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Opinião: Direitos humanos, hoje

A Fundação Mário Soares, no ano em que celebra o 20.º aniversário, promove em conjunto com o Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI), um ciclo de conferências dedicado aos direitos humanos e relações internacionais. “A cultura internacional dos direitos humanos” foi o tema da conferência de ontem, em que tive o gosto de participar com José Manuel Pureza e Ana Mónica Fonseca. Não há melhor barómetro nem mais lúcido observador das profundas mudanças que a cultura internacional dos Direitos Humanos experimentou ao longo das últimas décadas do que o presidente desta fundação, precisamente, o dr. Mário Soares que, apesar de ausente por razões de saúde, foi inspiração permanente deste oportuno debate.

As raízes da cultura dos direitos humanos são tão remotas como a civilização. Não parece exagero procurar os seus primeiros indícios no texto da primeira codificação legislativa de que temos registo, atribuída a Hamurabi, que reinou na Babilónia há quase 4000 anos. O Código de Hamurabi ficou vulgarmente conhecido pela consagração de um princípio terrível, de uma brutalidade chocante: “olho por olho, dente por dente”. Essa odiosa impiedade encerra porém um significado histórico paradoxal. Porque efetivamente instituiu uma regra de proporcionalidade entre o “crime” e a respetiva punição. Por tal ofensa, tal pena. Ora, a “pena de talião”, ao limitar a escala da “retaliação” à gravidade da ofensa, explica Niklas Luhman, introduz um substancial progresso humanitário face à dimensão da vingança tribal costumeira que, em nome da honra, podia reclamar não só a morte do ofensor como a chacina de toda a sua parentela.

É verdade que encontramos, desde as origens do Direito penal, sinais do reconhecimento emergente de uma condição comum e do imperativo de a proteger. Mas teremos de esperar pelo fim do século XVIII – da nossa era! – com as revoluções liberais e as proclamações de direitos em que procuram fundar a sua legitimidade, para que a dignidade humana mereça a adoção de um princípio normativo universal. É sobre a dignidade de seres humanos livres e iguais que se vai construir o Estado de direito e as democracias constitucionais, decretar a extinção da escravatura, conceder proteção aos estrangeiros e até reconhecer direitos aos inimigos capturados no campo de batalha.

A catarse da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto perpetrado pelos nazis, conduziram à criação das Nações Unidas e à aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que ofereceram, por fim, uma base organizativa e o quadro institucional contemporâneo para o desenvolvimento da cultura internacional dos direitos humanos. Contudo, o fim da Guerra Fria iria transportar tentações perversas. Porque se criou a expectativa de que a paz universal estava iminente e que, com ela, todas as formas de opressão eram reconduzíveis a meros casos de polícia.

Uma bondosa esperança que se iria revelar tragicamente ingénua! Desde os finais do século passado começou a crescer a exigência de ampla revisão de um princípio de direito internacional que, embora afetado por frequentes violações, tinha conseguido sobreviver ao longo de toda a idade moderna: a proibição de ingerência nos assuntos internos de outros estados, em particular, a exclusão do uso da força e do recurso a meios militares.

Mário Soares ousou questionar a sobrevivência da NATO, para além do fim da Guerra Fria, uma vez consumada a dissolução do Pacto de Varsóvia, justamente, quando se deixava de falar do desarmamento mundial e a ameaça de uma guerra nuclear, aparentemente, deixava de afligir a humanidade. Assuntos, enfim, que nunca foram tão prementes como agora. Estamos a pagar as consequências da criminosa invasão do Iraque, consumada pelos falcões do costume, os seus cúmplices e o silêncio cobarde, indesculpável, de muitos outros. Foi o ponto de viragem para a desordem presente. Mas nem todos se calaram. Bem-haja, dr. Mário Soares, pela sua luminosa coragem!

(in Jornal de Notícias)