Opinião: “Os desafios da social-democracia”
(artigo de opinião escrito originalmente para o jornal “Público“)
1. Em 2015 deu-se uma viragem histórica em Portugal: pela primeira vez na história da nossa democracia a esquerda entendia-se para formar uma maioria que sustentasse um governo. Ganhou a representação democrática: temos uma democracia mais plural, com mais configurações parlamentares disponíveis e sem nenhum partido excluído, por definição, da esfera governativa. O nosso sistema político tem hoje dois pólos distintos, o que promove a dialética entre visões diferentes da sociedade, facilita a escolha do eleitorado e torna mais difícil a emergência de extremismos.
Ganhou também o país: Este Governo e esta maioria estão a mostrar que é possível viver melhor em Portugal e a imprimir mudanças profundas nas políticas públicas. O que estamos a fazer na política orçamental e de rendimentos, na trajetória do salário mínimo, no alargamento de direitos e mínimos sociais, na recuperação dos serviços públicos ou na diversificação do financiamento da segurança social é mesmo diferente do que um Governo apoiado numa maioria de direita faria.
Ganhou, por fim, o PS: com esta solução governativa, aumentou a sua autonomia estratégica. Não está impedido de procurar compromissos alargados em áreas específicas (como as de soberania), mas deixou de estar obrigado a governar com a direita.
2. Há algum tempo que, na Europa, existe um excesso de pressão para o consenso entre os grandes partidos dos sistemas políticos. Esse consenso traduz-se no paradigma das “reformas estruturais”, que se impôs como programa de instituições nacionais e internacionais na defesa da radical privatização de empresas e serviços públicos, liberalização de mercados (a começar pelo laboral) e desregulação generalizada de atividades económicas.
A hegemonia do neoliberalismo mantém-se intocada e a sua força é expressa de diversas formas, a começar pela linguagem. A direita neoliberal apropriou-se de conceitos fundamentais para a esquerda e deu-lhe novos significados. Precisamos de ser capazes de os resgatar e redefinir:
- primeiro, a linguagem das “reformas”. Houve um tempo em que, à esquerda, reformas foram a edificação de um Serviço Nacional de Saúde, a construção da escola pública, a criação e subida do salário mínimo ou a introdução do subsídio de desemprego. Quando hoje nos são pedidas reformas, sabemos que nos estão a pedir a facilitação dos despedimentos ou o plafonamento da Segurança Social. As reformas têm de voltar a significar o que sempre significaram para nós: progresso social, concretização de direitos e aumento de bem-estar.
- segundo, a ideia de “liberdade”. A direita conseguiu reduzir o ideal de liberdade ao dos mais fortes na arena económica. O risco desta visão transformar a liberdade num bem cuja distribuição ficaria dependente do poder económico e social de cada um é enorme. Por isso é que só a defesa de um Estado Social forte e universal pode garantir liberdade para todos, e não apenas para alguns: só um sistema de saúde público e universal garante a todos, do nascimento até ao fim da vida, cuidados independentemente do seu rendimento; só um sistema público de pensões garante que ninguém chega à reforma dependente de terceiros ou da estabilidade dos mercados financeiros; só a legislação laboral pode proteger os trabalhadores da eventual discricionariedade dos empregadores.
3. O período que antecedeu as eleiçoes internas do PSD foi pobre em debate programático, e pouco sabemos da visão que Rui Rio tem para o país ou das reformas que defende. Nas moções entregues ao congresso, porém, há uma que arrisca apontar um caminho: Combater a Desigualdade, subscrita por Pedro Duarte e Carlos Moedas.
Depois de analisar o impacto das mudanças tecnológicas sobre o emprego e as desigualdades, a moção pede um novo “contrato social” que questione “a justiça da atual progressividade fiscal”, estude o rendimento básico universal e equacione “novas políticas ativas de emprego, dando a flexibilidade que a nova economia exige”. Tem o mérito de elencar preocupações legítimas e desafios essenciais a que todos teremos de responder. Ao mesmo tempo, aponta um caminho que, assente em contradições insanáveis, coloca em causa avanços civilizacionais em nome de soluções falsamente inovadoras e/ou mágicas.
Por um lado, é difícil perceber como seria possível redistribuir rendimento – essencial para reduzir as desigualdades que são a razão de ser da moção — diminuindo a progressividade fiscal. Afinal, são os impostos progressivos que asseguram a redistribuição vertical de rendimento e garantem (aos que menos têm) o acesso a serviços e prestações que não podiam ser financiados sem o esforço de cidadania exigido a quem tem maior capacidade contributiva. A progressividade fiscal não serve só para redistribuir dinheiro: pelo nexo de deveres que impõem e direitos que financiam, os impostos ajudam a construir a comunidade política.
Por outro lado, está longe de ser óbvio que a automatização tenha o impacto devastador no mercado de trabalho que se antevê. Mesmo que daí resulte uma dramática diminuição do emprego, porém, a prioridade política deverá passar sempre por compatibilizar a redistribuição do rendimento com a do emprego (através da redução do horário de trabalho), e não apenas do rendimento, aceitando a exclusão de muitos do acesso ao emprego. Qualquer redistribuição de rendimento totalmente desligada do trabalho (através de um rendimento básico) reduziria a dinâmica de reciprocidade de que vive uma comunidade e produziria uma sociedade atomizada. Essa atomização seria ainda reforçada por uma maior desregulação laboral que a moção defende sob a capa da “flexibilidade que a nova economia exige”.
Visto com atenção, o pacote “fim da progressividade fiscal-rendimento básico universal-flexibilidade laboral” não é a nova social-democracia: é o velho liberalismo económico renovado e intensificado.
4. O desafio da social-democracia não é hoje muito diferente do passado: garantir, num mundo em rápida mudança, a liberdade, a igualdade e a prosperidade dos cidadãos numa comunidade política que assenta num denso tecido de direitos e de deveres, de valores morais de justiça e de cooperação, e de laços de interdependência e de reciprocidade. Na resposta a este desafio, a gramática política e moral que distingue a esquerda da direita continua a assentar:
- na defesa do papel do Estado no desenvolvimento da economia através do investimento público e de políticas de inovação, e na redistribuição do rendimento através da provisão de serviços públicos e de prestações sociais.
- na protecção e no reconhecimento do valor do trabalho: do salário que paga, da dignidade pessoal que confere, e da integração social que permite.
É em torno destes princípios que a social-democracia deve enfrentar os desafios do século XXI. É também em nome deles que devemos garantir que a mudança política conseguida em 2015 seja uma efetiva viragem e não apenas um parênteses na história do PS e da democracia portuguesa.