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Opinião: Talvez pescar

Terminados definitivamente, o “Coro dos Defuntos” de António Tavares, arquivado para sempre nas prateleiras, infelizmente pejadas, da novelística portuguesa contemporânea, e a “República corrigida e aumentada” do meu amigo José Medeiros Ferreira, que me deu o grato prazer de entender o movimento militar do 28 de Maio, e as contradições dos seareiros a respeito dele, mergulhei de novo na memorialística, tentação irresistível.

Comecei por “Salazar visto pelos seus próximos”, onde me deliciei com alguns dos seus comentadores, catalogados por um autor de que leio quase tudo e que, malgrado as diferenças de pensamento, sempre muito apreciei, Jaime Nogueira Pinto. Não discutirei individualmente os comentários de gente ainda viva, mas sempre direi que me desiludiram as apreciações dos que mais alto se haviam erguido no firmamento salazarista e que neste depoimento já antigo pareciam cansados do fantasma e mortos por dele se libertarem. Passarei à frente nas auto justificações de longas e serenas governanças, direi que esperava menos daquele que se considerava uma mera esferográfica do senhor Presidente do Conselho e ainda que apreciei como sempre a irreverência de um antigo ministro obrigado a usar chapéu, pela amável e irrecusável oferta do ditador, já frente ao bengaleiro da saída – “não se esqueça do seu chapéu” – episódio do qual se disse cada coisa e o seu contrário: que o visado sempre recusara o chapéu, ou que o passara a usar. Detive-me nos depoimentos de dois colegas de curso, ambos seus secretários e que li com o duplo prazer da proximidade do conhecimento e do pequeno detalhe, quase íntimo.

Tenho pena que Jaime Nogueira Pinto, não tenha aproveitado esta 5ª edição para se espraiar um pouco mais na descrição do personagem contraditório e de que ele é hoje um dos mais reputados especialistas. Soube-me a pouco.

Continuei no quase memorialismo de “Gritante Justiça” de António de Almeida Santos. Não consigo assentar na ideia de que já não tenho ao alcance aquele abraço sempre caloroso, “como estás tu, meu velho?”, seguido do exagero da sua bondade milenária “muito bem escreves tu”, ao que eu retorquia com habitualmente com o “aprendi contigo, somos das mesmas águas, tu encostado à Estrela, eu ao Caramulo”. Além do mais, de semelhante classe social, a classe média das Beiras, letrada pela revolução da instrução pública da República.

Almeida Santos tinha 32 e eu apenas 15 quando o venerei na Beira, Moçambique, em duas épicas sessões da candidatura do general Humberto Delgado. Ficou sempre um dos ídolos da minha juventude.

Este livro é uma peça de história contemporânea. Desfaz todas as aleivosias com que alguma direita, frustrada de 1974, inventou uma sua suposta passagem de advogado do capitalismo luso em África a dirigente político na Metrópole. Santos demonstrou bem o quão consciente estava do fim irremediável das colónias e o quanto pugnou, perante Salazar e Caetano, por uma solução gradualista e pacífica, até ao desenganado manifesto dos Democratas de Moçambique, de fevereiro de 1974. Mesmo para quem se recuse às evidências antecipadas, ao menos que se delicie com a leitura do português escorreito e elegante, primoroso e generoso, que Almeida Santos nos deixou. O reconhecimento do velho ditador por essa pureza de linguagem, talvez lhe pudesse ter aberto portas negociais, mas do lado de lá, a idade era já muita e o enredo da meada impossível de desembaraçar.

Mergulhei num John Grisham (“Os segredos de Gray Mountain”) como quem mergulha numa água a 25 graus de um ambiente de 37. Recusei-me a sair, antes do final. Preso pela intriga e pela finura novelística de um dos mais interessantes escritores da transição do século, embalado pelo ambiente de Nova Iorque, DC e os montes Apalaches, que tanto seduzem os europeus, fiquei incomunicável durante horas. Depois disso, talvez só talvez a pesca me consiga prender

(in Acção Socialista)