Opinião: Ser bom não chega
Não presto, realmente, grande serviço ao Vasconcelos e à sua memória, com este pequeno texto, que resultará penosamente insatisfatório e aquém do necessário e do devido. Não tenho nem o distanciamento suficiente, nem a destreza suficiente com as palavras, para falar do meu amigo como gostaria, para ser justo e para ser grato, e para beneficio dos que o amaram mas não puderam chegar a saber inteiramente quem ele foi, a Catarina e o João, que tem oito meses e terá de conhecer o seu pai através dos nossos desajeitados esforços. E para os outros também, família e amigos, que ficaram sem ele, e que examinam a sua perda com incredulidade e terror, uma e outra vez, todos as manhãs, como soldados a quem uma bala de canhão arrancou uma perna, mas permanecem misteriosamente de pé.
O Vasconcelos atravessou a vida pública como um cometa e, no pouco tempo que teve, deixou uma marca no país, e como se viu pelos tributos que lhe foram prestados, outra, enorme, naqueles com quem se cruzou. Deixou um legado desproporcionado de modernidade, ambição e rasgo nos dois anos em que foi governante e nos poucos mais em que pôs de pé a Startup Lisboa. Tudo isso é verdade, importante e deve ser lembrado. Mas o que, essencialmente, distinguia o Vasconcelos era o ser estruturalmente bom. Não lhe faltavam as outras qualidades sobre as quais construiu os seus êxitos, mas, e de longe, a que melhor o definia era a sua bondade. Talvez por ser mais rara que a inteligência, a curiosidade ou a iniciativa, era a sua bondade que mais impressionava e cativava. E é por isso que, tanto quanto o que fez na vida pública, importa salvar do esquecimento a caravana de socorro humanitário que criou do nada, em meia dúzia de dias, e fez chegar à fronteira húngara, onde se acumulavam famílias de refugiados carentes de tudo, com ele aos comandos, seguindo as instruções da navegação pelo telemóvel.
O João Vasconcelos atravessou a vida pública como um cometa e, no pouco tempo que teve, deixou uma marca no país
Era inteiramente destituído dos sentimentos mesquinhos que são uma chaga nacional: a inveja, a maledicência, o rancor, a tendência para o apoucamento do outro. Num país de oportunidades escassas e de esperanças pequeninas e sensatas, cheio de gente com valor cujo potencial fica permanentemente adiado, ou apenas, em vão, aspira a poder trabalhar e a ter alguma segurança, a vida pública ressente-se, azeda, torna-se biliosa, refocila em sacrifícios catárticos, cruéis e sem sentido de medida, onde a queda de um, que se emancipou um pouco da massa castigada, redime o ressentimento de todos, que não saímos do sítio. O Vasconcelos, apesar da sua longa experiência política, da sua bonomia, e do prazer que extraía de rir de si próprio (e de mim e das minhas coisas, que lhe forneciam muito material), não estava preparado para a alegação grotesca de que teria traficado a sua liberdade, ou a sua integridade, aceitando uma viagem para “ver a seleção”. Saiu da política para não voltar. Sem lamúrias, com uma vida para refazer, não sem dificuldades.
O futuro, sem o Vasconcelos, que gostava da vida e de quem nela anda, anuncia-se um sítio inesperadamente desolado e inóspito. Um sítio que nós, seus amigos, temos ainda dificuldade em imaginar, e menos vontade de habitar. Não morreu sozinho, portanto, o Vasconcelos. Morremos todos um bocadinho com ele.