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Entrevista de Fernando Medina à revista Visão

Entrevista de Fernando Medina à revista Visão

O presidente da Câmara Municipal de Lisboa recusa que o passe único seja eleitoralista, anuncia novos transportes e lança recados para o interior do PS. E, por ele, era melhor que o partido lutasse por uma maioria absoluta…

Fernando Medina recebeu-nos, esta segunda-feira, 25, no seu esplêndido gabinete nos Paços do Concelho, em Lisboa, no qual se destaca uma peça em cortiça, oferta do artista plástico Vhils, atrás da sua secretária de trabalho.

O presidente da câmara, 46 anos, sente-se bem na sua pele de autarca e assume com naturalidade o protagonismo que, “por inerência deste lugar com muita visibilidade”, o coloca como um dos delfins de António Costa. Tudo a postos para o arranque do primeiro dia do resto da vida do passe único…

A alteração aos passes, que entra em vigor na próxima segunda feira, surge em ano eleitoral. Há um timing estudado?

A boa notícia é que, pelos vistos, toda a gente concorda com a medida. Espero que seja genuíno, porque marca uma rutura com muitas das políticas públicas de transporte e mobilidade nos últimos anos. O timing decorre das últimas eleições autárquicas, a partir das quais foi possível começar a construir o projeto. Este Orçamento do Estado [2019]

é o primeiro depois da cimeira entre os 35 municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e o Governo, em 2018, e do trabalho técnico posterior. Portanto, foi agora, naturalmente.

Parece um pouco contraditório com a capacidade de resposta dos transportes públicos,

nomeadamente CP, metro e barcos, nos últimos tempos…

A Carris tem hoje mais passageiros, mais oferta, mais capacidade e melhores autocarros, melhor serviço, wi-fi a funcionar…

Não estava a falar da Carris…

Há várias áreas em que a oferta já está a melhorar, antes dos tarifários. No caso do metro, há menos composições para- das por falta de manutenção e medidas para aumentar a capacidade comercial. Carris e Metro são praticamente meta- de da operação na área metropolitana. E está a correr o concurso para aquisição dos 10 novos barcos para o Tejo.

Mas quando é que eles chegam?

Vão demorar. Mas também é preciso intensificar a capacidade de resposta de oferta na CP – suburbanos de Cascais e Sintra e Linha do Oeste – e o transporte rodoviário, em que há um concurso para começar a funcionar, no início do próximo ano, com um operador único na Área Metropolitana de Lisboa (AML): a Carris Metropolitana, com marca, bilhética e tarifário únicos e melhores autocarros. Haverá um momento de ajuste nos vários operadores. A Fertagus, que era mais cara, está a preparar-se para esse aumento de procura. No resto, o sistema não vai mudar de um dia para o outro. E a passagem do carro para o transporte público não vai acontecer de um dia para o outro, nem por causa de uma única medida.

Mas quem beneficia imediatamente é quem já tem passe e estará mais vulnerável em termos económicos. Regresso à questão eleitoral…

Então achava-se que podíamos diminuir o preço dos combustíveis, perdendo 150 milhões de euros dos impostos, mas não podemos investir esse dinheiro em passes mais baratos, porque há eleições? Seria um pouco absurdo. As pessoas falam de eleitoralismo, mas nós, autarcas, ainda nem estamos a meio do mandato. Tudo é visto à luz da pré-campanha das europeias e legislativas. Eu não olho para isso nesses termos. Há uma outra crítica, aliás exposta pelo dr. Rui Rio, de que esta medida devia ser custeada pelas câmaras…

Sou muito crítico da forma como o dr. Rui Rio pôs o problema, ao tentar

colocar portugueses contra portugueses, com a ideia de um Interior desprotegido, face à Lisboa rica. O dr. Rui Rio sabe que não tem razão nenhuma. Só quem não conhece a realidade das áreas metropolitanas é que pode olhar para a AML à luz das zonas da Lapa, do Restelo e do Terreiro do Paço. Então há semanas falava-se do bairro da Jamaica, do Seixal, e hoje já é uma área privilegiada? Aqui to- dos os cidadãos têm um alto rendimento e estão a receber subsídios dos pobres do Interior? É uma crítica imprópria para o debate sobre a coesão nacional

e muito injusta para com as centenas de milhares de portugueses, das classes médias e médias-baixas trabalhadoras que moram nas áreas metropolitanas.

Que garantias há de que esta medida é estrutural e não conjuntural, e que se mantém nos próximos anos?

Só faz sentido se for estrutural e espero que nenhum governo a ponha em causa. Em política, é difícil termos uma medida

que consiga tanta coisa ao mesmo tempo: impacto ambiental, económico, de justiça social. O défice externo da economia é crónico, e à cabeça estão as importações de combustíveis e automóveis. E, hoje, o carro nas cidades não é um privilégio dos mais abastados. Infelizmente, é a necessidade de uma parte importante das classes médias e médias-baixas.

Quer dizer que a medida tem custos, mas poderá ter benefícios, nos gastos com importações. Há alguma estimativa?

O objetivo é, em dez anos, recuperar em transporte público o que perdemos em 20. Nos anos da Troika, vingou uma filosofia em que o transporte coletivo só deve oferecer aquilo que auferir

em receitas dos títulos. Isso teve uma consequência e os passageiros caíram a pique. E, quando a economia recuperou, sem oferta e com preços elevados nos transportes, disparou o número

de carros. Em Lisboa, em dois anos, aumentou em 20 mil por dia, são 100 quilómetros de filas a mais.

Mas quantos carros são retirados com esta medida do novo passe?

O nosso objetivo é ter cerca de mais 200 mil utilizadores de transporte público em dez anos e mais 500 mil viagens diárias de transporte público, para aumentar em 40% o uso do transporte público. Se conseguirmos, chegaremos ao valor em que hoje estão os países avançados. A cidade fez uma aposta no arranjo do eixo central e, durante uns tempos, houve muitas queixas em relação ao fluxo do trânsito. Essas obras já se inserem na política de desincentivo do uso  automóvel? A grande visão para a cidade é a sua devolução às pessoas. O que eram a Avenida da República e a Fontes

Pereira de Melo até à nossa intervenção? Fisicamente, a continuação da [autoestrada] A5. A Segunda Circular ligada à A5 através da Avenida da República.

Deve ser caso único de qualquer cidade moderna que tenhamos as principais avenidas do meio da cidade transformadas em autoestradas.

Há muitas cidades em que o eixo central serve para os carros passa- rem. À volta é que há zonas fechadas ao trânsito…

A Avenida da República não perdeu essa marca. Antes das obras, quantas faixas tinha dedicadas à circulação automóvel? Eram 15. Quinze faixas! Não há nenhuma autoestrada do País que tenha 15 faixas, há aqui algo errado. Fizemos o Eixo Norte-Sul, a CRIL e não se fez a adaptação viária dos eixos de entrada na cidade. Hoje, para quem vem da A1, qual é o desemboque natural?

A Segunda Circular.

Exato. Ora, nas últimas décadas a cidade cresceu muito para norte da Segunda Circular e fez-se a CRIL, que é uma via que contorna quase na perfeição todos os limites administrativos da cidade de Lisboa, só que não foram feitas as adaptações como via de circulação. Vindo da A1, só quem conhece é que entra na CRIL, que seria a via natural. Devia ser o principal eixo de distribuição e não funciona como tal.

É realista fazer a transformação que se pretendia na Segunda Circular, com a atual situação do trânsito?

As cidades são para ser vividas pelas pessoas, não para ser pontos de encontro sobrantes de grandes vias de circulação automóvel. Estamos a caminhar na devolução da cidade, com a com- preensão de que há constrangimentos na vida das pessoas. E que, sem alter- nativas credíveis, corre-se o risco de fazermos coisas que tornem a vida mais difícil. A Segunda Circular tem sido incluída nos estudos que desenvolve- mos com Cascais e Oeiras, na possibilidade de integrar corredores dedicados de transporte público a partir da A5. O transporte público ganha mais peso do que na nossa proposta original.

Isso implica subtrair vias de

circulação hoje usadas por veículos comuns…

Não temos nenhuma decisão, quando houver decisão falaremos.

Também existe o cenário de não haver mudança nenhuma?

Neste momento não há nenhuma decisão sobre isso. Até porque está dependente…

E quando haverá? Até ao final deste mandato?

Certamente.

À imagem do que aconteceu com a Carris, defende a municipalização do Metro?

Faz sentido que a área metropolitana (AM) seja a autoridade de gestão de todas as companhias de transportes que operam neste território. Metro, Transtejo e Soflusa, Fertagus, suburbanos da CP, etc. Se isso se traduzirá ou não na posição acionista, é algo que não está “estabilizado” dentro da AM. Eu defendo que sim… Pelo menos, uma participação com relevância na posição acionista das companhias. Aliás, vamos criar a TML (Transportes Metropolitanos de Lisboa), propriedade da AM, que vai gerir, em primeiro lugar, os auto- carros e, em segundo, paulatinamente, a gestão do conjunto dos transportes da AM, o que pressupõe participação acionista.

Um balão de ensaio para uma regionalização – pelo menos, dos transportes…

O que estamos a fazer, com genuíno entusiasmo, já está inventado e aplica-se em muitas metrópoles europeias… Uma vez que os carros entrem em Lisboa, eu só posso arrumá-los ou escolher em que filas ficam… Eu tenho é de assegurar meios para que não tenham de entrar. Nas últimas décadas, o País conheceu avanços notáveis nalgumas áreas, a ambiental, a distribuição de água e saneamento, o tratamento de resíduos… Onde ficámos para trás foi nos transportes.

Isso é mais responsabilidade das autarquias ou dos governos centrais? Este Governo teve uma opção fundamental: passar a tutela dos transportes para o Ministério do Ambiente. Deixou de ser um problema de companhias para ser uma área estratégica com objetivos a atingir.

A pressão do turismo sente-se nos transportes? Há capacidade de resposta? Há elétricos que os habitantes já não conseguem usar…

O turismo está a pressionar o sistema de transportes. É verdade. E a resposta é aumentar a oferta. Por isso, aqui fica outra notícia: vamos financiar, com a taxa turística, a compra de pequenos autocarros com vocação para operar no núcleo central da cidade, onde essa pressão se sente mais. Para funcionar entre o final deste ano e o início do próximo.

Não o preocupa o que parece ser uma excessiva dependência da economia de Lisboa do setor do turismo?

A economia de Lisboa tem como principal polo os serviços, o que inclui o turismo, mas vai muito além disso. O emprego no setor terciário, seja na área dos serviços financeiros, na dos

serviços, tecnológicos ou noutro tipo de serviços é muito expressivo do ponto de vista da estrutura de emprego.

É menos visível do que o turismo, mas basta folhear as páginas dos jornais dedicadas ao imobiliário, para vermos a importância dos espaços para escritório – e não estamos a falar de empresas ligadas ao setor do turismo. O que há

é uma espécie de medo do turismo. Um pouco como a canção do António Variações, “só estou bem onde eu não estou, só quero ir onde eu não vou”… O que é bom é o que não temos… Não

me revejo nisso. Basta olhar para o que era a cidade há dez anos e o que é hoje.

A CML já forneceu um Presidente da República, um primeiro-ministro e continua a ser um espaço de recrutamento para o Governo (pelo menos, este). E o senhor, vai ficar aqui “para sempre”?

Vejo-me como presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Uma função de que gosto muito e que me dá uma enorme motivação, pela capacidade de

fazer coisas que este lugar proporciona. Já estive num governo e devo dizer-vos que a escolha de Lisboa é outra coisa… Se mantiver a confiança do PS, pretendo recandidatar-me.

O primeiro-ministro já veio buscar à CML várias pessoas para o Governo, e há outras que trabalharam com ele na câmara e também lá estão.

Um circuito fechado… E, depois, há o problema das relações familiares no próprio Governo. Isto não está a tornar-se um problema político grave? Pelos casos que foram falados, e para quem conhece as pessoas em causa, percebe-se que nenhum desses laços familiares teve alguma coisa que ver com as respetivas nomeações. Cada caso tem a sua particularidade mas, pelo menos nos casos em que conheço as pessoas, reconheço-lhes toda a autonomia e todo o mérito próprio.

Não vejo aí nenhuma questão.

Só o senhor é que ainda não foi chamado… Está guardado para voos mais altos? Um lugar importante no Governo ou na Europa não o seduz? Não… [Risos.] E mais: há pessoas que sonham desde pequeninas serem secretário-geral do PS. Não sei se é uma atitude que dê muita felicidade. Mas não é o meu caso…

E como é que um homem do Porto se sente na pele de presidente da Câmara de Lisboa?

Sinto-me muito bem. Aliás, quando o António Costa me convidou para nº 2 na lista para Lisboa, eu coloquei-lhe essa questão. E ele disse-me que isso é a história de Lisboa: as pessoas chegam de outros locais. Ele até costuma contar que, na juventude, quando estudava, deixava de ver os seus amigos nas férias de verão, porque iam todos “para a terra”. Só ele não tinha uma “terra” para onde ir… A própria dita rivalidade Norte-Sul não é sentida pelos lisboetas… Na verdade, eu vim para cá quando estava a terminar o meu curso, aqui casei-me, os meus filhos já nasceram cá…

E se fosse ao contrário? Um lisboeta

a ir para a Câmara do Porto?

Pois, isso não sei… Mas há muita coisa que se diz sobre o Porto que pouco tem que ver com os sentimentos das gentes do Porto… E o Porto também mudou muito, abriu-se muito, nos últimos 20 anos. Mais: o centralismo também afeta a cidade de Lisboa. O centralismo do Terreiro do Paço não tem nada que ver com os Paços do Concelho…

Afinal, que oposição tem, na câmara? A do PSD, do PCP ou… a de Assunção Cristas?

Há diferenças de posicionamento político na câmara. O PCP e o PSD procuram encontrar convergências com o executivo, sem nunca deixarem de manter as diferenças, enquanto o CDS prossegue uma política quase de terra queimada

em relação aos principais dossiers do governo da cidade, muitas vezes sem ter em conta os interesses da própria cidade, mas sim a sua agenda partidária.

O PS deve, no futuro, encontrar mais pontos de convergência com o PSD de Rui Rio, para grandes temas estruturantes ou reformas?

Não faz parte da cultura política de um grande partido democrático, com vocação de governo, ter posições sectárias, relativamente ao exercício da governação. E deve procurar alargar a

abrangência das opções que toma, preservando a sua autonomia estratégica. Não se deve erguer nenhuma barreira ao diálogo político com o PSD. O CDS é que se autoexclui por achar que se afirma melhor nesse tipo de estratégia e não tem a autoconfiança necessária para procurar entendimentos.

A Geringonça é para continuar? Ou o Governo fez o necessário, esta legislatura, para que o PS mereça uma maioria absoluta?

O PS merece a confiança dos portugueses. Conseguiu cumprir a agenda, à esquerda, garantindo o apoio parlamentar e, em simultâneo, uma governação próxima do exemplar, em matéria financeira. Mas têm medo de pedir uma maioria absoluta?

O voto é individual. Mas, se quer a minha opinião, eu acho que seria melhor o PS ter uma maioria absoluta. O acentuar das divergências nesta campanha mos- trará que os resultados de uma governação não são os mesmos, se a correlação de forças for uma ou for outra. E acho que esses resultados serão melhores se o PS sair reforçado das próximas eleições. Se a Madonna lhe pedisse…

… Um passe único?… [Risos.]

Não. Mas um palacete emprestado para gravar um videoclipe, com a presença, no seu interior, de um equídeo, o senhor autorizava? [Sorrisos.] Não conheço o caso concreto desse diferendo com o meu colega de Sintra [Basílio Horta, que recusou facilidades à cantora, no palacete da Quinta Nova da Assunção, em Belas]. Em Lisboa, dependeria do imóvel e dos riscos para a sua preservação.