José Manuel dos Santos: Temos previsto no nosso programa uma série de atividades, entre as quais publicações, exposições, etc. Estas duas exposições, que foram inauguradas no próprio dia 19 de abril, são duas exposições que se constituem como dois lugares de memória. Na sede Nacional do PS, no Largo do Rato, ela própria também um lugar de memória, onde se passaram acontecimentos importantíssimos, não só para o Partido Socialista como para a democracia portuguesa, abriu uma galeria e esta é a primeira exposição dessa galeria. Essa galeria pretende ser uma porta para a sociedade e para todos aqueles que, sendo mais ou menos próximos do Partido Socialista, reconhecem e percebem o lugar central que o PS teve na Democracia Portuguesa. As exposições que lá vamos fazer não são exposições de propaganda, são exposições culturais, são exposições artísticas, obviamente, ligadas aos temas que têm que ver com a história do Partido Socialista, com a história da Democracia, com o 25 de Abril, mas também com a resistência à ditadura. A exposição é uma espécie de história visual do Partido Socialista através dos cartazes. Tivemos de fazer uma antologia porque há imensos cartazes
NSL: Não dava para usar todos?
JMS: Não dava para usar todos, o espaço não deixava, e também porque a coleção não tem todos os cartazes. E a exposição itinerante é uma exposição realizada pela Fundação Mário Soares. Há uma pessoa comum nas duas exposições, que é o Pedro Marques Gomes, que fez a curadoria comigo da exposição dos cartazes e também é um dos curadores da exposição itinerante. E essa exposição é uma exposição que é uma espécie de resumo da história do PS que vai andar para o país e que tem as imagens, as palavras, as datas, os dados fundamentais da história do Partido Socialista. É possível, indo lá, ter uma ideia do que foi a história do Partido Socialista antes da sua fundação e depois de tudo o que seguiu. E também a história do papel do Partido Socialista na defesa, na afirmação e na consolidação da Democracia Portuguesa. O programa das comemorações dos 50 Anos vai ligar-se às comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e aos 100 anos do nascimento de Mário Soares. Isto em 2024. É um programa que tem como objetivo um diálogo ainda mais insistente com a sociedade civil, com as gerações, nomeadamente com as gerações mais novas e também, ao mesmo tempo, tendo orgulho na história é sobretudo, um olhar para o futuro. O lema destas comemorações é “Um Futuro com História” e quisemos acentuar, não só a confiança e esperança do futuro do Partido Socialista, como também a ideia fundamental destas comemorações, do passado como um ensinamento para o presente e uma inspiração para a construção do futuro.
NSL: Na exposição dos cartazes, é muito engraçado ver a evolução dos próprios cartazes. O que esta exposição nos mostra sobre a evolução de Portugal ao longo destes quase 50 anos?
JMS: A imagem que resulta desta exposição é a do Partido Socialista como o partido de defesa da liberdade e da democracia. Aparece, nalguns cartazes, o slogan “PS, o direito à Liberdade” ou “PS, o partido da Liberdade”. Mas aqui a liberdade - é obviamente a liberdade política - mas também aquilo que dá substância maior à liberdade política, nomeadamente a justiça social, a construção do Estado social. E, portanto, há uma espécie de evolução. Nos primeiros anos há uma ideia mais geral e essa ideia é a ideia de defesa da democracia. Nós começamos com um cartaz da CEUD. A CEUD foi a Comissão Eleitoral de Unidade Democrática que os socialistas constituíram em 69, para concorrer a umas eleições falseadas e não democráticas. Mas foi uma ocasião de afirmação. Esse cartaz é um cartaz lindíssimo, feito pela artista plástica Maria Keil. E,
a seguir, na luta que houve durante a revolução para que a ditadura fascista
...não fosse substituída por uma ditadura de sinal contrário, é aí que o Partido Socialista se consolida como grande Partido popular e nacional. Portanto, nos primeiros anos, é a ideia de liberdade e democracia, dialogando com todos aqueles que querem a liberdade e a democracia. Mas também porque, depois da destruição do Estado fascista, muitas estruturas que foram desmanteladas e houve a necessidade de reconstruir o país. Um dos slogans de um dos primeiros cartazes nas legislativas de 76, é “Queremos e podemos reconstruir o País”. Outra mensagem é a mensagem de que o PS, pelo seu passado, pela luta que tinha travado, e pela sua posição de poder dialogar com todos os outros partidos, era o partido que podia e estava em condições de reconstruir o país. Mais tarde, com a própria evolução da sociedade, é também o partido da Europa. Um momento muito importante desta exposição é o famoso cartaz “A Europa Connosco”. É o cartaz que anuncia a grande cimeira dos socialistas e sociais-democratas e trabalhistas europeus no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, e onde foi feita a festa popular. Mais tarde, as propostas que apareciam nos cartazes - isso foi um movimento geral que apanhou todos os partidos - são mais sectoriais, têm metas mais concretas…
NSL: Também já resultava das conquistas que a democracia portuguesa foi conseguindo?
JMS: Exatamente, já não era preciso, ou pensávamos que já não era preciso garantir aquilo que era o essencial. Se bem que saibamos que a democracia é sempre alguma coisa que precisamos de defender dos perigos, como agora se está a ver. Nunca é uma conquista adquirida para sempre. E, portanto, nesses cartazes começam a aparecer algumas coisas mais concretas. Também era uma resposta ao que se começou a falar mal da política e dos políticos. Isso acompanhou também a ideia de que os políticos não cumpriam as promessas. E uma das razões era que as promessas, muitas vezes eram gerais…
NSL: Muito vagas…
JMS: Muito vagas e podiam ser interpretadas de maneiras diferentes. E por isso há um movimento de concretização das promessas par, a seguir se ver se as promessas foram cumpridas ou não.
O PS foi pioneiro nisso, porque na campanha de 1983, o PS faz um documento que chama “100 medidas para os primeiros 100 dias”. É uma espécie de pioneirismo na promessa e na avaliação das medidas.
E, de facto, constituiu-se uma lista de promessas, que depois foram sendo verificadas nos primeiros 100 dias.
NSL: E os cartazes também refletem a forma como a maneira de se fazer política foi mudando ao longo dos anos?
JMS: Sim, eu acho que sim. Desde logo os nossos cartazes e a comparação com os outros cartazes. Por exemplo, o PCP nunca usou Álvaro Cunhal como imagem e a partir de uma certa altura começa a usar a imagem dos líderes. O partido começa-se a identificar mais com o líder. Se bem que no PS isso aconteceu desde sempre, atendendo à personalidade muito forte de Mário Soares. É um dos partidos em que isso acontece logo. Também aí antecipámos o futuro. Mas olhando para os cartazes do PS, há algumas observações que podem ser feitas. Em primeiro lugar, são cartazes feitos pela positiva. O partido afirma-se como tal, faz as suas propostas, são cartazes que se destinam a fazer uma proposta positiva e não são feitos em relação aos adversários, aos outros partidos. Em segundo lugar, são cartazes que pretendem criar desde sempre uma imagem de proximidade com as pessoas. Nos cartazes do PS não há aquela tradição de um certo tom épico ou de um certo heroísmo que aparecia em alguns cartazes de outros partidos. Há sempre um tom de proximidade com as pessoas que olham para o cartaz. Um cartaz que quer ser sempre um íman, quer atrair o olhar. O PS tem, ao longo da sua história, cartazes de inspiração humanista. As mensagens são todas a falar das pessoas e dirigidas às pessoas. Há várias mensagens: as pessoas não são números, a razão e o coração, no tempo de António Guterres.
NSL: O José Manuel viveu a política de perto, numa altura de gigantes: Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal. Nos dias que correm, nós não temos estas figuras ‘greater than life’. Acho que isso também resulta muito do fascínio, do encanto que no país havia no pós-25 de Abril com a democracia?
JMS: Havia uma geração extraordinária, que era a geração que se tinha construído na Resistência. As pessoas que apareceram eram não só muito corajosas, como intelectualmente muito preparadas. Mário Soares tem 50 anos quando se dá o 25 de abril. Eu também sou o coordenador da edição das Obras Completas de Mário Soares, que está em curso. Portanto, tenho estudado o espólio. E o que se nota é que, na correspondência dele com as mais altas figuras da cultura e do pensamento português, há sempre a preocupação do país. A ideia fundamental é esta: como é que um país como Portugal pode inverter uma certa tradição de que a democracia é sempre um intervalo entre regimes autoritários e normalizar a democracia.
NSL: Era essa a perceção ou o receio de que este período democrático fosse como a Primeira República?
JMS: O famoso opúsculo que passava ao papel uma conferência de Antero de Quental nas Conferências do Casino “As causas da decadência dos povos peninsulares”, marcaram-no profundamente. Aí tentava-se explicar porque é que, em Portugal, o progresso e a liberdade nunca tinham criado raízes. E essa era uma grande preocupação de Mário Soares, que se dizia republicano e que se considerava herdeiro dessa tradição. No entanto, olhava para a história da Primeira República com sentido crítico e queria evitar alguns erros da Primeira República. E por isso, quando chega a Portugal uma das primeiras coisas que faz é pedir uma audiência ao Cardeal Patriarca para dar o sinal de que os erros da contenda gravíssima que houve, na altura, com a Igreja não tinha sido bem feita. Mas também há aqui uma outra coisa que tem a ver com a perspetiva histórica. Muitas destas pessoas hoje são consideradas na sua grandeza e na altura não eram. Porque a história também nos permite ver isso. Por exemplo, o Mário Soares foi, enquanto Primeiro-Ministro, muitíssimo atacado. Até se criou a ideia e o mito de que ele foi bom Presidente da República, mas não tinha sido bom Primeiro-Ministro. Eu acho que é completamente falso.
Acho que os Governos de Mário Soares são Governos extraordinários. São os grandes governos reformistas de Portugal e que ergueram o Estado democrático e o Estado social.
Mas ele foi atacadíssimo, com uma violência muito maior do que a violência atual. E, portanto, eu creio que a História no futuro talvez olhe para o tempo que estamos a viver de uma maneira um pouco mais benevolente do que aquela com que neste momento olhamos.
NSL: E um veterano como o José Manuel dos Santos como é que olha para o atual momento da política portuguesa?
O atual momento da política portuguesa é um momento muito crispado, mas que vive muito da superfície das coisas. E, portanto, muitas vezes o debate centra-se não daquilo que é essencial, mas naquilo que é mais acessório, mais supérfluo.
JMS:Eu atribuo isso ao fato de nós vivermos numa sociedade do espetáculo. E, portanto, estar a falar de coisas provavelmente mais sérias e mais profundas não garante espetáculo nenhum, não é? E é mais fácil explorar ou provocar o escândalo mediático. Depois, passados três dias, já ninguém se lembra dele, o que significou que não tinha importância nenhuma. A própria fugacidade prova que não tinha importância nenhuma. Houve há seis meses, um ano, coisas que pareciam gravíssimas e que monopolizaram a atenção dos comentadores. E hoje olhamos para trás e percebemos que aquilo não tinha importância nenhuma. Mas como alguém disse, o político tem que viver com o que tem. E certas queixas sobre como tudo isto funciona podem ser feitas…
NSL: Mas não adianta muito.
JMS: Houve alguém que disse que um político que se queixa disso é como um capitão de um navio que se queixa que o mar está mau. Tem é que arranjar maneira de continuar a segurar o navio, mesmo que haja tempestade e mesmo que o mar esteja mau. A única coisa que eu poderia dizer é que a democracia precisa sempre de uma pedagogia. É o regime da racionalidade, não é um regime natural. O ser humano vive muito mais das emoções, dos instintos, etc. E a democracia é uma forma racional das pessoas conviverem e, sobretudo, de racionalizar os conflitos e de não os extremar. E muitas vezes perde-se essa noção do valor que a pedagogia tem em democracia. Eu não me preocupo nada com as críticas daqueles que as fazem para aperfeiçoar a democracia. Preocupo-me muito com as críticas daqueles que aproveitam tudo para difamar e para dizer que a democracia não é uma coisa boa, mesmo quando estão sempre com a palavra na boca.
NSL: Mas recuando para o que estava a falar sobre Mário Soares, além desse cuidado que teve na relação com a Igreja houve outros erros que ele quis evitar nessa altura?
JMS: Um deles, claríssimo, foi a ideia de Europa. Ele percebeu imediatamente que a nossa adesão à Europa, em primeiro lugar, era o contraponto natural à descolonização, que era inevitável e desejada, e também era um seguro de vida para a nossa democracia. E para além disso, Mário Soares fez questão de, mesmo depois de uma Revolução em que o próprio destino do país e da liberdade esteve em causa, de manter relações de diálogo democrático e de respeito democrático por todos os outros líderes partidários e consolidou esse papel do PS. Mesmo depois de tudo o que se passou, era preciso tolerância. Embora com ideias diferentes e com os antagonismos que se tinham exposto durante todo esse período do Verão Quente terrível, era preciso normalizar as relações políticas em democracia. E isso aconteceu no Parlamento. Isso aconteceu nos diálogos e na vida política. E se nós observarmos, por exemplo, os debates desse tempo - mesmo o famoso debate com Álvaro Cunhal em 1975 quando o país estava a ferro e fogo - se virmos bem, o que se discute ali são ideias e propostas para o país, não há ataques pessoais. Eles conheciam-se bem, muito bem. O Álvaro Cunhal tinha sido professor dele, tinham estado no Partido Comunista, quando Soares era muito jovem. Não há um ataque. Desse ponto de vista, com toda a clareza e frontalidade, há a maior disputa em relação à conceção que tinham da democracia do país. O tom sempre foi de respeito pelos adversários e de debate das ideias políticas. E aí o debate pode ser duro, frontal e claro. O que não se pode é, a certa altura, desqualificar os adversários, como acontece frequentemente hoje em todas as democracias, não só na portuguesa.
NSL: Voltando atrás em relação a essa grande bandeira da entrada de Portugal na CEE, olhando agora para onde está a União Europeia, acha que se foi longe demais nesta ligação de Portugal ao Continente Europeu?
JMS: Não. Eu acho que uma coisa não é contraditória nem incompatível. Acho que, pelo contrário, o sermos europeus valoriza a nossa posição perante todos os outros, nomeadamente, os países que falam português. E o facto de termos esses laços, falarmos uma língua que é falada por tantos milhões de pessoas também valoriza a nossa posição na Europa.
NSL: E acha que o país explorou suficientemente essa faceta?
JMS: Ainda pode explorar mais. Portugal tem uma importância internacional que muitos acham que é desproporcionada para a sua dimensão, mas que não é desproporcionada nem para a sua história, nem para a sua cultura, que lhe dá este…
NSL: Alcance.
JMS: Que lhe dá esse alcance todo e a capacidade que tem de estar no mundo. E isso é uma coisa fundamental. Todos os grandes políticos portugueses, aqueles que tiveram maior visão, foram os que viram isso. Essa ideia do papel de Portugal no mundo e do que é possível fazer com ele. Tem a ver com a nossa história, com a nossa cultura, com a nossa língua, mas também com o nosso exemplo, capacidade. A nossa Revolução foi uma Revolução seguida por todo o mundo. Nessa altura, Portugal aparecia nas primeiras páginas dos jornais, aparecia nos telejornais. Mário Soares, independentemente do lugar que depois ocupou, nessa altura era uma referência da Democracia e da Liberdade para o Mundo todo. Toda a gente queria estar com ele, toda a gente queria vir a Portugal e toda a gente o convidou, porque era, de facto, uma figura que tinha um prestígio internacional e que toda a gente conhecia. Eu creio que ele talvez tenha sido, num certo momento, uma das pessoas, se não a pessoa, que tinha mais Doutoramentos Honoris Causa pelas mais prestigiadas universidades do mundo, todas as grandes. E isso tinha a ver, mais do que o exercício do seu cargo como Presidente da República, com o que ele tinha sido e representado antes do 25 de Abril, obviamente. Mas sobretudo durante a Revolução.