Opinião: UE-Canadá: um acordo comercial condenado a soçobrar?
Os tempos que correm não vão de feição para a celebração de acordos comerciais internacionais. Tanto na Europa como nos Estados Unidos temos vindo a assistir ao crescimento de tendências proteccionistas que começam a ter eco no discurso dos principais responsáveis políticos. No caso norte-americano isso foi muito evidente na campanha presidencial em curso. Trump, por um lado, e Sanders, por outro, obrigaram aquela que se perfila como a próxima Presidente dos Estados Unidos, Hillary Clinton, a alterar o seu posicionamento no domínio da política comercial, com consequências que só poderão ser plenamente percebidas no âmbito da acção da mais que provável futura administração democrata. Certo é que, enquanto candidata, Hillary se viu obrigada a rever posições que anteriormente abraçara com aparente convicção.
Donald Trump, como é cada vez mais visível, não dispõe de um discurso político minimamente coerente e assenta toda a sua campanha numa retórica trauliteira e demagógica, onde se atropelam declarações moralmente obscenas e propostas politicamente indiscritíveis. Há, porém, um fio condutor no seu caos discursivo: a tentativa de seduzir um eleitorado tradicionalmente democrata constituído pelo que resta da working class branca, residente nos estados que tiveram no passado uma forte tradição industrial. Esse eleitorado, que em tempos fugiu para Reagan em nome de um liberalismo económico que haveria de o desiludir, admite agora votar em Trump em nome precisamente de um proteccionismo puro e duro que não está dissociado da exaltação daquilo que os americanos designam por nativismo, e que não deixa de constituir uma forma de xenofobia. Apesar de tudo, com a previsível vitória democrata, é de admitir que os Estados Unidos acabem por prosseguir uma política comercial aberta ao mundo e empenhada na concretização de múltiplos acordos comerciais.
Na Europa, as coisas também não estão fáceis neste domínio. O Parlamento Regional da Valónia deliberou opor-se à celebração de um acordo comercial entre a União Europeia e o Canadá, impedindo assim a Bélgica de o subscrever. Como neste domínio a União Europeia só pode decidir com base na unanimidade de posições dos seus Estados-membros, este acordo comercial pode estar condenado a soçobrar. Curiosamente, o presidente do Governo Regional da Valónia não é um populista, nem tão pouco um demagogo primário; pelo contrário, trata-se de um professor universitário com uma vasta e interessante obra produzida sobre a União Europeia. As razões invocadas têm que ver, por um lado, com a natureza específica dos mecanismos de arbitragem de âmbito internacional previstos, e, por outro, com o receio da concorrência num sector particularmente sensível como é o da agricultura. No fundo, prevalece o temor de que grandes empresas multinacionais, nomeadamente no sector agroalimentar, venham a beneficiar de vantagens que possam pôr em causa a pequena economia valoa. O caso valão não deixa de se inscrever numa progressiva evolução da opinião pública europeia no sentido da adopção de um posicionamento crítico em relação aos tratados comerciais.
Há pelo menos duas ilações a retirar de imediato deste caso: em primeiro lugar, ele evidencia o carácter profundamente democrático do sistema decisório europeu, contrariando assim a tese habitualmente expendida pelos extremistas de esquerda e de direita que gostam de falar de uma autocracia burocrática sediada em Bruxelas; em segundo lugar, ele obriga todos aqueles que, como é o meu caso, continuam a preconizar a vantagem da realização destes acordos comerciais, a um acrescido esforço de explicitação pública dos seus méritos. Hoje em dia estes acordos já não interessam apenas aos produtores, como acontecia até a um passado recente, mas suscitam também o interesse e a curiosidade dos consumidores. Na medida em que o centro nevrálgico destes tratados foi transferido do domínio do valor das tarifas aduaneiras para o campo da harmonização normativa ? em áreas tão importantes como as regras de produção alimentar, a saúde pública ou o ambiente ? a sua discussão tornou-se um tema fundamental do debate político actual.
Este acordo com o Canadá tem sido apresentado como o melhor alguma vez alcançado pela União Europeia, revestindo-se mesmo de um carácter exemplar pela própria circunstância de ter como parceiro um país que possui um modelo de organização económica e social muito próxima do europeu. É mesmo caso para perguntarmos: se não formos capazes de estabelecer um acordo deste tipo com o Canadá, com quem seremos nós capazes de chegar a um entendimento comercial?
Esperemos que estes acidentes de percurso, tão característicos das verdadeiras democracias, possam ser superados de forma a que possamos alcançar uma maior regulação da globalização, com a devida salvaguarda dos legítimos interesses dos diferentes povos europeus. A democracia exige por vezes alguma lentidão de processos, já que se não baseia na supremacia de um suposto despotismo tecnocrático esclarecido, nem tão pouco pode ignorar ou sequer desvalorizar os receios ? por menos racionais que eles possam parecer ? dos cidadãos que são a sua razão de ser.
(in Público)