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Opinião: O fracasso venezuelano

Opinião: O fracasso venezuelano

O que resta hoje do socialismo bolivariano é a caricatura de uma utopia infelizmente condenada desde o início. Maduro não é um general preso no seu labirinto, é apenas e tão-só um sátrapa alucinado.
Francisco Assis

1. A 31 de Outubro de 1958, os três maiores partidos da Venezuela celebraram um pacto entre eles que viria a passar à história sob a designação de “Pacto de Punto Fijo”, nome da residência de um dos signatários desse acordo, o líder da democracia cristã, Rafael Caldera. As três organizações partidárias em questão representavam o centro-esquerda e o centro-direita. Tais forças sentiram-se motivadas para a celebração desse entendimento ao constatarem a debilidade das instituições democrático-representativas, que urgia afirmar após um longo período ditatorial. O tirano Marcos Pérez Jiménez tinha sido destituído nesse mesmo ano.

Durante quase três décadas, beneficiando das rendas do petróleo, que proporcionaram um aumento exponencial das despesas públicas e privadas, a Venezuela viveu numa aparente acalmia democrática, assente na alternância pacífica entre governos de centro-esquerda e de centro-direita. Este período terminou abruptamente em Fevereiro de 1989, quando multidões iradas saíram para as ruas de Caracas causando distúrbios que foram violentamente reprimidos.

Esse acontecimento dramático, em que morreram várias centenas de pessoas, sobretudo homens e mulheres pobres, oriundos dos bairros mais miseráveis da grande metrópole venezuelana, estabeleceu uma ruptura política, social e até mesmo cultural de tal ordem que abriu as portas ao surgimento, alguns anos mais tarde, do fenómeno chavista. O caracazo, como foi denominado tal acontecimento, ocorreu, curiosamente, sob a presidência do socialista Carlos Andrés Pérez, que se viu constrangido a aplicar um conjunto de medidas socialmente regressivas e economicamente identificadas com a cartilha ultra-monetarista que à época caracterizava o receituário ortodoxo imposto pelo FMI.

Naquela manhã de 27 de Fevereiro de 1989, uma segunda-feira, os habitantes da periferia de Caracas confrontaram-se com um aumento assustador dos preços dos transportes públicos. Desesperados, libertaram a sua cólera em actos de vandalismo a que o poder respondeu com uma violência absolutamente desmedida, imprópria de um regime democrático.

Três anos depois, Hugo Chávez iniciava o seu percurso de conquista do poder com uma tentativa de golpe de Estado que o conduziu à prisão. Acabaria por ser amnistiado pelo democrata-cristão Caldera, que entretanto regressara ao poder com base num discurso que seduziu amplas camadas populares. Chávez ganharia as eleições de 98, assumindo finalmente, por via democrática, a chefia do Estado.

De então até há pouco tempo a Venezuela viveu sob um regime hibrido, que conciliava elementos democráticos e características autoritárias, fundado ideologicamente num sistema doutrinário populista de inspiração socializante, manifestamente dado a práticas arbitrárias, incompatíveis com as regras de um Estado de Direito. Chávez disfrutou durante muitos anos de uma enorme popularidade, resultante das políticas assistencialistas que promoveu num contexto economicamente favorável.

É inquestionável que muitas dessas políticas contribuíram para a dignificação dos sectores mais pobres da sociedade venezuelana. O reverso dessa actuação meritória estava, porém, na insensatez das políticas económicas prosseguidas e no diminuto respeito pelos princípios mais exigentes de uma verdadeira democracia liberal.

Com Maduro, a situação degradou-se, quer porque o contexto económico se deteriorou em função da mudança da conjuntura internacional, quer porque as tendências autocráticas do regime se foram progressivamente acentuando. Nos últimos anos, o que restava de resquício democrático extinguiu-se, a repressão aumentou, os abusos do poder tornaram-se uma prática quotidiana. Ao mesmo tempo, a economia entrava em colapso, a pobreza aumentava assustadoramente, a escassez de bens essenciais, desde a alimentação aos medicamentos, adquiria proporções dramáticas. Milhões de venezuelanos viram-se obrigados a fugir do seu país.

O que resta hoje do socialismo bolivariano é a caricatura de uma utopia infelizmente condenada desde o início. Maduro não é um general preso no seu labirinto, é apenas e tão-só um sátrapa alucinado, numa luta mesquinha e inglória por uma sobrevivência imerecida. Restam-lhe generais corruptos e oportunistas criminosos que já nem sequer constituem um séquito, limitam-se à condição de uma quadrilha.

Desde 31 de Outubro de 1958 até hoje, a Venezuela viveu, sob regimes completamente diferentes, a experiência de dois fracassos. O período democrático-liberal falhou no plano social, cultivou o respeito pelas liberdades públicas num contexto oligárquico e acabou dominado por uma corrupção que era tanto mais iníqua quanto acentuava o contraste entre a riqueza ostensiva das elites e a miséria insuportável de grande parte do povo. O socialismo bolivariano revelou, nalguns momentos, indiscutível sensibilidade social, mas nunca deu provas de especial afeição pelo valor da liberdade e autodestruiu-se numa gestão dos assuntos económicos verdadeiramente calamitosa.

A tragédia da Venezuela não é muito diferente da tragédia mais vasta da América-Latina. Faltou-lhe o que a Europa conseguiu a duras penas mas com resultados que não podem ser desvalorizados: uma conciliação entre os grandes princípios do liberalismo filosófico e político, herdados das Luzes, com um modelo democrático que integra a dimensão social e que resultou do contributo histórico de movimentos sociais que se revelaram contra a opressão e a favor da emancipação. As razões para a singularidade latino-americana são várias e a sua análise não cabe no espaço deste artigo. É assunto que ficará para uma próxima oportunidade.

2. Contrariamente ao que já vi escrito, não me parece que o Governo português tenha agido mal no tratamento da questão venezuelana. Actuou com firmeza na afirmação dos valores democráticos e com seriedade e eficácia na protecção dos direitos e interesses da ampla comunidade portuguesa residente naquele país. O Ministro dos Negócios Estrangeiros tem sido claro nas suas posições e o Secretário de Estados das Comunidades demonstrou uma grande competência no tratamento de tão difícil e delicado dossier. José Luís Carneiro visitou várias vezes a Venezuela, promoveu iniciativas inovadoras e até inspiradoras de outros Estados europeus, assegurou a prestação de um apoio humanitário a portugueses e luso-descendentes que em alguns casos significou a diferença entre morrer e viver. A sua acção merece ser reconhecida e devidamente assinalada.