Plataformas
Não me preocupa a dimensão do protesto dos convencionais, volumoso mas dificilmente replicável, nem a ausência de regulação de uma realidade nova, as tais plataformas. Nem a evolução tecnológica que alguém já comparou à do caminho-de-ferro frente à navegação marítima, por canais, ou ao transporte de liteira. Nem o abate dos cavalos pelos automóveis de aluguer. Não, essa evolução não tem que ser vista como revolução, embora haja sempre ganhadores e perdedores, nas transições. O que me perturba é a dificuldade da negociação.
Não basta dizer que os táxis são de baixa qualidade apesar da relativa segurança, que os motoristas são mal-educados, ou por vezes agressivos. Todos passámos por experiências dessas; saíamos do aeroporto pela porta das partidas, onde o humor caracterial de alguns era aliviado pelo menor tempo de espera por cliente; mas há que reconhecer o enorme progresso feito no acolhimento, hoje mais bem ordenado, nas chegadas. Todos os episódios negativos, por muitos que sejam, não caraterizam a classe, tal como uma andorinha não faz a primavera. As minhas experiências nos últimos dez anos têm sido progressivamente melhores, o que me leva a descrer em estereótipos. Também não posso comparar com a Uber ou a Cabify, que nunca utilizei. Sou um consumidor não informado.
Mais uma razão para a minha ingenuidade que deixo através de perguntas? Qual é o recuo negocial que o movimento dos táxis preparou? Estarão dispostos a criar “uberzinhas” nas cidades, oferecendo aos clientes as vantagens das plataformas eletrónicas? Será apenas o aumento da bandeirada em ocasiões de muita procura (mais uma distorção do mercado) a contrapartida que propugnam? Quantas mais demonstrações como as de ontem estão preparados para realizar, sem farroncas? Estarão dispostos a evitar a violência física covarde, de que ainda ontem deram um triste exemplo? E quanto ao Governo, tem a seu favor a impopularidade que se colou à profissão de “chofer de táxi”, quantas vezes injusta. Mas não pode abusar dela, deixando o conflito em banho-maria ou não criando condições de recuo. A intervenção do Governo foi impecável e o País não admitiria recuos substantivos, como p. ex. ficar tudo na mesma. O que o País espera é uma solução em que todos possam ganhar, a começar pelo consumidor. E o consumidor nada ganha se o Governo fixar para as plataformas um contingente, um numerus clausus, de mil vagas, por exemplo. Qual o interesse público, para além do da proteção de uma pequena corporação, em limitar o acesso ao mercado a uns tantos que cedo se transformariam em intransigentes opositores da inevitável liberalização? Onde está o interesse público na proteção de uma renda concedida a um alvará que só vale pelo privilégio da escassez administrada?
Aqui chegados, devo reconhecer que o mais difícil será convencer os manifestantes de ontem de que o sonho de uma vitória retumbante é impossível de concretizar. Eles desmobilizaram a custo, pois desatado o saco dos ventos, dá trabalho fechá-lo de novo. Saúdo o levantamento do garrote viário e faço votos para que arrecadem suas vitórias e delas fruam, mas que aprendam com a reação gerada no povo. Começa agora nova dor de cabeça para o Governo: regulamentar os dois setores, sem preconceitos, dando a primazia ao consumidor. Ontem, o Governo governou, convém não causticar a contraparte.