na floresta ou nos campos agrícolas. Segundo, se eles acontecerem, a paisagem ou o território está gerido. Há uma boa regulação do recurso florestal, as empresas quando cortam uma área, replantam ou, quando deixam para regeneração natural, mantêm essa gestão florestal. Tudo é gerido de uma forma mais adequada, de acordo com os standards técnicos. Os norte-americanos têm essa perspetiva anglo-saxónica muito bem organizada, de como afetar os recursos, quais são as performances que têm que ter aquelas métricas. E eu acho que o protocolo vai ajudar bastante, até para nos compararmos com os melhores a combater incêndios, que são os norte-americanos. Nós vamos ver qual é a performance que temos relativamente aos reacendimentos. É uma métrica que em Portugal, até 2017, Portugal tinha 11% de incêndios que reacendiam. Hoje em dia estamos nos 4%. Os americanos conseguem reduzir até 1% ano. Portanto, nós temos que reduzir esse standard para aquela que é a performance internacional. Mas não me perdendo no tema, o que é relevante para nós é a capacidade de conseguir evitar que haja incêndios, de gerir a vegetação e, no dia em que há um incêndio… Veja o incêndio da Serra da Estrela: estiveram lá 1500 homens e ter lá 1600 homens não fazia a diferença. Há um trabalho que está publicado no nosso site, que é o trabalho feito pelo grupo de cientistas, que mostra, claramente, que a maioria dos bombeiros se concentrou junto às estradas e às casas. Pouco foi o trabalho efetivo dentro da vegetação. O aumento de mais recursos no combate, não quer dizer que eles estejam de facto a proteger a floresta. Muitas vezes até estão a proteger casas. E esta separação é cada vez mais relevante e está muito em linha com aquilo que se aprendeu com 2017.

NSL: Há pouco falou em valorização do território A prevenção tem depois uma vertente que vai muito para lá daquilo que se imagina. É também criar condições para que o próprio território seja habitado, seja explorado e, como tal, seja vigiado e não esteja ao abandono.

TO: Muitas das pessoas que estão a ouvir são proprietários ou coproprietários ou herdeiros de proprietários florestais. Podem ter 1000 hectares, podem ter 1000 metros quadrados. O que é um facto é que aquela vegetação que ali está, sendo privada, nesta cultura em que nós vivemos, tem sempre um propósito de rentabilidade. Ou seja, as pessoas ou têm aquilo a mato e não lhes custa nada, ou têm aquilo com eucaliptal, para receber 100€ ou 200€ por hectare ao ano, na melhor das hipóteses. Ou pinhal, que dá 50€, ou montado com exploração de cortiça, ao fim de nove anos, se calhar por cada hectare, conseguem retirar 70 ou 80€. Estamos a falar de rentabilidade. O problema está a montante. Isto é, a valorização dos bens e serviços que são produzidos na floresta são hoje em dia pagos, no caso do eucalipto, do pinhal, do sobro, pelo bem lenhoso. E são mal pagos, porque, por exemplo, no caso das empresas, elas importam pinho e eucalipto do estrangeiro a valores muito mais interessantes, às vezes até ao triplo do preço dos valores que estão a pagar ao proprietário cá em Portugal. Donde se conclui que há aqui uma consequência da assimetria da oferta versus procura, que está muito desequilibrada. Há um papel que o Estado pode desempenhar, que é publicar as estatísticas de quanto é que está a custar, quanto é que cada proprietário está a vender essa matéria-prima às empresas. Isso era um bom serviço público, fazia parte do caderno de encargos do INE e é um dos objetivos que nós identificámos no Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, essa informação ser pública. Porque a partir do momento em que o proprietário sabe que está a vender a 50, mas que as empresas estão a comprar em Espanha a 80, então, se calhar, o preço sobe, logo aí. Mas, para além da valorização lenhosa, é também necessária acrescentar a valorização de outros serviços. Por exemplo, o sequestro do carbono, o oxigénio libertado, a promoção da biodiversidade, a questão dos frutos da caça, do silêncio, da regulação do ciclo da água. Tudo isso é um serviço que a floresta presta a custo zero. E, portanto, tem que haver a capacidade da sociedade portuguesa de recolher esse benefício e retribuir. O país fez isso em 2005, quando criou o Fundo Florestal Permanente. Amealhou cerca de 20 milhões de euros para fazer a redistribuição desse valor pelos proprietários. Só que esses 20 milhões de euros ficaram cativos, entre aspas, no movimento associativo florestal para contratar as organizações de produtores florestais, para ter brigadas de sapadores. Ora bem, se calhar fazia mais sentido pegar nesse dinheiro e afetar esse dinheiro ao Orçamento do Estado e obrigar-se, de facto, o Orçamento do Estado a comparticipar as organizações de produtores florestais e esses 20 milhões de euros serem distribuídos pelo proprietário que sabe fazer bem a gestão da sua floresta e que está com isso a sequestrar carbono, a valorizar a água e, portanto, tem que ser beneficiado por esse serviço que presta. Mas lá está, são questões de natureza política, da governança, que têm que ser resolvidas na esfera política. Há muitas propostas técnicas. Compete depois aos políticos fazerem o balanço e ver onde querem pôr as soluções.

NSL: Pelo que eu tenho lido sobre este tema, um dos focos de todas estas mudanças tem sido levar alguma da ciência e tecnologia mais inovadora que têm surgido recentemente. De todos os projetos-piloto que têm sido testados, qual é que mais o surpreende ou tem maior potencial de mudança?

TO:Não é um problema tecnológico, é um problema de natureza social e de redistribuição de rendimento, de economia. Donde, a tecnologia pode ajudar à redistribuição. Já lá vai o tempo longo, em que se falava de incêndios e lá vinham as câmaras de videovigilância. Em que se falava de incêndios e lá vinham os meios aéreos. Não, não é por aí. A tecnologia vai ajudar a melhorar a forma como eu estou a gastar o dinheiro, para que esse dinheiro seja utilizado de forma mais eficaz nesse domínio mais tecnológico. Na questão da redistribuição de valor, a tecnologia já está a ajudar e pode ajudar. Como? Por exemplo, na questão do cadastro, que é um projeto emblemático e que foi lançado em 2018. Já há cadastro geométrico, em Portugal, a sul do Tejo, por exemplo, Monchique tem cadastro, Mação tem cadastro. Circunstâncias únicas também nos mostram que Mação e Monchique ardem, não obstante terem cadastro. Para que é que serve o cadastro? É um instrumento de gestão. O que é que está a faltar? É a gestão. E em que é que a tecnologia pode ajudar? Sabendo de quem é que é o prédio A, B ou C, eu tenho a paisagem mapeada e sei de quem é aquele bocadinho de terra. Ninguém pode pensar que os incêndios resolvem transformando tudo em alcatrão, impedindo que haja vegetação. Até porque queremos os benefícios dessa floresta. Aliás, há uma proposta do âmbito do Plano Nacional, de rever o regime sucessório. A revisão do regime sucessório permite, por exemplo, que as partilhas não fiquem indefinidamente ad eternum à espera de serem resolvidas. Porque é que o Parlamento não avança com isso? Porque é que o Partido Socialista não leva essa proposta ao Parlamento? No Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, compete ao Parlamento fazer a revisão do regime sucessório. Ora aí está uma proposta para o Partido Socialista liderar. Através de informação geográfica, através das ferramentas da inteligência artificial, eu consigo dizer que, naquela paisagem, tendo por base o cadastro, eu consigo ver qual é a distribuição do problema, do risco. E também consigo dizer qual é o benefício de esse risco estar a ser gerido. Isto vai permitir passar de uma gestão do risco muito operacional para aquilo que é mais relevante, que é governar o risco naquela comunidade. Como é que aquele valor é distribuído ou como é que aquele risco está a penalizar A ou B. Há muitas ferramentas que estão a ser desenvolvidas nesse sentido. Vão ser apresentadas nesta conferência internacional que Portugal ficou de organizar, entre 16 e 19 de maio, no Porto. Portanto, é muito interessante ver como é que a prevenção e o conhecimento está a ajudar à gestão da prevenção e a melhorar a eficácia da prevenção. É um bocadinho este o conceito: não são as tecnologias mas sim as ferramentas que mostram a partilha de valor.

NSL: Era aí que eu queria chegar. A principal mudança estrutural que se pretende aqui é uma questão de governança e de coordenação.

TO: Mais do que isso. Eu acho que 2017 demonstra isso. Agora vem cá o autor Stephen Pyne apresentar o seu livro a 13 de maio, chama-se “Piroceno”, em que ele demonstra, claramente, que as nossas paisagens têm que ter fogo.

Precisamos de bons fogos durante o inverno para termos menos incêndios durante o verão.

Se nós insistirmos em só apagar o fogo durante o inverno, vamos ter grandes incêndios no verão. E esta transição cultural de voltar a integrar o fogo dentro da gestão é decisiva para a sobrevivência de uma grande parte do território. De 2018 para cá, há menos 50% de incêndios que começam e as pessoas estão a escolher os dias mais frescos para fazer a queima dos sobrantes, evitando fazê-los durante o verão. Estamos a ter picos de incêndios em fevereiro, março, abril, fogos, fogachos, que limpam a vegetação à volta da casa, limpam o matagal que está naquela encosta, ajudam a renovar as pastagens e esses fogos têm que ser geridos.

NSL: Mas é o próprio cidadão que deve fazer isso?

TO: Há infraestruturas preparadas. Mas ainda há uma cultura enraizada do “Portugal sem fogos depende de todos". Portugal protegido dos incêndios rurais graves depende de muito fogo durante o inverno. É diferente porque nós estamos a usar o fogo como uma ferramenta. O fogo, digamos assim, é um grande herbívoro. E aliás, como nós não temos, tiramos de lá as pessoas que cavavam a terra, depois tiramos de lá as ovelhas e as vacas. O que lá está é mato a crescer. O que é que a gente tem? Tem um grande herbívoro durante o verão, cheio de fome, a comer aquela vegetação em grandes incêndios. Para ele não fazer isso de uma forma bruta, com consequências gravosas para todos nós, ou gradamos ou colocamos herbívoros, ou usamos fogo durante o inverno para reduzir a vegetação. A solução está sempre em gerir a vegetação, nunca está em pôr água para apagar o fogo.

NSL: A AGIF é um corpo estranho na estrutura vertical do Estado, não é? A maneira como foi pensada, isso é um problema…

TO: Como em todas as transformações. 2017 foi um problema muito grave, em que as pessoas reconhecem que o contexto se alterou. Ora bem, se o contexto alterou, fazer mais do mesmo não resolve o problema. Neste caso, as pessoas reconheceram que os meios de combate, por mais que fossem, nunca seriam suficientes. Reconheceram que tem que haver gestão da vegetação, que tem de haver mais gestão florestal e melhor silvicultura. Então o peso dos orçamentos, a importância política muda. E o que é que se fez? Criou-se uma agência para poder articular esta transferência. Naturalmente, há uns que ganham e outros que perdem. Naturalmente que há, não uma revolução, mas há uma transformação. Naturalmente que estes edifícios, estas estruturas muito hierárquicas, que estão muito habituadas a pensar com os galões e não a pensar o problema em si, das duas uma ou há uma alteração da doutrina (e isso tem impactos depois nos processos de trabalho) ou então vai haver resistências. A agência acaba por ser um meio caminho, é uma estrutura supraministerial que tem, como outras, na gestão da coisa pública, de fazer a quebra de uma cultura de silos. E é muito transversal. A PT Space também tem estas dificuldades. A agência de coordenação económica dos fundos também tem estas dificuldades. Agora, nós não temos dinheiro para distribuir. Nós temos conhecimento e temos a vontade de agregar todos os atores num objetivo comum. Se há atores mais resistentes, que não estão a partilhar o objetivo comum, naturalmente vai haver resistências. E nós, sendo os últimos a chegar, somos aquele corpo estranho que tem de ser expelido. Mas, felizmente, eu acho que, como o slogan daquela marca de bebidas “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. E eu acho que a agência, cinco anos depois, conseguiu demonstrar as mais-valias que tem. O planeamento está em curso, a orçamentação está a funcionar. Há um relatório anual entregue à Assembleia da República. Está a fazer a monitorização, tem uma perspetiva independente, exclusivamente técnica e procura fazer a articulação dos vários atores públicos, em particular, mas também privados, para conseguirmos atingir o objetivo de um Portugal protegido de incêndios rurais graves. Não é fazer uma revolução, é fazer uma transformação. Isso, naturalmente, não cria um mar de amigos, mas faz parte das funções caminhar sobre o desconhecido. Julgo que umas vezes bem, outras vezes não tão bem, mas sempre bem intencionados.

NSL: Usando sempre muita diplomacia, que deve ser essencial. Uma das iniciativas que eu acho que é mais emblemática desta nova forma de atuar, é a apresentação do relatório das lições aprendidas, que também é uma coisa que não é muito normal na estrutura do Estado português. Recentemente foi apresentado esse relatório. Esse relatório apresenta propostas de mudanças não só para o futuro, mas já para este ano.

TO: Eu acho que 2017 trouxe uma coisa muito importante. O relatório da Comissão Técnica Independente dizia que os políticos não podem meter a mão no posto de comando. Esse tempo acabou. Ainda há resquícios. Há incêndios em que a gente vê os presidentes da Câmara a dizer “é para ali, é para acolá”, perturbando o processo. Já não é o ministro ou o Presidente da República que aparece, mas é o autarca local, que tem competências específicas na lei da Proteção Civil, a querer influenciar a gestão técnica. Isso tem que ser melhorado, para dar liberdade, espaço de reflexão. Mas voltando à questão, o objetivo de conseguir garantir que tudo isto faz mais sentido e que as coisas estão sincronizadas, passa sempre por garantir que há uma instituição pública forte. Um incêndio é tão complexo que esta relação, a arbitrariedade, a gestão da incerteza, passa sempre por instituições públicas sólidas que decidem, refletem e pensam sobre os dados de forma independente e suportadas por evidências científicas e técnicas. O político vai ajudar a decidir, mas há um problema que é político. Há um problema que é técnico. Nós temos tentado garantir a consistência, a organização do edifício técnico. Naturalmente que o político, quando há um grande incêndio, sente-se sempre muito acossado e nomeia uma comissão. No caso dos incêndios, estamos a tentar reforçar a consistência e a solidez do edifício de reflexão entre a proteção Civil, a GNR, o ICNF, a Direção-Geral do Território, o Instituto de Meteorologia e o EMGFA. Para que esta equipa possa dizer “Desculpe, o problema dos incêndios está atribuído a estas entidades”. Nós temos de ter ferramentas internas para perceber o que é que foi feito, bem, o que foi feito não tão bem e onde é que podemos melhorar. E criámos um método de trabalho que nos dá a capacidade de ir ao terreno, avaliar, observar, fazer as perguntas e chegar à causa-raiz de onde emanam todas as consequências. E esse método foi aplicado no incêndio da Serra da Estrela pela primeira vez. Primeiro, os líderes das entidades que há pouco referi, assinaram um protocolo, em que se comprometem a dar liberdade aos seus técnicos para fazerem as perguntas e irem à procura das respostas e depois assumirem as lições aprendidas, ou melhor, as oportunidades identificadas. Há depois a necessidade de tomar uma decisão. Houve 45 oportunidades identificadas. Este ano tomou-se a decisão de aplicar as 12 mais críticas para o verão. Quem é que tem que aplicar? É a Proteção Civil, é o ICNF. Sem entrar em detalhes, há ali um conjunto de melhorias a fazer, na sincronização, da aplicação do conhecimento, de antecipar e programar a utilização dos recursos quando entram os incêndios mais complexos, pensar a 3, a 6, a 9, a 12 horas. Fazer o planeamento mais formal. Compete agora às entidades aplicar essas recomendações. E nós cá estamos para daqui a um ano, dizer “Olhe, o senhor comprometeu-se em fazer, comprometeu-se à frente de todos os outros seus pares e não fez. Porquê?” Portanto, eu acho que esta liberdade de cada um assumir as suas funções e as suas competências, para o qual não se ter recursos e orçamentos é muito importante. O que é que a gente fez este ano? O Senhor Ministro da Administração Interna entendeu chamar o pleno dos cientistas. Os cientistas produziram várias preocupações produziram várias propostas, algumas delas até contraditórias entre elas. O que é que a gente vai fazer com os relatórios de peritos? É uma opinião externa que agora nós vamos avaliar. Por exemplo, mais de 80% dos bombeiros ficam a combater o incêndio à volta das casas ou dos caminhos. Na Serra da Estrela, montanha fora, floresta densa, se calhar, é necessário garantir que há mais equipas concentradas a fazer a consolidação perimetral, usar a maquinaria, usar o fogo e usar a ferramenta. E foi uma observação que veio dos cientistas. Agora vamos verificar se está mesmo correto. Se há uma lição a aprender e não foi identificada, então há aqui uma falha de procedimento e informa-se quem o devia ter feito. Portanto, este processo de envolvimento e compromisso é benéfico, não só para quem está a gerir a operação, mas também é uma forma de aprendermos todos, em conjunto, e melhorarmos. Portanto, o que temos de fazer é garantir que aquele edifício vai melhorar. Podemos fazê-lo mais depressa? Podemos. Podemos fazê-lo de uma forma mais eficaz? Podemos. Então o que é que está a faltar? Eu acho que falta sempre aqui reporte público e informação sobre custos financeiros. Quanto é que se está a gastar em cada incêndio. Se isso for público, então acho que as coisas vão avançar um bocadinho mais.

NSL: É um motivador?

TO: É um motivador, porque a reflexão desta mecânica é toda ela feita contra um indicador. Portanto, esta gestão de risco, eu acho que vai melhorar e acho que há ainda muitas coisas a melhorar no edifício. Eu acho que esse é o grande desafio, é conseguir reportar publicamente o que estamos a fazer bem, o que estamos a fazer mal.