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‘Política Com Palavra’ com Maria Manuel Leitão Marques

‘Política Com Palavra’ com Maria Manuel Leitão Marques


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Mais de 60% da legislação que temos em Portugal vem, é inspirada, resulta de decisões europeias

Depois de anos no poder executivo, Maria Manuel Leitão Marques aplica agora a sua experiência e conhecimentos no Parlamento Europeu. Bruxelas está a milhares de quilómetros e, como reconhece a eurodeputada, poderia fazer um melhor trabalho para se mostrar aos cidadãos. Mas a verdade é que as decisões dos eurodeputados têm um impacto cada vez maior no nosso quotidiano.

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Nuno Sá Lourenço

Bom dia e bem-vindos a mais uma edição do Podcast Política com palavra. Esta semana temos connosco Maria Manuel Leitão Marques. Durante os próximos minutos vamos falar sobre as suas atividades no Parlamento Europeu e as diferenças que existem entre fazer política em Lisboa e em Bruxelas. Maria Manuel, muito obrigado por ter aceite o nosso convite. A sua carreira política esteve sempre muito focada na execução, no cumprimento de desafios concretos. Esteve à frente de estruturas de missão, foi Secretária de Estado, foi Ministra. Atualmente, o desafio é outro. Como é que é ser eurodeputada?

Maria Manuel Leitão Marques: Obrigada pelo convite para estar aqui. Eu queria começar por brincar com o nome deste Podcast. Para mim, a política tem de ser feita com alma. A palavra é importante, mas a alma é o mais importante. E todos os cargos políticos que eu exerci na estrutura de missão, como secretária de Estado, depois como ministra e agora até como eurodeputada, faço com a alma. E isso torna sempre as coisas mais fáceis, quando nós nos empenhamos, quando nós temos o sentido de missão, quando nós gostamos daquilo que fazemos, creio que torna as coisas mais fáceis. E este é o ponto comum em todas as atividades políticas que já exerci. Claramente, entre as que foram executivas e esta, que é de natureza parlamentar, ainda por cima num Parlamento que não é bem um Parlamento, é uma aproximação de um Parlamento…

NSL: Qual é a diferença?

MMLM: Todos nós conhecemos um Parlamento como a Assembleia da República, que tem iniciativa legislativa, e há outros parlamentos até que têm quase o Poder Legislativo todo. Aqui em Portugal, é partilhado entre o Governo e a Assembleia da República, mas o órgão por excelência, o órgão legislativo, o órgão que até tem competências reservadas é a Assembleia da República. Nas instituições europeias a iniciativa legislativa é da Comissão Europeia. O Parlamento Europeu pode pressionar a Comissão no sentido de legislar, mas as propostas vêm sempre da Comissão. E depois, então, o processo de decisão, que é feito quase a três

NSL: Isso é um problema até para a notoriedade e visibilidade de um Parlamento?

MMLM: Sim. Hoje, o Parlamento tem uma intervenção muito maior, até porque decide. A proposta vem de lá, mas o Parlamento pode emendar, ou seja, alterar - e altera muito as propostas da Comissão - e, portanto, a Comissão tem conta e faz de namoro, como se costuma dizer, aquilo que é o pensamento do Parlamento, que às vezes se expressa em relatórios de iniciativa do Parlamento. São uma forma de dizer à Comissão: “olhe, nós gostávamos que legislação sobre os serviços digitais e que na vossa proposta introduzissem este ponto, mais este, mais aquele” …

NSL: E nos seus anos de experiência, essas iniciativas que o Parlamento Europeu tem de pressão sobre a Comissão traz resultados?

MMLM: Tem resultado e neste início de mandato houve até um compromisso, uma espécie de acordo de cavalheiros, ou acordo de cavalheiras (como queiramos dizer) da parte da presidente da Comissão Europeia, de que respeitaria ou de que tomaria iniciativas legislativas consequentes a esses relatórios de iniciativa. Portanto, isto para dizer que um cargo executivo é diferente de um cargo parlamentar e eu nunca tinha sido parlamentar por tanto tempo estive apenas um período muito curto na Assembleia da República e, digamos assim, têm pontos comuns e têm grandes diferenças. Os pontos comuns para mim: em ambos os cargos foram - talvez por causa do meu background académico, que nunca perdi - ter a possibilidade de estudar antes de decidir e, lá no Parlamento, tenho enormes recursos para o fazer. O Parlamento dispõe de informação, chama peritos, encomenda estudos com grande facilidade e em grande quantidade para todas as áreas onde está ou pensa vir a intervir. Isso, na verdade, é um privilégio muito grande. Eu também o fazia como Ministra aqui, Secretária de Estado, mas com menos recursos do que tenho lá. Esse é o ponto comum, na minha política com alma, é procurar sempre decidir com rigor e fundamentada no conhecimento. A grande diferença, e essa talvez seja aquela de que eu tenho saudades das minhas atividades anteriores, é que o resultado daquilo que decidimos, no caso do Parlamento, há-de vir daqui a 2, 3, 4 anos. Enfim, quando era ministra, quando era secretária de Estado, eu via com muito mais rapidez o resultado fosse bom ou não fosse bom.

NSL: Em Portugal existe um grande distanciamento em relação ao Parlamento Europeu. Já foi mais, mas mesmo assim continua a existir. E não é só em Portugal. Qual é que é a importância das decisões do Parlamento Europeu na vida das pessoas?

 
Fotografias: José António Rodrigues / PS
 

MMLM:  Isso é um problema de todas as instituições europeias, não apenas do Parlamento. As instituições europeias estão distantes dos cidadãos, os cidadãos não as entendem. E também não é fácil, às vezes, entender. Há dois conselhos, qual é a diferença entre um e outro? Qual é o processo de decisão… Não é óbvio, não é simples. Depois, estão distantes.

Mas, na verdade, mais de 60% da legislação que temos aqui em Portugal vem, é inspirada, resulta de decisões que são tomadas nas instituições europeias e eu acho que isto diz muito.

Muitos dos fundos europeus que são usados na investigação científica em Portugal, para construir infraestruturas - no passado e ainda agora com o PRR - para apoiar a formação profissional, são também alocados a partir do orçamento europeu e naturalmente decididos nas instituições europeias através de regulamentos onde o Parlamento participa. Mas concordo que não tem sido fácil envolver os nossos cidadãos e as nossas cidadãs nestas decisões. Normalmente há grandes processos de consulta pública para a maioria da legislação, mas quando vamos ver quem participa nessas consultas públicas, na maior parte dos casos, são associações organizadas, de consumidores, sindicatos, empresas, mas não cidadãos em termos individuais.

NSL: E acha que isso também tem que ver com a forma como são escolhidos os líderes que estão à frente das diferentes instituições?

MMLM: A escolha dos líderes, só o do Parlamento é que é escolhido diretamente. Era bom que os cidadãos participassem porque depois o Parlamento interfere na escolha da Comissão Europeia. O Conselho é uma escolha indireta porque o Conselho é composto pelos Governos dos Estados-Membros ou, no caso do Conselho Europeu, pelos chefes de Estado. Mas, portanto, essa participação nas eleições europeias era muito boa que acontecesse. Mas apenas para dar alguns exemplos de coisas que o nosso dia a dia passaram pelas minhas mãos, pela comissão de que faço parte: a existência de um carregador comum ainda não está porque, como disse há bocado, há esta distância entre a decisão e nós sentirmos na nossa vida diária. Creio que é uma coisa que todos nós sentimos que é uma vantagem não ter de carregar com vários carregadores quando nos deslocamos um para as ruas, para o telemóvel, para o computador ou, por exemplo, agora o direito à reparação com que me tenho ocupado muito…

NSL: O que é o direito à reparação?

MMLM: Por exemplo, naqueles produtos que compramos, que são produtos de longa duração, como uma máquina de lavar roupa, uma máquina de lavar louça ou um micro-ondas, para dar alguns exemplos da cozinha, mas podemos entrar noutros lados, esses produtos poderem ser reparados. Incentivar uma economia de reparação que torne a reparação mais barata do que comprar novo. Porque muitas vezes nós dizemos: “nem vale a pena mandar reparar”. Primeiro, porque não sei onde é que vou mandar reparar, é difícil encontrar quem repare e depois porque o preço que me vão levar vai ser mais caro do que comprar um novo. Ora, isto não é bom para o ambiente. Nós devemos prolongar a vida dos produtos e, muitas vezes, prolongar a vida dos produtos é ter quem os repare. Portanto, incentivar uma economia de reparação, de proximidade que, aliás, é bom porque cria emprego de proximidade e permitir assim prolongar a vida dos produtos e até incentivar também a circularidade da economia.

NSL: O carregador comum aplicar-se-ia a todo e qualquer aparelho?

MMLM: Não a todos, para já, mas ficou fixado que mais tarde será também para os computadores de maior dimensão. Mas é para as máquinas fotográficas, para os iPad, enfim, não queria dizer uma marca, mas para aquilo que vocês estão a pensar, para os telefones, para os relógios, e para algumas destes equipamentos que estou a referir de diferentes marcas. Porque muitas vezes também é isso, “esqueci-me do carregador, empresta-me lá o teu, ah mas o teu não dá no meu telemóvel, que coisa… Agora, como é que eu vou arranjar um que caiba no meu telemóvel?” Portanto, comum também é comum inter-marcas. Parece que foi simples, mas foi muito difícil porque havia imensa resistência dos fornecedores deste tipo de equipamentos que, naturalmente, querem proteger a sua marca também através do carregador.

NSL: E porventura, se tivesse sido um país no seu Parlamento a tentar impor uma decisão destas peças multinacionais…

 

 

MMLM: Muito bem observado. O mesmo se diga dos serviços digitais, o chamado regulamento dos serviços digitais ou dos mercados digitais, que aprovámos também, ou o da inteligência artificial que vem aí. Para dar também um exemplo concreto, nós vamos com este regulamento dos serviços digitais, limitar o uso dos nossos dados pessoais para nos ser enviada publicidade que às vezes traça perfis e aproveita as nossas vulnerabilidades, a nossa tendência para consumir muito um determinado produto e às tantas estamos a receber muita publicidade só desse produto. Foi um regulamento que, naturalmente, sofreu muita pressão, muito lobby das grandes players do mundo digital e que eu creio que seria muito difícil um país - fosse Portugal ou a Alemanha - talvez mais fácil para a Alemanha, impor um só regulamento. E além do mais, teria ainda outra desvantagem: é que estes mercados são globais e, portanto, é bom que a legislação na União Europeia seja a mesma em todos os Estados-Membros. Também era bom, já agora, que estes princípios que inspiram a legislação europeia inspirassem outras legislações no mundo, como aconteceu com o Regulamento de Proteção de Dados, que hoje tem irmãos na América Latina ou, por exemplo, no Japão e até na Califórnia.

NSL: Uma das matérias debatidas e, aliás, decididas recentemente em Bruxelas teve que ver com a igualdade de género e com a aprovação da legislação sobre o aumento do número de mulheres nos conselhos de administração. Esse processo, imagino, também deve ter sido um processo difícil.

MMLM: Esteve dez anos parado com o veto do Conselho, porque há Estados-Membros que até são progressistas nesta área, mas que acham que isso deve ser negociado entre parceiros sociais, que não deve ser imposto e, portanto, não havia maioria suficiente para apoiar essa diretiva, que se chama “Women on Board”, uma nova representação de mulheres nos cargos executivos e não executivos. A diretiva até é mais forte nos não executivos, portanto, uma diretiva mais fraca do que a lei portuguesa, desse ponto de vista. E não havia maioria suficiente para a passar no Conselho.

NSL: Durante dez anos?

MMLM: Durante dez anos. Mudou com a mudança do governo alemão. A mudança no governo alemão e o facto de o chanceler ser hoje social-democrata permitiu que a diretiva finalmente fosse aprovada no Conselho. E creio que, para nós portugueses, não traz grandes novidades, mas para muitos Estados-Membros, onde não havia legislação, vai com certeza trazer.

NSL: Estou a lembrar-me de, há uns anos, quando também trabalhava nestas áreas da igualdade de género, dizer, em relação aos salários, que se a tendência atual se mantivesse só daqui a 100 anos ou mais de 100 anos é que haveria igualdade nos salários, em valores, entre homens e mulheres.

MMLM: As pessoas dizem ‘lá chegaremos, como chegámos ao ensino superior’. Antigamente havia poucas mulheres na minha faculdade de Direito, por exemplo, éramos uma minoria e não havia uma única professora em Coimbra quando eu estudei e lá chegaremos. Enfim, chegaremos. Daqui a 100 anos, talvez lá chegássemos. Mas hoje está provado que os países que introduziram quotas para os cargos políticos, agora para os conselhos de administração, progrediram muito mais rapidamente do que se ficassem à espera da concertação social, das mentalidades, enfim… é desperdiçar metade do mundo, porque metade do mundo são mulheres, é desperdiçar competências de metade do mundo. Portanto, as quotas ajudam a uma progressão mais rápida. Mas também me recordo da minha experiência de ministra, que há sempre muitas resistências em Portugal. Quando tive a oportunidade de negociar uma alteração na Lei de quotas para o exercício de cargos políticos, ouvi dizer que não era possível porque não havia mulheres disponíveis para integrarem as listas para as freguesias. Quer dizer, as mulheres são a maioria dos eleitores em todas as freguesias. Lembro-me de ver que havia duas em que isso não era verdade, em todo o país. Organizam as festas, normalmente, da freguesia, estão sempre disponíveis para trabalhar. Se não querem ir para a junta, vamos perceber porquê. E vamos perceber se as reuniões são pela noite dentro, se são reuniões demasiado masculinas, por assim dizer, e vamos trabalhar para que seja de maneira diferente. as primeiras visitantes que eu levei a Bruxelas, uma quota que nós temos e que podemos convidar pessoas para visitar o Parlamento Europeu, para conhecerem as instituições europeias, foram precisamente mulheres, presidentes de junta de freguesia, para provar que elas existem e que aí estão a trabalhar pelas suas terras por este país, no caso na região centro.

NSL: Já há bocadinho referiu isso. Já há legislação portuguesa sobre esta questão das mulheres nos conselhos de administração. Apesar de tudo, a ideia que tenho é que a legislação portuguesa é um bocadinho mais forte no se refere aos cargos executivos. É essa a diferença?

MMLM: Nós somos muitos exigentes nos cargos executivos. Mas também me lembro de dizerem que no setor financeiro não podia ser, que não havia mulheres com currículo suficiente e com experiência de terem exercido as funções. Isto é uma espécie de pescadinha de rabo na boca. Como não há mulheres com experiência, não podem ocupar os cargos, como não podem ocupar os cargos não têm experiência. Mas ficou e elas lá estão e não creio que haja algum banco que tenha ficado sem conselho de administração por não ter encontrado mulheres para integrar esse conselho de administração.

NSL: E o facto de a legislação europeia não ter sido tão forte nessa questão dos cargos executivos tem a ver também com o processo de consenso que tem de se atingir…

MMLM: Tem a ver com a diretiva que estava e agora voltar ao ponto de partida podia ser, outra vez, esperar mais, mais cinco ou seis anos. Houve uma um certo sentido prático. Já tínhamos a diretiva, fizeram-se se algumas melhorias. Mas não se abriu o processo de raiz porque ela já tinha sido aprovada no Parlamento, estava bloqueada no Conselho. E, depois, por outro lado, quando decidimos no processo europeu para 27 Estados membros, há também uma ponderação da realidade dos outros. E isto pode não ser um progresso em alguns Estados-Membros, mas é com certeza um desafio maior para outros países. E isto não impede que aquilo que os Estados vão a frente da diretiva. A diretiva não faz retroceder a legislação nacional

NSL: E já se sentiu alguns efeitos práticos dessa iniciativa?

MMLM: Como comecei por dizer, acho que não senti efeitos práticos de nada que vi aprovado, exceto matéria financeira e durante a pandemia. Foi notável essa mudança. Como é que instituições tão pesadas, com processos de decisão muito presenciais, foram capazes de se adaptar tão rapidamente e decidir tão rapidamente durante a pandemia. Acho que isso merecia quase uma tese de doutoramento.

NSL: Está a falar do Parlamento Europeu?

MMLM: Estou a falar do Parlamento, da Comissão e do Conselho. Estou a falar das três.

NSL: Isso não é uma oportunidade para se pensar como é que as instituições trabalham?

MMLM: É a prova de que não é impossível trabalhar um bocadinho mais depressa ou bastante mais depressa. No Parlamento votava-se tudo presencialmente e, em menos de um mês, conseguimos votar com segurança e sem grandes riscos à distância.

NSL: E tendo em conta a sua experiência em Bruxelas e em Lisboa, no Governo, há uma diferença nos resultados? Trabalhar este tema da igualdade de género a nível nacional e a nível europeu, quais é que são as vantagens?

   

MMLM:

Convergir, trabalhar a nível europeu, pode ajudar a nível nacional, como estamos a ver, pode ser um impulso para se trabalhar melhor, para se trabalhar mais rapidamente.

Mas muitas vezes a legislação europeia também é inspirada nos Estados membros, em legislação que já existe e que os resultados num Estado ou dois ou três. Esse debate também acontece, embora o outro seja mais frequente. Mas, normalmente, a legislação europeia é precedida de estudos de impacto, que também levantam as diferentes situações nos diferentes Estados-Membros. Acho sempre que a legislação europeia, tirando casos particulares, mas por exemplo, agora na violência de género, em especial nas áreas da ciber violência, que são áreas novas, mas muito frequentes e muito frequentes entre jovens, formas de violência nas redes digitais, no namoro, com situações muito graves, acho que impulso europeu é muito importante. É um impulso mais forte e é um impulso que cobre 27 Estados-Membros, que cobre muita gente.

NSL: E visto de Bruxelas, qual é que costuma ser a reação neste tipo de iniciativas que são mais difíceis e polémicas quando surge uma legislação. Há aquele tipo de reações, como estar alguém a milhares de quilómetros a tentar impor-nos uma mudança de mentalidade?

MMLM: Os dados são claros e há situações em que as competências são dos Estados-Membros: na Educação, na Saúde, apesar do que se fez na pandemia, que foi uma interpretação muito criativa dos tratados. E, agora, estamos a discutir se a política de saúde europeia não deve ser reforçada, incluindo criar uma comissão especial no Parlamento Europeu. A Saúde está, neste momento, na Comissão do Ambiente, porque a saúde não é uma competência europeia. A Cultura não é uma competência europeia, a Educação não é uma competência europeia, e nas áreas sociais a maioria também não são competências europeias. Em outras áreas sociais há uma partilha, mas não é uma área forte europeia, como é a política de comércio externo, como é política de concorrência, de segurança, a do mercado interno e a proteção dos consumidores. E, portanto, há divisões de competências. Claro que, [a partir] de movimentos populistas há sempre aquela ideia de que a União se interfere nos seus assuntos internos e agride as suas culturas. Mas penso, como demos o exemplo do digital e de muitas outras áreas que poderíamos continuar aqui a referir, que o facto do nível de decisão subir às instituições europeias traz vantagens para todos os Estados-Membros individualmente considerados. E, naturalmente, nunca podemos esquecer que, como região, do ponto de vista geopolítico e do ponto de vista económico, nós competimos hoje com outras regiões do mundo muito poderosas.

NSL: E com as multinacionais…

MMLM: Com empresas que são cujo PIB é superior ao de muitos Estados-Membros e ao de muitos Estados por esse mundo fora. E, portanto, até me pergunto se não devemos é transferir para o nível da União competências que, neste momento, estão ao nível nacional.

NSL: E acha que isso é um processo que acabará por acontecer inevitavelmente tendo em conta a força dos blocos?

MMLM: Acho que no domínio fiscal temos uma situação muito complicada, com uma concorrência fiscal desleal entre diferentes Estados-Membros, para um exemplo concreto de onde devíamos ter mais harmonização do que aquela que existe atualmente.

NSL: Mas aí já existe o problema dos interesses nacionais.

MMLM: Dei uma área polémica de propósito como exemplo.

NSL: E só através da iniciativa de uma Comissão Europeia se conseguiria impor…

MMLM: É muito difícil neste momento dizer ou defender que devemos alterar os Tratados. Penso que é muito difícil e talvez que devamos aprofundar aquilo que estes tratados nos permitem fazer. Mas eu acho que os tratados dão margem para progredir e que seria muito difícil encontrarmos, neste momento, olhando para a Europa, para a sua geografia política, sem citar nenhum Estado em particular, encontrar um consenso para uma alteração significativa dos Tratados.

NSL: E, aliás, como disse, com um bocadinho criatividade consegue-se sempre arranjar maneira, como aconteceu na Saúde durante a pandemia.

MMLM:

A minha experiência, também aqui em Portugal, é que às vezes não precisamos de mudar a lei. Precisamos de a perceber melhor, de a interpretar e de vermos se, no quadro daquela lei, não podemos ser mais eficazes.

NSL: O digital sempre foi uma das bandeiras da sua carreira política aqui em Portugal. Em que é que Portugal está à frente nessa área quando se compara com outros países?

MMLM: Com outros países, tenho dificuldade em dizer com tanta clareza porque na altura, quando era aqui ministra, fazia muito a comparação. Mas, por exemplo, olhando para a minha experiência de cidadã, a minha experiência de Maria Manuel Leitão Marques a trabalhar em Bruxelas, no Parlamento Europeu…. Aliás, sempre tive essa experiência como ministra, de, muitas vezes, receber cartas de cidadãos ou cidadãs europeias que iam daqui para outros países e, sobretudo, para outros países europeus e me diziam “agora é que eu vejo como é fácil tratar de assuntos com a administração pública em Portugal.” Não conheço lojas como as nossas lojas de cidadão. Nós temos bons serviços online, muito bons comparados com os serviços europeus. Quando cheguei ao Parlamento para me registar, disseram que havia um balcão único. O balcão único era assim uma sala como esta, grande, onde havia cinco filas de secretárias seguidas e em cada uma das cinco eu dei os meus dados todos. Fizeram fotocópias do meu documento de identificação e eu repeti toda a minha informação de uma para outra, porque nem em cinco serviços diferentes do Parlamento Europeu essa comunicação era comunicada entre si. Também se progrediu nesse aspeto, na quantidade de papéis. Estamos melhor agora porque com o Covid não se podia fazer, mas a quantidade de papéis que eram precisos assinar para fazer uma missão quando temos de sair ou quando temos que levar um assistente connosco de Bruxelas para Estrasburgo, que acontece todos os meses, devo dizer, era verdadeiramente inacreditável. Portanto, eu não vou dizer que em Portugal está tudo bem, porque eu nunca o disse sequer quando era responsável desta área e sempre me preocupava mais com as coisas que não estavam bem do que aquelas que eu achava que já estavam a correr bem. Mas, penso que Portugal é, na verdade, um bom exemplo em muitas áreas, desde o IRS automático a muitas outras que podia dizer aqui, não só nos serviços digitais que nós usamos, como digitais, como no digital assistido, que nós temos para as pessoas que não se sentem confortáveis com o seu computador e em sua casa, contactar a administração. Não vou dizer que somos os melhores da Europa, mas estamos seguramente na linha da frente. Agora é preciso termos em conta que aquilo que é novo hoje pode ser velho amanhã. O Cartão de Cidadão foi um projeto notável quando foi feito. Qualquer dia, o importante é não precisarmos de ter cartão e podermos ter outras formas de identificação que não nos exigem mostrar um cartão, para dar [o exemplo de] um projeto que me é muito caro. Cada vez mais, a informação que os serviços públicos já têm sobre nós, permite-lhes adivinhar, no fundo antecipar um problema ou fazê-lo na nossa vez. Por exemplo, dizer que o seu cartão vai perder a validade, clique aqui, pague acolá e receba em casa um novo cartão. Coloque a sua informação biométrica, que também vai ser pedida e transmitida à distância, e sem ter de ir ao serviço, tenho o meu cartão renovado. Não estou a fazer ficção científica, estou a fazer algo que a tecnologia já permite desenvolver e que alguns já viram que pudemos fazer durante a pandemia e que foi, na verdade, desse ponto de vista, um laboratório e uma excelente pressão para melhorar. E foi o facto de nós termos um trabalho feito, de há muitos anos, em matéria de digitalização da administração pública que nos permitiu resistir melhor durante esse período do que muitos outros. E, naturalmente, com certeza que são todos capazes, os que estão aqui e muitos outros que estão lá fora de dizer “ali não corre bem” e as vezes que [perguntam] quando é que o Simplex chega aqui. Vejam lá se o Simplex chega aqui a este procedimento, ou àquele, o que, aliás, eram coisas muito úteis, porque muitas vezes fizemos medidas por causa dessas queixas que recebíamos.

Portanto, digamos assim, a inovação do setor público exige sempre uma pressão de todas e todos nós, de todas as empresas, que são, entre aspas, os clientes dos serviços públicos. Uma pressão para melhorar.

NSL: Muito obrigada por ter aceite o nosso convite. Termina assim mais uma edição do Podcast Política com Palavra. Até para a semana.