A reversão do Roe vs. Wade significa que qualquer Estado dos EUA pode, hoje mesmo, proibir o aborto. Sabemos que cerca de 26 estados querem restringir fortemente o acesso à IVG ou banir totalmente aquele que era, até agora, um direito constitucional fundado, essencialmente, na XIV Emenda (privacidade). No dia em que escrevo, quatro estados norte-americanos já proibiram o aborto na maioria dos casos. No Alabama, um juiz federal aceitou um pedido do governo para levantar uma providência cautelar que suspendia uma lei, aprovada em 2019, que criminaliza o aborto em qualquer circunstância, exceto em casos de sério risco para a vida ou saúde da mãe. Como já foi noticiado, no Arkansas, as duas clínicas que efetuam abortos já foram notificadas de que, com exceção de casos de sério risco para a vida da mãe, o aborto passa a ser punível com penas de até 10 anos de prisão. E isto vai piorar. Muito.
O caso que deu origem à decisão histórica, em 1973, é muito importante para o momento presente. Um dos problemas de “Roe” era a absoluta impossibilidade económica de se deslocar a um Estado que a amparasse. Ao contrário do que muitos escrevem erradamente, em 1973 não se consagrou o direito ao aborto, sem mais. O Supremo Tribunal Americano (STA) criou um quadro para equilibrar os interesses do Estado com os direitos de privacidade. E a decisão foi revisitada várias vezes, nunca pondo em causa o direito ao aborto.
Ao longo de 50 anos, a composição do STA mudou, naturalmente, mas o direito constitucional e federal ao aborto nunca foi revogado. Porquê? Porque até agora aquele tribunal respeitou a sua própria natureza e o direito americano que se funda, para o que nos interessa, no respeito pelo “precedente”.
No direito americano isto é fundamental: o Roe vs. Wade é um precedente na medida em que estamos a falar de uma decisão judicial que é considerada autoridade para decidir casos subsequentes. Se os factos não são diversos e as questões jurídicas também não, é inaceitável, à luz do direito constitucional americano, derrubar a decisão de 1973.
O que aconteceu, portanto, não foi uma decisão jurídica, mas antes uma decisão política, planeada com rigor durante muito tempo, que anula a natureza jurisdicional do STA. Aqueles juízes e juízas quebraram a garantia da igualdade de todos e de todas, e em especial das mulheres e, ao contrário do que fizeram crer nas suas audiências, decretaram aquela que é uma das formas de escravidão moderna que pensávamos esquecida no país da democracia. Sim, uma gravidez forçada é uma escravatura.
O Estado decide controlar os nossos direitos sexuais e reprodutivos e dizer: “não me interessa o que sentes, não me interessa o que, na tua privacidade, decidiste, porque decidimos por ti: levas a gravidez em diante ou vais presa”.
Acontece que nunca foi possível proibir o aborto em lado algum. Aquilo que se vai proibir em muitos Estados dos EUA é o aborto seguro e, com ele, o acesso a direitos sexuais e reprodutivos. A decisão de ontem foi uma sentença de morte para milhares de mulheres, sobretudo mulheres pobres e, também, mulheres racializadas. Os estudos indicam que rapidamente a taxa de morte materna aumentará cerca de 20%. E chamam a isto ser-se “pró-vida”.
Entretanto, também por cá, se fala com enorme demagogia de leis que permitem abortos em fase tardia (sabem que em Portugal, em determinados casos, pode haver IVG até às 24 semanas ou mesmo a todo o tempo, ou não?). Interromper uma gravidez tardiamente, por terríveis más formações do feto ou pela sua inviabilidade, é uma brutalidade específica, porque essas gravidezes são precisamente as que foram profundamente desejadas, o drama é imenso, pelo que proibir a sua interrupção é tão desumano que me faltam palavras.
Este foi o culminar de um plano bem traçado por uma direita extremada que soube fazer o seu caminho desde a derrota de Hillary Clinton. Sim, essa derrota permitiu o início da tomada do Supremo por juízes que não respeitam as regras jurídicas americanas, mas que estão ao serviço da causa reacionária. Estão prontos para pôr em causa outros direitos fundamentais, como os das pessoas LGBTI e os das pessoas racializadas, como tão bem explicou a Teresa Violante.
A maioria do povo americano estava em paz com o direito ao aborto. Mas houve quem estivesse atento, há muito tempo, tomando os passos “certos” para que chegássemos ao dia em que uma certa conceção da religião e da moral fosse imposta a toda a população. Há um ótimo artigo no “The Guardian” que explica isto (“How the Chistian right took over judiciary and changed America”).
E aconteceu. Muitas mulheres foram, pura e simplesmente, condenadas à escravatura e à morte. Fruto da sua condição social, não poderão percorrer milhares e milhares de quilómetros para encontrar o Estado longínquo que lhes dê acesso ao seu direito a não morrer na clandestinidade. Para já, sei que nada do que acontece nos EUA acontece só nos EUA. Agora foi lá, um ato de guerra sobre as mulheres, mas estejamos atentas e atentos em todo o lado. Agora foi lá, onde já se escreveu que, aparentemente, “life begins at conception and ends in a mass shooting”.
É de gritar.
Isabel Moreira
Secretária Nacional e deputada do Partido Socialista à Assembleia da República