“Infelizmente, a História tem demonstrado que aquilo com que Aristides de Sousa Mendes foi confrontado continua a ser uma realidade de hoje e, por isso, é muito importante que estes valores sejam lembrados”, disse António Costa, em Lisboa, no final da cerimónia de concessão de honras de Panteão Nacional ao antigo cônsul português em Bordéus, que salvou milhares de judeus e outros refugiados do regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial.
“Que estes valores sejam lembrados por homenagem devida aos atos que foram praticados no devido tempo, mas também como inspiração para aquilo que temos que continuar a fazer e para manter bem vivos estes valores”, acrescentou.
O primeiro-ministro disse ainda que hoje se vivem “novas realidades”, mas que, no fundo, o que está em causa “é exatamente o mesmo: a proteção da dignidade da vida humana, a proteção das vidas, daqueles que buscam salvação”.
Ferro Rodrigues evoca “figura maior do século XX português” e alerta para fenómenos atuais
Na cerimónia, o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, evocou também o “ilustre português” Aristides de Sousa Mendes, numa intervenção em que alertou para fenómenos atuais de ódio racial, homofobia, antissemitismo e “recusa do outro”.
“Oito décadas passadas sobre os acontecimentos de Bordéus, é, porém, com sobressalto que, pela Europa e pelo mundo fora, se verifica que o registo histórico do sucedido pode não ter ficado suficientemente enraizado na memória coletiva das democracias que desde então foram emergindo”, declarou a segunda figura do Estado português, numa cerimónia que contou também com a intervenção do Presidente da República.
Ferro Rodrigues lembrou, “a este propósito, o aumento evidente de fenómenos de antissemitismo, de ódio racial, de homofobia, de recusa do outro, por ser estrangeiro ou diferente”, assim como “o recrudescimento de discursos negacionistas do Holocausto e das vidas das suas vítimas, cujo testemunho na primeira pessoa vai, por força da lei do tempo, começando a desaparecer”.
Durante o seu discurso, o presidente do Parlamento recordou o percurso de vida do antigo cônsul que decidiu “desafiar as ordens de Lisboa”, o que “comportava riscos evidentes” para a “sua própria vida, para a sua liberdade, para o seu sustento e o da sua família”, realçando que Aristides de Sousa Mendes optou, no entanto, “por obedecer à sua consciência e, independentemente da religião, raça ou convicções políticas, emitiu vistos a todos os que o solicitaram, e que procuravam noutras geografias apenas um refúgio que salvaguardasse a sua vida, a sua liberdade e a sua dignidade”, referiu.
“Todos concordarão que o exemplo de generosidade e de coragem de Aristides de Sousa Mendes engrandece Portugal e prestigia o povo português. Tenho a certeza de que a maioria das pessoas gostará de pensar que, se alguma vez estivesse perante um dilema equivalente, escolheria não olhar para o lado e tomar a decisão ética, enfrentando as consequências. Felizmente, poucos de nós são confrontados na vida real com tal dilema”, declarou.
“E, quando algo de extraordinário como isso acontece, somos tocados pela grandeza”, acrescentou, confessando que a “enorme coragem” do antigo cônsul sempre o emocionou.
Eduardo Ferro Rodrigues deixou ainda um agradecimento ao grupo de trabalho parlamentar responsável por definir o processo de concessão de honras de Panteão Nacional.
“Aristides de Sousa Mendes foi figura maior do século XX português. Que o exemplo da sua conduta, a que hoje aqui prestamos homenagem, sirva de farol em tempos de novas dificuldades e desafios para a memória coletiva, demonstrando o valor da resistência ao injusto e desumano. Que a sua entrada no Panteão Nacional contribua para perpetuar a sua memória”, concluiu.
Aristides de Sousa Mendes assumiu funções, pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, como cônsul português em Bordéus, França, salvando milhares de judeus e outros refugiados do regime nazi com a emissão de vistos à revelia das ordens da ditadura – a maioria entre 12 e 23 de junho de 1940 – o que lhe valeu mais tarde a expulsão da carreira diplomática, acabando por morrer na miséria, em abril de 1954.
Em abril de 1988, a Assembleia da República decretou, por unanimidade, a reintegração, a título póstumo, na carreira diplomática do ex-cônsul em Bordéus, reconhecendo-se também o direito a indemnização reparadora aos herdeiros diretos.
No seguimento da aprovação, em julho de 2020, de um projeto de resolução na Assembleia da República, foi constituído, em outubro do mesmo ano, um grupo de trabalho responsável por definir o processo de concessão de honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes, contando com representantes de todos os partidos (exceto o Chega) e familiares do antigo cônsul.