“O meu carro do ministério já marca perto de 100 mil quilómetros”
Ministro da Economia, Manuel Caldeira Cabral, em entrevista ao DN
Entrevista publicada na edição online do Diário de Notícias
O académico do governo a quem o primeiro-ministro criticou o excesso de timidez não aquece o lugar no ministério. Não porque António Costa pense em remodelações na equipa mas porque, segundo afirma, grande parte do seu trabalho consiste em falar com pessoas. E fá-lo de uma forma discreta, para não estragar a eficácia. Os mais de 65 mil quilómetros percorridos em território nacional, aos quais se juntam outros milhares no estrangeiro, as mais de 200 empresas e incubadoras visitadas, o contacto com as câmaras de comércio e a participação em mais de 60 conferências e eventos é a forma como Manuel Caldeira Cabral reage às críticas de ministro pouco visível.
O ministro da Economia, que deixou Braga e a vida académica para se instalar com a família em Lisboa, recebeu o DN no gabinete do seu ministério, entre uns dias de férias passados em Portugal e uma viagem de trabalho à Colômbia. Com tempo para a conversa, pois cada passo das suas etapas profissionais – jornalista, economista, professor, assessor, conselheiro económico e ministro – é acompanhado de histórias, muitas histórias.
Tímido e discreto, ou ousado e ambicioso? Em qual dos adjetivos melhor se revê?
Acho que ousado e ambicioso não são contraditórios com tímido e discreto. Se se está a referir às declarações do primeiro-ministro, creio que ele se referia ao facto de, havendo uma série de políticas bastante ousadas e importantes a serem desenvolvidas no Ministério da Economia, de estarmos eventualmente a ser demasiado discretos na sua divulgação. Penso que tinha razão na questão de não estarmos a fazer muita propaganda de políticas que eram importantes – e chamo a atenção, por exemplo, para o StartUp Portugal, ou para o Indústria 4.0 ou para o Programa Capitalizar, que têm aspetos muito importantes e grande dimensão.
Então o termo mais correto seria um ministro discreto…
O Ministério da Economia é muito transversal e temos trabalhado com as pessoas, ouvindo-as, confrontando-as com as nossas propostas, envolvendo todas as instituições para chegar a soluções, que não têm de ser consensuais mas que reúnam o maior número de contributos possíveis. Portanto, aqui preferimos discutir, ouvir primeiro, o que tem de ser feito de uma maneira discreta, e depois anunciar coisas já mais sólidas, consensualizadas com os agentes. Se calhar, nesse aspeto é uma forma um pouco diferente de fazer política da que existiu no passado ou da usada por outros ministros.
Refere-se a Pires de Lima? Acha que o estilo de fazer política do ex-ministro da Economia é de alguma forma penalizador para si, que tem sido acusado de “invisível”?
Não estou aqui a criticar ninguém, apenas a dizer que é uma forma de trabalhar que penso que, gerando menos propaganda e menos barulho, pode gerar políticas e soluções mais estáveis e duradouras. Não há nada pior do que fazer uma coisa que parece muito bem e passados seis meses ter de a corrigir e três meses depois ter de a alterar. É isso que descredibiliza. Creio que temos trabalhado de uma maneira ousada.
Então não sentiu necessidade de mudar a sua forma de atuação depois do reparo de António Costa?
Não. O que aconteceu depois dessa observação foi que alguns dos programas em que estávamos a trabalhar puderam ser anunciados porque já estavam prontos. Também é preciso ver que algumas das coisas que anunciamos às vezes não têm o mesmo impacto porque há outras notícias que se sobrepõem, como a seleção que ganha o campeonato, notícias da Comissão Europeia…
Até que ponto seria benéfico que o Ministério da Economia fosse mais autónomo? Ou seja, que pudesse ter capacidade de decisão em algumas das áreas mais suas?
O Ministério da Economia tem um espaço próprio importante em várias áreas da política. Temos na área da política das empresas, na área dos fundos comunitários, o que são os incentivos às empresas com o Compete e com a coordenação que temos do IAPMEI; temos na área do turismo uma grande autonomia; também temos na área da energia vários instrumentos e mecanismos… Portanto, não sinto esse problema.
Professor na Universidade do Minho, doutorado pela Universidade de Nottingham, no Reino Unido, especialização em internacionalização da economia. De que forma é que a economia portuguesa pode ou tem beneficiado com os seus conhecimentos académicos?
O meu contacto com os empresários e com o terreno já vem de há muito. Como professor universitário, colaborei com vários grupos do Partido Socialista que envolviam o contacto próximo com as empresas. Na minha atividade como professor universitário, em Braga, tinha também um contacto próximo com as empresas, quer por via dos seminários e congressos para os quais era convidado quer pelo facto de estar a dirigir um mestrado de Negócios Internacionais. Mas obviamente desde que sou ministro tenho realizado encontros com várias associações setoriais, muitas empresas, empresários…
Tem alguma ideia de quantas empresas já visitou, quantos quilómetros já percorreu desde novembro?
O carro em que ando já fez cerca de cem mil quilómetros, mas houve algumas vezes em que me desloquei de avião e portanto não sei exatamente como contabilizar todos os quilómetros. Mas estamos a falar, de facto, de um número de visitas a empresas muito elevado. Algumas centenas de empresas que já foram visitadas, além de encontros com empresários. Temos ido principalmente a empresas que estão a fazer novos investimentos ou que têm produtos inovadores.
Qual foi o exemplo mais interessante que encontrou?
É difícil e seria muito injusto centrar-me num momento em particular. Mas diria que encontrámos vários casos muito interessantes de colaboração com os centros tecnológicos, de empresas que estavam prestes a fechar para empresas que hoje estão a competir a um nível de gama alta. Lembro-me de visitarmos uma empresa mobiliário, que fazia mobiliário principalmente para escritório, que estava com problemas há uns anos e agora não consegue responder às encomendas, lançou linhas próprias de mobiliário, nomeadamente de cortiça – muito interessante. Mas também poderia dar exemplos de empresas de calçado, que os profetas da desgraça, há uns anos, diziam que iam fechar. Os empresários inovaram, melhoraram a qualidade, conseguiram responder em pequenas séries, conseguiram trabalhar para as melhores marcas e paralelamente lançar marcas próprias. No setor agroalimentar, por exemplo, visitei a Frulact, que começou como uma empresa de garagem, há uns oito anos, e hoje emprega centenas de trabalhadores e está a fazer novos investimentos no estrangeiro. Poderia falar de tantas mais que inovaram e estão a crescer…
Voltando a falar de quilómetros, com tantas deslocações, ainda consegue correr diariamente os cinco quilómetros que colocou como um dos seus objetivos?
Não. Não tenho conseguido conciliar. Desde miúdo que faço desporto, sobretudo natação, e até competi, mas sempre a nível muito amador. Tenho uma grande tradição desportiva na família da minha mãe: o meu bisavô foi às Olimpíadas, praticava esgrima, o meu avô foi às Olimpíadas no pentatlo. Tenho um primo que esteve na seleção de râguebi, vários primos que foram aos mundiais de vela, outro que foi campeão europeu de surf. Portanto, sempre pratiquei desporto, é algo que faz parte do meu equilíbrio. Obviamente, nas funções em que estou tenho menos tempo. Agora, nas férias, consegui todos os dias fazer um pouco de desporto de manhã. No dia-a-dia tento fazer três vezes por semana.
A natação é o desporto favorito?
É um dos favoritos. Gosto muito de desportos de grupo, também. Jogava voleibol na universidade e às segundas-feiras futebol. Confesso que não sou muito bom em nenhum destes desportos, mas tenho sempre muito empenho e sou razoável.
E no futebol era defesa, avançado ou guarda-redes?
Em futebol de salão joga-se em todas as posições.
Até a guarda-redes?
Não sou particularmente feliz na baliza. Mas corro bastante. Acho que é isso que é importante. Eram jogos entre amigos. Gosto muito de desportos de grupo mas pratico normalmente desportos individuais. Jogava squash quando estava em Inglaterra a fazer o doutoramento, mas é um desporto um bocadinho violento, tive algumas lesões e agora parei. De vez em quando jogo ténis, mas é só.
Foi à final do Europeu de futebol?
Não [e sorri].
Então não está incluído nas polémicas viagens oferecidas pela Galp?
Não. Eu estava em Marrocos nessa altura, numa viagem que já estava marcada há algum tempo. Assisti ao jogo com a Embaixadora de Marrocos e com empresários portugueses que estão em Marrocos. Assistimos ao jogo todos juntos, todos a sofrer com o relato numa língua que eu, infelizmente, não compreendo. Mas vimos um bom jogo e uma boa seleção.
Como é que acompanhou esta polémica? Estamos a falar de três secretários de Estado, dois dos quais o da Indústria e o da Internacionalização, do Ministério da Economia – o seu, portanto…
Esta polémica, que felizmente já desapareceu, deve fazer-nos pensar sobre a clarificação destas questões. Não me parece que haja aqui um problema de conflito de interesses nem parece que tenha havido, quer da parte da empresa quer da parte dos secretários de Estado envolvidos, essa perceção – senão obviamente não o teriam feito. Penso que são práticas comuns – ofertas de bilhetes quer a políticos quer a jornalistas – e que seria útil e interessante perceber quais são os limites para isso. Se uma pessoa for visitar uma empresa e esta lhe oferecer uma caneta, uma coisa é se a caneta for de ouro – se calhar já é uma oferta que não é correta -, outra é se for uma caneta normal, com o símbolo da empresa, aí não vejo problema nenhum.
E no caso específico das viagens?
A sociedade portuguesa claramente considerou que neste caso se ultrapassaram alguns limites. Eu acho que é útil uma melhor clarificação e é isso que o governo está a fazer. Penso que neste sentido esta polémica pode ter sido útil. No sentido de perseguir pessoalmente secretários de Estado que estão a fazer um ótimo trabalho, creio que seria uma polémica inútil e seria levar longe de mais uma coisa que, como se viu, dirigentes de outros partidos também beneficiaram. Como se viu, já no passado houve várias outras viagens e outros aspetos desse género. Penso que o que é importante é clarificar e deixar claro para o futuro quais são as linhas que não se devem transpor. Foi um caso que existiu mas para o qual não tenho nada de novo a acrescentar.
Mas vai limitar o campo de ação dos secretários de Estado em causa…
Penso que não vai colocar nenhum problema à ação futura desses secretários de Estado.
Diz-se que também é um apaixonado por viagens. Quais foram as mais marcantes?
Os dois interrails que fiz em 1988 e 90. Foram muito interessantes para conhecer a Europa. E muito importantes numa altura em que a diferença entre Portugal e a Europa era muito mais acentuada, principalmente quando passava os Pirenéus e entrava em França, ou na Alemanha ou na Suíça, notava, de facto, diferenças muito mais acentuadas: o tipo de lojas, o comércio, a restauração…
Foi por essa altura que começou a viajar?
Eu já conhecia bem o país. Comecei a viajar por Portugal de 50 [motorizada de 50 cc] e percorri o país todo antes de ter 18 anos. Uma pessoa que conheça bem a realidade portuguesa dos anos 1980 – foi nessa altura que fiz muitas dessas viagens de moto – sabe a enorme evolução que o país teve desde que entrou para a União Europeia. Também fiz um coast-to-coast nos Estados Unidos que foi bastante interessante, deu para perceber a grande diferença que existia entre os EUA e a Europa. Foram viagens muito interessantes e que pude financiar, porque comecei a trabalhar com 19 anos, como jornalista.
Foi por opção que começou a trabalhar aos 19 anos? Para poder viajar?
Foi por opção no sentido em que os meus pais não eram ricos, eram de classe média, podiam pagar os estudos mas não as viagens que eu queria fazer. É verdade que não tinha uma necessidade absoluta de trabalhar, mas surgiu uma oportunidade no jornalismo. E eu sempre tive muita curiosidade nesta área, por isso, trabalhar no jornalismo teve muito que ver com alimentar essa curiosidade e, por outro lado, com o facto de gostar de viajar. Na altura, o jornalismo até pagava bem. E eu tive uma evolução muito rápida porque havia um despertar muito grande para o jornalismo económico e eram poucos os jornalistas nessa área. Eu tinha uma vantagem: escrevia relativamente bem, mas percebia de economia.
Nunca pensou dedicar-se exclusivamente ao jornalismo?
Não, na altura pensei e gostei muito de ser jornalista. Tive a sorte de trabalhar com pessoas como Nicolau Santos, Goulart Machado, Jaime Antunes, com quem aprendi muito. Depois, o que senti foi vontade de estudar. Portanto, quando acabei o curso, quis fazer um mestrado e, como tinha boas notas, consegui uma bolsa de mestrado que não era compatível com estar a trabalhar. Nesse sentido, deixei o jornalismo, não por não querer continuar a ser jornalista mas por querer aprofundar o que tinha aprendido no curso. A seguir ao mestrado surgiram oportunidades na área académica e decidi aproveitá-las.
Apesar da opção pela vida académica nunca cortou verdadeiramente com os jornais…
Quando há oito, nove anos comecei a escrever [uma coluna de opinião] no Jornal de Negócios, em parte, teve que ver com essa ligação ao jornalismo. E já antes, quando acabei o doutoramento e voltei para Portugal, tinha escrito artigos no Diário de Notícias e no Público. Foi muito útil para mim os anos em que estive a escrever opinião, obrigava-me a estudar. Se lerem as minhas crónicas de há uns três anos vão encontrar algumas das políticas que estou a fazer agora a serem defendidas. Outra das coisas que sempre fiz como comentador e como cronista foi ter uma atitude de crítica construtiva, no sentido de me esforçar mais por defender ou apresentar ideias alternativas do que simplesmente criticar o que estava a ser feito.
De que forma é que a monarquia encaixa na sua vida?
Eu não sou monárquico e portanto a monarquia não tem nenhum papel na minha vida.
É só o nome, Herédia?
Herédia do lado da minha mãe. A minha mãe é Herédia e irmã do pai da Isabel Herédia – é só isso. Eu tinha tios que eram monárquicos, mas eu nunca fui monárquico e não vejo porque é que ser primo da Isabel Herédia, que é uma prima de quem eu gosto muito, faria de mim uma pessoa monárquica.
A monarquia entra em debates familiares?
Não. Não é uma questão que se fale em família. Tenho todo o respeito pela instituição e todo o respeito pelos meus primos e tudo o mais, mas não.
E é uma família grande?
Tenho 60 primos. Trinta mais ou menos de cada lado e praticamente todos têm filhos. São duas famílias muito grandes. E são culturas familiares interessantes em qualquer dos lados: a família Caldeira Cabral é muito ligada à cultura, muito ligada às artes; a família Herédia é muito ligada ao desporto, mas também muito ligada à ação social. Em qualquer uma das duas famílias há muitas pessoas envolvidas na tal participação. Mas, lá está, fazem-no discretamente e anonimamente, e eu acho que é isso que é importante.
Teve a confiança de José Sócrates, de António José Seguro e agora de António Costa. Qual é a sua habilidade para agradar aos três líderes do partido que praticamente, neste momento, nem se falam?
Em grande parte, penso que há aspetos de lealdade que sempre tive com esses líderes partidários, mas também o facto de assumir uma postura construtiva. Nunca estive muito envolvido nas questões partidárias, estive mais envolvido na ligação à sociedade, na ligação à academia. O que viram em mim? Uma pessoa vinda do mundo académico que estava preparada e habituada a estudar assuntos com alguma profundidade e também com uma boa ligação às empresas, com capacidade de perceber quais as necessidades e as soluções.
Que relacionamento tem com os ministros Manuel Pinho, antigo ministro da Economia, e Teixeira dos Santos, das Finanças?
São pessoas que aprecio. Gostei muito de trabalhar como Manuel Pinho e com Fernando Teixeira dos Santos. Ainda me encontro com qualquer dos dois, sempre com imenso prazer.
E com António José Seguro?
Tive uma relação de colaboração com António José Seguro que foi também muito importante. Aquele modelo que se organizou do Novo Rumo foi um modelo de discussão muito interessante para mim. Aprendi muito, não discutimos só propostas e soluções, como ouvimos pessoas por todo o país. Fiquei sempre muito agradecido com essa oportunidade que tive com o Novo Rumo, tal como a oportunidade de participar naquele grupo [de economistas] para o qual António Costa me convidou, de ser cabeça de lista por Braga, e esta experiência que estou a ter como ministro da Economia.
Qual é a pasta mais aliciante, a da Economia ou a das Finanças?
Para mim é claramente a da Economia. Mas tenho muito boa relação com o ministro Mário Centeno. O trabalho que desenvolvemos no cenário macroeconómico foi muito importante para este governo, no sentido em que permitiu discutir amplamente um conjunto de políticas económicas que excedeu muito as políticas de finanças públicas, que incluiu muitas políticas de estímulo ao investimento, à atividade económica, de emprego, de reformas do mercado do trabalho. Ou seja, somos uma equipa que já estava a funcionar antes de entrar em funções. Isso tem ajudado muito a uma boa articulação com as Finanças, o que é essencial porque muitos dos projetos e das reformas que se querem lançar na economia, se não houver uma boa compreensão e um bom diálogo com o Ministério das Finanças, morrem na praia .
Para quando a filiação no PS? Ou vai continuar a ser o académico independente?
Para mim isso não é nem um problema nem um objetivo. Tenho trabalhado mais proximamente com o Partido Socialista. Fui representante do PS em negociações com o anterior governo, trabalhei de forma muito construtiva com o ministro Poiares Maduro e com o secretário de Estado Castro Almeida. Já participei em iniciativas do Presidente da República, de vários outros partidos e de muitas instituições não ligadas aos partidos. Nada do que fiz iria mudar se fosse filiado…
Quer dizer que na sua secretária não tem nenhum cartão de militante para assinar?
Não tenho, não. Penso que a militância partidária é algo muito importante e que deve ser valorizado na sociedade e não vista como um problema. No meu trabalho, quer como académico quer como comentador e cronista que era, tenho estado mais ligado à sociedade, às empresas e aos jornais do que ligado ao trabalho interno nos partidos. Ou seja, senti em alguns momentos que era mais produtivo para a sociedade dedicar-me desta maneira. Não vejo que no futuro não me possa dedicar à vida interna partidária e, se acontecer, então faz todo o sentido tornar-me militante.
Sílvia Freches e Filipe Paiva Cardoso
PAULO ALEXANDRINO/GLOBAL IMAGENS