Opinião: Proteção da liberdade religiosa
A liberdade fundadora do constitucionalismo, do estado de direito e das democracias modernas, é a liberdade de expressão. Contudo, a luta que vai convulsionar o antigo regime e promover as profundas transformações sociais, económicas e políticas de que resultou a modernidade, é a luta pela liberdade religiosa. Esta tornou-se um dado matricial da nossa contemporaneidade. A salvação e a graça são dons essencialmente irredutíveis a qualquer esforço de ponderação racional e nisso consiste, essencialmente, a força da fé religiosa. A força de todos os credos – mesmo daqueles que dispensam a divindade – mas sobretudo das religiões monoteístas que se tornariam hegemónicas no ocidente europeu envolvido numa guerra civil milenar contra as heterodoxias e lançado depois, a partir de São Luís, nas cruzadas contra o islão, para de novo se dilacerar internamente na cisão da cristandade, quando Lutero desafia a autoridade de Roma. Os fluxos migratórios provocados pelas perseguições e pelas guerras religiosas europeias deram um contributo substancial para a colonização do novo Mundo e marcaram a identidade das novas comunidades instaladas na América do Norte. E já no século passado, a Europa afogou-se de novo em sangue, no horror agnóstico que produziu o holocausto em nome de uma “raça superior” – o equivalente bárbaro e primitivo do povo bíblico.
A liberdade religiosa e de consciência, a liberdade de expressão, a reserva da intimidade privada, o princípio da igualdade e a proibição da discriminação representam valores historicamente indissociáveis e configuram um perfil de dignidade humana de vocação universal que, revestindo embora as mais diversas formas, irá contaminar todas as sociedades do nosso tempo. Uma operação que se concretizou em dois tempos. Primeiro, pela inscrição dos direitos e liberdades em proclamações solenes com valor de lei. Segundo, pela fronteira traçada entre público e privado, entre Estado e sociedade, que, simultaneamente, conformam um espaço de autonomia dos particulares, invulnerável às ambições da máquina estadual mas, reciprocamente, libertam o poder público dos imperativos da consciência e das exigências da fé. É nesta fronteira que se inscreve o princípio da laicidade. O seu traçado, porém, iria revelar-se extraordinariamente problemático e suscitar tais dificuldades que a sua aplicação se transformou num exercício preponderantemente casuístico. A diversidade das experiências de integração de comunidades culturais das mais exóticas proveniências, consagrou uma multiplicidade de práticas bem expressa nas polémicas suscitadas pelo uso do véu, a proibição dos crucifixos em lugares públicos, o trabalho ou a prestação de provas académicas nos dias consagrados ao descanso semanal. À semelhança do que ocorreu com outros direitos, foi-se admitindo que a intervenção regulatória do poder público não se confinava às relações clássicas entre o Estado e a sociedade civil mas era também reclamada nas relações entre privados, desde logo, no âmbito do direito de trabalho, mas também nas matérias de igualdade de género, deficiência ou orientação sexual.
Tal como afirma Fernando Ribeiro, assessor jurídico da Comissão de Assuntos Constitucionais da Assembleia da República, na dissertação de mestrado que submeteu à Universidade Nova de Lisboa, “paralelamente à visão tradicional – que considerava estas crenças ou convicções como um aspeto da vida privada do trabalhador, alheio às exigências produtivas e de condições de trabalho – tem vindo a juntar-se uma outra, muito mais próxima da perspetiva autónoma de proibição da discriminação”. E a propósito dos debates no Plenário da Assembleia, aquando da aprovação da Lei de Liberdade Religiosa, em março de 2000, cita a intervenção do autor do projeto socialista, José Vera Jardim: “Os estudos sobre a realidade religiosa do país, para além da produção católica, não estão, infelizmente, muito desenvolvidos. Mas é hoje evidente que, quer pela descolonização (…) quer pela emergência, também entre nós, dos novos movimentos religiosos, vivemos hoje numa sociedade que sendo, como as suas congéneres europeias, cada vez mais multicultural, o é também no pluralismo religioso”. Não podia a ministra da Justiça encontrar pessoa mais bem habilitada que José Vera Jardim para presidir à Comissão de Liberdade Religiosa.
(in Jornal de Notícias)