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Temos de olhar para o mapa de forma diferente e redescobrir a função económica do interior

Temos de olhar para o mapa de forma diferente e redescobrir a função económica do interior

Publicamos hoje a segunda e última parte da entrevista ao Secretário-geral do PS e primeiro-ministro, António Costa, conduzida pela jornalista Maria Elisa, que teve a amabilidade de aceitar o convite e o desafio do AS Digital, por ocasião do nosso terceiro aniversário.
Temos de olhar para o mapa de forma diferente e redescobrir a função económica do interior

Nesta segunda parte de uma abrangente e estimulante conversa, estiveram em destaque, entre outros temas, as condições de acesso e a qualidade dos serviços públicos de saúde e os desafios inerentes à valorização e revitalização económica do interior do país.

Esta semana ainda, numa conferência sobre sustentabilidade em saúde, foi divulgado um estudo da Universidade Nova, segundo o qual quase dois milhões de portugueses faltaram a consultas por não terem dinheiro para os transportes e para as taxas moderadoras. Foram números que impressionaram o país. E a si?

Impressionam toda a gente, porque é uma dimensão muito significativa. E é por isso que é essencial continuarmos a melhorar quer as condições de rendimento das famílias, quer a diminuir os custos da saúde. Já diminuímos em 25% o valor das taxas moderadoras ao longo destes dois anos, o que também permitiu que esses níveis de dificuldade de acesso, que agora estão nos 10%, resultem já de uma evolução em queda que estava nos 12,5% há dois anos. E é esse processo de melhoria da acessibilidade que é absolutamente essencial prosseguir.

Como é que isso se pode fazer? A dra. Maria de Belém disse na conferência – e bem – que as taxas moderadoras são cegas. Não deveriam ser, pois não? Deveriam ter ali um fator de correção imediata.

E devem ter. Não devem diferenciar em função do rendimento, mas em função do serviço e do acesso em concreto que se procura ter. E essa é a modulação que se tem procurado fazer, tendo em vista assegurar um melhor acesso aos serviços de saúde.

Agora, um melhor acesso tem a ver também com a distância. E é por isso que o desenvolvimento das Unidades de Saúde Familiar (USF) é uma prioridade fundamental. Porque se nós continuarmos a depender exclusivamente das consultas em sistema hospitalar, isso obviamente coloca um problema de deslocação maior do que se a saúde fosse assegurada por maior proximidade. A meta que temos, de criação de 25 USF por ano, tendo em vista 100 no conjunto da legislatura, é um esforço que tem vindo a ser prosseguido para termos uma saúde mais próxima e de melhor qualidade para servir os cidadãos.

Se há uma doença em relação à qual devia haver uma desigualdade pela positiva, é com certeza o cancro. E, no entanto, também houve um agravamento no acesso inicial, após ser feito o diagnóstico, a um médico oncologista. Foi o seu Governo que estabeleceu um limite temporal para esse acesso e, no entanto, no ano passado só 45% das consultas não foram feitas nesse prazo. Considera isso razoável?

A existência desses parâmetros é importante, precisamente para podermos ir avaliando o desempenho do sistema. Agora, nós tivemos anos sucessivos de grande desinvestimento no conjunto de todos os serviços públicos. Se começar numa esquadra e acabar num hospital, dificilmente encontrará algum serviço onde o desinvestimento acumulado não gere, ou problemas de instalações, ou carência de equipamentos, ou carência de pessoal, ou tudo junto. Eu diria que não deve haver nenhum onde pelo menos uma dessas coisas não aconteça.

O esforço de recuperação é um esforço muito grande. É sempre possível, obviamente, ilustrar um problema aqui ou ali em qualquer um dos serviços, designadamente no serviço de saúde, seja nos centros de saúde, seja nos hospitais. Agora, se nós virmos no conjunto, aquilo que verificamos é que – e todos os estudos o indicam – hoje temos mais consultas nas USF, mais consultas nos hospitais, mais intervenções cirúrgicas, em todo o SNS, do que tínhamos há dois anos. Assim como temos mais 5 mil e 500 profissionais no SNS, entre médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e outros profissionais.

Que ainda não chegam. Continuamos abaixo da média, apesar de tudo.

Esse é o caminho que temos de continuar a fazer. Continuar a ir, passo a passo, conseguindo reforçar as condições de funcionamento, quer em pessoal, quer em equipamento, quer em instalações, quer em novos serviços. Sendo que, infelizmente, na vida politica nós não podemos ter um único e só objetivo, temos de compatibilizar as prioridades que temos na saúde com as que temos na educação; as da educação e da saúde com a melhoria do sistema prisional; as da melhoria do sistema prisional, a educação e a saúde com as das forças de segurança, com a necessidade de melhorar os transportes. E depois, no meio de tudo isto, de termos umas finanças públicas relativamente equilibradas.

Portanto, o exercício tem de ser obviamente um exercício com metas claras, objetivos claros, determinação, mas com a compreensão de que é impossível de um dia para o outro repor aquilo que foram anos e anos de desinvestimento no conjunto desses sectores e em que de repente tudo falta. Porque obviamente isto tem um efeito cumulativo. Muitas vezes, camaradas meus do PS dizem: “mas é muito injusto, estão a fazer mais e ouve-se mais queixas”. É que o desinvestimento teve um efeito cumulativo e provavelmente, apesar do maior investimento que está hoje a ser feito, algumas das coisas ainda estão pior porque é o acumulado que se vai continuando a produzir. Essa inversão implica que continuemos a trabalhar nesta legislatura e para além desta legislatura.

O SNS, além de ser essencial para o país, é um território que está intimamente ligado ao Partido Socialista. Nasceu com um socialista, com o dr. António Arnaut, e neste momento há uma comissão, presidida pela dra. Maria de Belém, que está a estudar uma nova Lei de Bases. O que espera, de diferente, dessa nova Lei de Bases?

Para já, espero que a comissão desenvolva o seu trabalho e nos apresente o seu relatório. A pior coisa que podíamos fazer era condicionar à partida o trabalho da comissão. A comissão é composta pela dra. Maria de Belém e por vários excelentes técnicos e profissionais, e o que nós aguardamos é que possa haver uma reflexão de conjunto sobre a Lei de Bases. Há, aliás, contributos concretos, um deles recentemente apresentado publicamente pelo dr. António Arnaut e pelo dr. João Semedo, mas que é uma das fontes e não a fonte exclusiva do trabalho da comissão, visto que há outras contribuições e outros contributos.

Não se pode falar da desigualdade sem falar do interior. Ouvi há dias o dr. Miguel Cadilhe, um dos animadores do Movimento pelo Interior, lembrar que Portugal é o país mais desigual da Europa. O que é mensurável – muitas pessoas não o saberão – porque depende da percentagem do PIB aplicada no interior. O que é que também aí se pode fazer, que não seja só aquela descentralização administrativa de que o senhor tem falado? Acha que isso chega para o interior?

A descentralização administrativa é uma condição, mas é manifestamente insuficiente. O que é fundamental, em primeiro lugar, para o interior, é redescobrir-se a função que aqueles territórios podem ter. Os territórios não existem por si, existem em função de projetos e da economia em que se inserem. É assim no interior e é assim sem ser no interior. Eu costumo chamar a atenção de que o interior não é nenhuma fatalidade: a cidade mais desenvolvida de toda a Península Ibérica é a cidade mais interior, que é Madrid.

O que acontece é que nós durante séculos vivemos virados para o Atlântico, até por uma questão de sobrevivência e de afirmação da soberania nacional. Por isso é que chamamos interior ao que é simplesmente a nossa faixa do território mais central no contexto da Península Ibérica. Se nós deixarmos de olhar só para o Atlântico e como um pequeno retângulo com 10 milhões, mas passarmos a olhar para sermos uma parte de um grande mercado de 60 milhões que existem na Península Ibérica, o que nós percebemos é que se nos virarmos de costas para o Atlântico por um momento e olharmos para a Península Ibérica aquilo a que chamamos interior é provavelmente uma centralidade, que está por aproveitar. E isto é muito importante para desenhar toda a estratégia de desenvolvimento do país. Porque nós desenhámos as infraestruturas todas de ligação do chamado interior ao litoral e esquecemos que era fundamental ligar esse interior ao lado de lá da fronteira. Em Bragança estão a 30 km do TGV e a uma hora e meia de Madrid, e nós estamos a décadas de um TGV e estamos seguramente a cinco ou seis horas de carro de Madrid.

Nós temos de olhar para o mapa de uma forma diferente. Enquanto não o fizermos, podemos eliminar as portagens, podemos eliminar o IRC, podemos fazer os incentivos todos, mas só há uma forma de fixar população, que é criando emprego. E só se cria emprego onde há atividade económica que gere emprego. A cidade de Detroit foi uma das cidades mais ricas dos Estados Unidos porque era a capital da indústria automóvel, quando a indústria automóvel saiu de Detroit e foi para a Ásia, a cidade de Detroit abriu falência e tem milhares de fogos devolutos e abandonados, ruas inteiras completamente ao abandono. E Detroit só vai renascer quando encontrar uma nova função económica que substitua a indústria automóvel que desapareceu.

O problema é que o nosso interior há muito tempo que perdeu uma função económica e essa função económica tem que ser reinventada, a partir do turismo, seguramente a partir de uma boa gestão e de uma valorização da floresta, de uma boa valorização do desenvolvimento rural e dos produtos naturais. Tem que ser reinventada a partir da excelência do Ensino Superior que hoje se ministra no interior. No Instituto Politécnico de Bragança temos a professora que tem o maior número de patentes registadas em Portugal, a professora Isabel Ferreira. Só no centro que dirige, trabalham 88 doutorados. Esse conhecimento que está a ser produzido vai ser essencial para a valorização de todo este mundo rural.

Em que é que isso pode servir ao senhor Ângelo, aquele senhor que andou uma hora e tal, de noite, à procura de um telefone para poder avisar que tinha a mulher no chão, porque ainda não tinha, meses depois dos fogos, o seu telefone fixo reposto.

Felizmente o problema do senhor Ângelo é muito mais fácil de resolver. É só os concessionários cumprirem as suas obrigações de assegurar a reposição – que já deviam ter feito – das comunicações que ainda estão por fazer.

Há uma população envelhecida, só, isolada. Essa população já não vai a tempo de usufruir desse ensino de excelência, etc.

Se nós continuarmos a olhar para o interior como podendo viver exclusivamente dessa população envelhecida e com as condições que hoje tem, é evidente que não vamos lá. O país investiu, ao longo destes 43 anos de democracia, em eletrificar, levar a água, as infraestruturas. Levou as escolas, levou os centros de saúde, levou os hospitais, levou as vias de comunicação, levou até o Ensino Superior. O essencial e o que falta, agora que tudo isto existe, é conseguir-se que haja a compreensão de qual é a função económica que aquele território pode e deve ter.

Nós hoje já temos, na distribuição dos fundos comunitários, os instrumentos que favorecem a localização das empresas no interior. E muitas empresas estão a ir para o interior. Há regiões do interior onde, neste momento, há já muita falta de mão de obra, porque as empresas que se instalaram lá foram capazes de absorver significativamente a mão de obra. Agora, nós temos um país onde há muito pouca mobilidade territorial. Quase todos acabámos por comprar casa, ficámos amarrados a hipotecas ou, mesmo depois da hipoteca paga, agarrados à casa e, portanto, a mobilidade dentro do país é muito diminuta.

É uma cultura.

Mas é uma cultura que se tem que transformar e modificar. Porque senão teremos muitas vezes um grande desencontro entre a oferta e a procura de trabalho. Em muitas regiões e concelhos as empresas já se queixam de falta de mão de obra. Há um grande grupo, em Tábua, que tem um serviço próprio de autocarros que vai recolher trabalhadores a 12 concelhos vizinhos porque não consegue em Tábua arranjar trabalhadores suficientes para as suas necessidades. Se for ao Alto Minho, hoje, com o desenvolvimento de toda a indústria de componentes de automóveis, muito ligada à exportação para a Galiza, e ao revigoramento de todo o têxtil e das confeções, também para a Galiza, tem inúmeros concelhos já com imensa falte de mão de obra. E, ao mesmo tempo, tem outros concelhos, designadamente aqui na área metropolitana de Lisboa, onde há um nível de desemprego muito superior ao da média nacional. Esse esforço de deslocalização é uma questão cultural e temos de encontrar bons incentivos. Quando vejo muitas vezes proporem-se incentivos em sede de IRC, pergunto-me se eram mais eficazes incentivos em sede de IRS, porque mais importante do que incentivar a deslocalização das empresas é incentivar a deslocalização das próprias famílias.

Hoje completam-se dois anos sobre o mandato do Presidente da República. Pedia-lhe que caracterizasse a atuação do Presidente da República em três adjetivos. Uma pessoa que conhece bem, é fácil para si.

É uma pessoa próxima das pessoas. É uma pessoa que tem sido solidária do ponto de vista institucional, e que tem contribuído para represtigiar a função presidencial.

Uma última questão. Há algum alarmismo, comos sabe, relativamente às anomalias detetadas na ponte 25 de Abril. E sabemos todos que um grande concurso internacional não vai, com certeza, permitir que as obras arranquem antes do fim do ano. Eu gostava que aproveitasse esta ocasião para tranquilizar, se puder, a população que utiliza diariamente a ponte 25 de Abril.

Melhor do que eu, quem pode tranquilizar, como o fez ontem, foi o presidente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, que disse com toda a clareza: “a ponte esteve segura, está segura e continuará a estar segura”.

Apesar dessas fissuras terem sido detetadas há meses.

Primeiro sinal que é importante: a ponte não deixa de estar a ser vigiada e auditada por uma entidade independente como é o Laboratório Nacional de Engenharia Civil, que prescreve quais são as intervenções que são necessárias. E o próprio Laboratório diz que essas intervenções são necessárias, mas não constituem, neste momento, um perigo para a circulação na ponte e que o calendário que está previsto para a realização das obras é perfeitamente comportável com os níveis de segurança que a ponte tem que ter.

Portanto, está completamente tranquilo nessa matéria?

Eu não sou engenheiro. Agora, se não confio no presidente do Laboratório Nacional de Engenharia Civil e nos estudos do Laboratório Nacional de Engenharia Civil, então aí o mundo fica um bocado ao contrário. Aquilo que nós temos de fazer é confiar na informação técnica. Porque são os mesmos técnicos que detetaram os problemas, que dizem que os problemas necessitam obviamente de solução, mas que não constituem uma ameaça iminente.

AGRADECIMENTO

Agradecemos à Maria Elisa ter aceitado o convite para conduzir esta entrevista, renovando a sua disponibilidade, tal como há três anos, por ocasião do primeiro número do AS Digital, então na companhia de Vicente Jorge Silva, voltando a presentear-nos com o seu talento e inexcedível profissionalismo.