Durante o debate sobre iniciativas de vários partidos que pretendem transformar crimes contra a liberdade sexual ou contra a liberdade pessoal em crimes públicos, crimes esses – como a violação, a coação sexual e a ameaça – que hoje são semipúblicos, a socialista asseverou que “se o crime for público, o processo penal pode existir contra a vontade da vítima”.
Cláudia Santos deixou a questão: “Porque é que é melhor para a vítima que o crime seja público quando num crime público a vontade do Estado se sobrepõe à vontade da vítima?”.
“Poder-se-ia argumentar que as vítimas adultas destes crimes não têm verdadeira liberdade de escolha. Se pudessem escolher, quereriam sempre que os seus agressores fossem julgados e condenados. Sucede, porém, que naqueles casos em que a vítima tem interesse na existência do processo penal, mas não se queixa porque está coagida, ou intimidada, o Ministério Público já pode instaurar oficiosamente o processo”, explicou a coordenadora do Grupo Parlamentar do PS na Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, que afiançou que “é assim desde 2015”.
De acordo com a socialista, “estas iniciativas só ganham sentido, portanto, pressupondo que esta válvula de segurança não chega, acreditando que o processo penal é a melhor solução para todas as vítimas de crimes sexuais”. Neste seguimento, Cláudia Santos deixou mais uma pergunta: “Se estamos a falar de vítimas adultas – e estamos –, como é que se pode saber aquilo que é melhor para elas sem lhes perguntar? Como é que podemos aceitar um tal paternalismo em relação a vítimas adultas?”.
Cláudia Santos alertou que estas vítimas, maioritariamente mulheres, deixariam de “estar subordinadas à vontade dos seus agressores, maioritariamente homens,” e passariam a “estar subordinadas à vontade do Estado”.
“Temos de perguntar a estas vítimas adultas que respostas precisam que o Estado lhes dê”, defendeu a deputada do PS, que esclareceu que “a existência de um destes crimes pressupõe uma prática sexual não consensual e a existência do dissentimento só a vítima adulta poderá, em muitos casos, afirmar”.
“Precisamos de perguntar às vítimas o que querem, porque o contacto com o processo penal pode trazer-lhes sofrimentos que não desejam”, destacou a parlamentar, que exemplificou com o exame médico-legal, “que é intrusivo”, e com a “sujeição da vítima ao contraditório da defesa do arguido”. “Por mais que adotemos medidas para evitar a vitimização secundária, há momentos do processo que não podemos evitar”, atestou.
Cláudia Santos referiu-se depois à colaboração da vítima, que “é muitas vezes indispensável para que o processo penal tenha alguma utilidade”, e mencionou que “um estudo no âmbito do Instituto Nacional de Medicina Legal concluiu que a ausência de evidências físicas e o secretismo que caracterizam a grande maioria dos casos levam a que o relato da vítima seja, frequentemente, um dos únicos elementos de prova”. Ora, “se a vítima não quiser o processo penal, impor-lho será uma outa violência”, disse.
“Finalmente, estes crimes não devem ser públicos, porque a violência sexual tem efeitos devastadores, a médio e a longo prazo, e é profundamente errado fazer supor que tais efeitos se ultrapassam através da mera imposição do processo penal”, avisou a parlamentar, que enumerou a gravidez, as infeções do trato reprodutivo e as doenças sexualmente transmissíveis como alguns desses efeitos.
Criação de mais centros coordenados especializados
Cláudia Santos frisou que “estas vítimas têm múltiplas necessidades e devem poder recorrer a diferentes sistemas formais”, e revelou que “só cerca de 26 a 40% fazem queixa à polícia, outras vítimas procuram apoio médico e forense, outras ainda procuram o apoio de serviços mentais”.
Ora, a solução é “procurar soluções novas, mais eficientes do que as velhas”. Um dos caminhos é dar resposta “em centros coordenados especializados, como pretende o Conselho da Europa e impõe a Convenção de Istambul”, asseverou.
Desta forma, “num único espaço a vítima deve poder ser ouvida, aconselhada e encaminhada para as diferentes respostas de que precisa”, clarificou a deputada do PS, que recordou que em Portugal há “quatro espaços que oferecem essa resposta coordenada”: “O Centro de Crise para Vítimas de Violência Sexual, em Lisboa, criado em 2016; o Projeto EIR, criado em 2018, no Porto; o Projeto Criar, Casa, existente no Porto desde 2020 e destinado a menores; o Projeto Quebrar o Silêncio, criado em 2017 e destinado a homens e rapazes vítimas de crimes sexuais”.
“Precisamos de aprofundar esse caminho que este Governo começou a trilhar”, declarou Cláudia Santos, que sublinhou que “nenhuma vítima de um crime sexual que precise de ajuda médica ou psicológica deve deixar de a procurar por não querer expor-se num processo penal”.
E explicou a posição do Partido Socialista: “O que queremos é que todas as vítimas de crimes sexuais sejam escutadas, aquelas que querem o processo penal e aquelas que não o querem, mas que precisam, ainda assim, do auxílio do Estado”.
Governo tem trabalhado para combater violência doméstica
Já sobre as iniciativas em debate sobre violência doméstica, que pretendem reforçar o apoio às vítimas deste crime, a prevenção e a formação em meio escolar, a deputada do PS Elza Pais alertou que tudo isto “já está a ser feito, e até está a ser feito mais do que aquilo que se propõe”.
A violência doméstica e o homicídio conjugal foram agravados pela pandemia, “não porque as queixas sejam mais – que não são –, mas porque a denúncia é menor”, disse a também presidente das Mulheres Socialistas. “Ou seja, a opressão e as agressões estão mais silenciadas, sendo esta uma das mais brutais manifestações da perda de autonomia que a crise provocou às mulheres – terem de viver confinadas com o agressor”, lamentou.
A parlamentar deixou a garantia de que o Governo não esteve de braços cruzados, tendo criado “novos lugares em casas de abrigo, criou estruturas residenciais para vítimas idosas, criou linhas SMS confidenciais, lançou campanhas de esclarecimento e números para queixas eletrónicas reforçadas, alargou redes de atendimento”.
O Executivo lançou também formação para professores no âmbito da educação para a cidadania, lançou guias de boas práticas para os órgãos de comunicação social, e guias de intervenção integrada para crianças e jovens vítimas de violência doméstica em estreita articulação com a CPCJ.
“Está em curso também um mecanismo de proteção de vítimas nas 72 horas subsequentes à apresentação da queixa, bem como a revisão da ficha de avaliação de risco”, acrescentou Elza Pais, que mencionou ainda o Plano de Recuperação e Resiliência, que “sinaliza as vítimas de violência doméstica em vários domínios, mas também nos apoios prioritários à habitação”.