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Opinião: CGD: a difícil decisão do Tribunal Constitucional

Opinião: CGD: a difícil decisão do Tribunal Constitucional

Não vivemos tempos normais. Mas há quem ache que sim, e que gosta de brincar com o fogo. Já se chegou ao ponto de alguém, de forma ínvia, para desacreditar a atual administração da CGD, por inveja, vingança ou quiçá para arranjar um substituto ao seu CEO, enviar uma carta anónima ao Presidente da Comissão Parlamentar de inquérito à CGD, para menos de vinte e quatro horas depois da sua distribuição confidencial ela estar referida em letra impressa de jornal.

Depois da tomada de posição do Presidente da República ficou claro que quem deverá dirimir a questão da entrega da declaração de rendimentos e património será o tribunal constitucional (TC), mas que na sua ausência poderá existir uma via alternativa parlamentar. Desde já refiro que a solução parlamentar não me parece desejável por várias razões. Primeiro, porque politiza e arrisca a que se use como arma de arremesso político a CGD o que obviamente fragiliza-a, bem como o sistema financeiro. Segundo, porque o TC acaba por ter, mesmo que discordemos das suas decisões, uma autoridade em matérias altamente controversas que não se encontra muitas vezes em precários equilíbrios e maiorias parlamentares conjunturais. Terceiro, porque o TC não delibera apenas, ele fundamenta de forma detalhada as suas decisões, desta forma contribuindo para que seja a força dos argumentos, a sustentar os votos favoráveis à sua decisão. Da decisão do TC poderá depender o futuro do banco.

Na realidade há duas questões distintas: saber se a entrega é ou não obrigatória à luz das leis em vigor, e em caso afirmativo, qual o grau e o tipo de acesso a essas declarações. A dificuldade reside em que o TC não vai tomar essa decisão ex ante – antes de iniciado o processo de aceitação e nomeação dos gestores da Caixa -, mas ex post, quando eles já foram nomeados, quando já aceitaram as nomeações na base, segundo a sua expectativa, de que não teriam de entregar tais declarações. Quando já há um plano de negócio para o banco já aprovado pela Comissão Europeia e o banco central europeu. É bom lembrar que há um ano atrás ninguém pensaria que seria fácil ou mesmo possível a recapitalização da Caixa. Independentemente de qual o valor necessário para essa recapitalização (um debate que irá ser feito) é inquestionável que a CGD precisa de ser recapitalizada e rapidamente. E também que foram necessários vários meses de negociações duras com as instituições comunitárias para que o plano de recapitalização fosse aceite por Bruxelas e pudéssemos continuar a ter um banco público. Mas será que teremos?

Os ataques à Caixa Geral de Depósitos vêm agora de duas direções e apesar de não intencionais, poderão, caso sejam efetivos, ser demolidores para uma Caixa pública. À esquerda do PS acha-se que é possível que a Caixa sobreviva – num ambiente concorrencial com a banca privada, e sem possibilidade de ajudas de Estado – com o CEO tendo o salário limitado ao do primeiro-ministro (PM). Não é. Ter um salário competitivo (remuneração base e bónus de desempenho indexados ao alcance de objetivos de médio prazo) não pode ser limitado ao salário do PM embora o salário deva ser limitado. Uma boa remuneração é condição necessária, mas não suficiente, para um bom desempenho. É necessário um bom modelo de governança que faça da CGD uma empresa que prossiga objetivos de política pública sem ser objeto de manipulação política de consequências indesejáveis. Ainda na semana passada ficámos a saber que interferências políticas explicarão parte das necessidades de capital. Qualquer partido político no poder tem, face a um modelo de governança permeável, a tentação de levar a que se façam alguns negócios ruinosos.

Se a recapitalização for de 5000 milhões cada um dos portugueses terá mais 500 euros de dívida para pagar. Não é uma perspetiva de futuro ter uma CGD que tem resultados negativos e necessita periodicamente de reforços de capital. É por isso correto que este governo e em particular a equipa das finanças tenha verificado que o Estatuto de Gestor Público (EGP) atual gera uma total capacidade de interferência política por parte de qualquer governo e que se tornava necessária não o aplicar aos gestores da CGD. Basta atentar no artº 26 que diz que os órgãos dirigentes (conselho de administração, comissão executiva, etc.) podem ser livremente dissolvidos ou o gestor público demitido sem que o titular do cargo político que o demite tenha sequer necessidade de fundamentar essa decisão (note-se que no artº 25º existem razões substantivas que podem fundamentar a demissão dos gestores).
A CGD é uma empresa particular no universo das empresas públicas, e não comparável com as demais, não apenas por ser financeira, mas sobretudo porque a função acionista é do Estado, mas a função de supervisão é hoje do Banco Central Europeu. Dada a sua especificidade, pode ser necessário ponderar a necessidade de se definir um estatuto de gestor de empresa financeira pública.

Aquilo que os indigitados para o conselho de administração da CGD, e eventualmente o governo, não se terão apercebido é que a lei de titulares de cargos públicos e políticos de 1983 ainda se lhes aplicava. Ora se as partes celebraram um contrato com base numa informação incompleta, só há duas possibilidades ou anular o contrato (queda da administração) ou uma “cláusula” de compromisso.

A estratégia de combate de PSD e CDS ao governo passa pelo ataque ao ministro das Finanças e à sua solução para a CGD, criando condições para anular o “contrato” entre governo e CGD com os subterfúgios que forem necessários. Parecem dispostos a atirar o bebé fora com a água do banho, com consequências imprevisíveis para o sistema financeiro e para o país. A partir do que leio suspeito seriamente que se for exigida total divulgação pública nas declarações de rendimentos e património a administração não o aceitará pois essa não foi a expectativa aquando da aceitação do convite. A profecia de Pedro Passos Coelho – da vinda do diabo – poderá então tornar-se auto-realizável.

Uma solução de compromisso, para viabilizar a solução para a Caixa, deve partir da letra e do espírito da lei de 1983 que tem de ser cumprida. O objetivo da declaração de interesses é evitar sobretudo duas coisas: corrupção e enriquecimento injustificado por um lado; conflitos de interesses e decisões contra o interesse público por outro. Importa realçar que já existe verdadeiro escrutínio dos gestores da caixa e que é até certamente maior que para outros gestores públicos. O Banco Central Europeu avaliou todos os gestores e obrigou António Domingues a demitir-se da administração da NOS. O BCE vetou nomes de administradores não executivos e exigiu formação complementar a outros. Quem se lembra de gestores de empresas públicas que tenham sido escrutinados devidamente, vetados ou recomendados que fizessem cursos de formação? Ter-se-iam evitado, por exemplo, contratos de swap ruinosos para o Estado. No que toca à transparência e às obrigações declarativas uma análise de benchmarking mostra que há situações muito variadas em que as declarações podem ser públicas, parcialmente públicas (como no caso da França) ou não públicas. Curiosamente os países com menores desigualdades são os mais transparentes (escandinavos) e os com maiores desigualdades os menos transparentes, com duas excepções importantes: Portugal e Brasil. Este último caso mostra que maior transparência declarativa não significa menor corrupção.

Um compromisso porventura viável poderia ser a entrega das declarações junto do Tribunal Constitucional, com a solicitação por parte dos administradores, com fundamento em motivo relevante, de não divulgação parcial ou total da mesma (o que a lei prevê no seu artº 6º). Caberá ao Tribunal Constitucional decidir e decerto que o fará tendo em conta a lei e o superior interesse nacional.

Não estamos em tempos de guerra, mas também não vivemos em tempos normais. Qualquer ação política responsável ou decisão jurídica deve ter isto bem presente.

PS. Está porventura na altura de repensar o modelo de governação das empresas públicas e o estatuto do gestor público de forma a acomodar algumas das recomendações da OCDE para a governança corporativa das empresas públicas.

(in Observador)