Opinião: Contra ventos e marés
Cumpriu-se o primeiro aniversário das eleições legislativas de 4 de outubro de 2015. Foi um ano que valeu a dobrar, portador de profundas mudanças, com verso e reverso: 365 dias para uns, 365 noites para outros. Esperançoso para muitos, dececionante para uns poucos. No dia das eleições já ninguém defendia as políticas de austeridade que o Governo anterior, durante quatro longos anos, aplicara com fervor, como se fosse o único caminho para a redenção de um povo pobre e indolente que gastou o que não tinha e vivia do que os ricos lhe emprestavam. Com algumas medidas eleitoralistas e a muleta do Tribunal Constitucional que ordenou a revogação dos “cortes” ilegais, algum alívio conseguido deu até alguma verosimilhança às promessas desse Governo em fim de mandato. E assim acabou a austeridade! Quer para aqueles que sempre a rejeitaram quer para esses que agora a renegavam por se tornar desnecessária e, sobretudo, inoportuna. Alguma ambiguidade, todavia, persistiu mas não chegou para garantir o triunfo eleitoral do PSD e do CDS. Os partidos do anterior Governo, apesar de se apresentarem coligados perante os eleitores, perderam a maioria que lhes tinha assegurado quatro anos de governação arrogante e solitária e de nada lhes valeu a tentativa de chantagem para impedir a formação de um governo que desse voz à maioria que de forma inequívoca reclamava nas urnas uma autêntica mudança política. Ao conteúdo literário do programa eleitoral de uma PàF recém-renascida das cinzas da governação, sobrepôs-se a memória sofrida do que antes tinham dito e feito.
O primeiro sinal foi dado pela vitória do socialista Eduardo Ferro Rodrigues, eleito Presidente da Assembleia da República a 23 de outubro de 2015, dia inaugural da XIII Legislatura. E depois da rejeição parlamentar do programa de Governo que Passos Coelho e Paulo Portas em vão teimavam impor – amparados com desvelo pelo Presidente cessante, Aníbal Cavaco Silva – no dia 26 de novembro tomava posse, finalmente, o Primeiro-Ministro António Costa. A 3 de dezembro, dois meses depois das eleições, após o chumbo pela Esquerda parlamentar da moção de rejeição intentada pelo PSD e CDS no termo do debate do programa do novo Governo, iriam os socialistas assumir por fim a plenitude das suas responsabilidades governativas. Contra ventos e marés, foi revogado o “estado de exceção” imposto pela governação do PSD/CDS sobre o país que tinham transformado num “protetorado internacional”, pasto fértil dos mercados financeiros e dócil cobaia da mais severa ortodoxia política e económica do Partido Popular Europeu – a família política ainda dominante na Comissão e no Conselho, que continua a hipotecar aos populismos da extrema-direita racista, xenófoba, fascista e neonazi, muito do que ainda resta da herança cosmopolita, generosa e solidária do velho projeto europeu. São eles a mais perigosa ameaça à construção europeia, pela intransigência cega com que tentam impor mais austeridade aos povos do Sul – fragilizados pelos efeitos assimétricos da configuração incipiente da moeda única – e pela infinita complacência com que admitem a restrição das liberdades, a violação do direito de asilo e a indiferença face à tragédia dos refugiados, aos seus vizinhos do Centro da Europa.
Uma duplicidade atroz a que o Governo socialista e a maioria de Esquerda que o apoia souberam responder vigorosamente, persistindo na correção das injustiças, na promoção do emprego e na qualificação dos jovens, ao mesmo tempo que se alargam consensos e concertam vontades entre os povos do Sul, para mudar as políticas que estão a arruinar a União. E à noite sucedeu o dia. 365 dias em que a transparência do confronto, a vivacidade do debate, a flexibilidade, o compromisso e o sentido da responsabilidade política retomaram a sua importância e dignidade, inscrevendo-se na normalidade da vida democrática. 365 dias em que o Parlamento assumiu um dinamismo e uma centralidade inédita na nossa história constitucional. Um ano bastou para demonstrar que a alternativa política é sempre possível, que a vontade do povo é soberana e que a força dos regimes democráticos reside nos valores da liberdade, da justiça e da solidariedade.
(in Jornal de Notícias)