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‘Politica Com Palavra’ com Isabel Moreira

‘Politica Com Palavra’ com Isabel Moreira


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Convicções pessoais toldaram uma visão objetiva e límpida sobre a Eutanásia

Oito anos depois de se ter iniciado o processo, a lei sobre a morte medicamente assistida foi finalmente promulgada pelo Presidente da República. A deputada Isabel Moreira faz o balanço em relação a todos os percalços e obstáculos colocados à entrada em vigor desta legislação.

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Nuno Sá Lourenço: Bom dia e bem-vindos a mais uma edição do podcast de Política com Palavra. Esta semana temos connosco Isabel Moreira. Deputada há 12 anos. Foi uma das parlamentares responsáveis pela aprovação e também pela recente promulgação pelo Presidente da República da Lei da Morte Medicamente Assistida. Esse, entre outros temas, será um dos assuntos que vamos debater nesta edição do nosso podcast. Isabel Moreira, muito obrigado por ter aceitado o nosso convite. Por que é que acha que a lei da morte medicamente assistida demorou tanto tempo a passar, tantos chumbos, tantos vetos?

Isabel Moreira: Bom, isso dava um livro. Ninguém negará que é um tema muito sensível e foi considerado um tema muito sensível em todos os países que o abordaram.

Mas penso que não foi normal o tempo que demorou a ser aprovado em Portugal e a quantidade de tropeções que nós fomos vivendo ao longo deste processo.

Porque é que eu digo isto? Nós iniciámos este processo legislativo há muitos anos, como é sabido. Primeiro com um movimento cívico, que era muito amplo, que pedia à Assembleia da República que respondesse a essa vontade de não perseguirmos penalmente quem ajudasse uma pessoa que, em situações muito excecionais, quisesse ajuda para autodeterminar a sua morte. E foi um movimento muito grande. E os partidos, nomeadamente o PS e o BE, e na altura não só, o Partido Ecologista Os Verdes também, responderam positivamente. Mas houve um amplo debate e, por vezes, quem se opõe a esta lei tenta mascarar isto. Houve um amplo debate desde logo com a própria petição que resultou desse movimento. Nós fizemos um grupo de trabalho na Assembleia da República, em que especialistas foram à Assembleia da República falar: constitucionalistas, pessoas da ética, pessoas da medicina, enfim, pessoas de todos os espectros que interessam para a questão. Houve um relatório final aprovado, redigido pelo então deputado José Manuel Pureza, que foi aprovado por unanimidade. Ainda hoje quem for para esse grupo de trabalho tem um dos acervos mais ricos sobre a matéria da morte medicamente assistida que pode encontrar. Depois houve uma petição em sentido contrário. Nós voltámos a fazer um grupo de trabalho, voltámos a ouvir uma série enorme de entidades, voltámos a fazer um relatório também aprovado por unanimidade. E, depois, houve os projetos de lei que, por sua vez, tiveram um amplo debate, como penso que toda a gente tem memória. Debate aberto no Parlamento, na medida em que todas as entidades que quiseram ser ouvidas foram ouvidas presencialmente, por escrito, houve debate na comunicação social. Houve debate nos próprios partidos. O Partido Socialista abriu as portas a um debate sobre esta matéria. Houve debate na comunicação social, penso que sem precedentes sobre a matéria que, de resto, é discutida há dez anos.

E porque é que eu digo que, apesar de ser uma questão delicada, eu não esperava que demorasse tanto tempo? Porque para mim, é claro que, do ponto de vista constitucional, nós temos um quadro constitucional que, aliás, é comentado desta forma pela Constituição anotada do professor Gomes Canotilho e do professor Vital Moreira, do professor Rui Medeiros e do professor Jorge Miranda, do próprio professor Marcelo Rebelo de Sousa, que tem uma Constituição comentada. Todas as constituições comentadas dizem isto, no sentido de dizer que o legislador pode consagrar a morte medicamente assistida. Ou seja, quando partimos para fazer o nosso projeto de lei, o quadro que nós tínhamos e que era bastante consensual,independentemente da posição pessoal de cada pessoa sobre a questão que, repito, é uma questão sensível, mas aquilo que que era consensual do ponto de vista jurídico-constitucional é que, sim senhora, nós temos o valor vida, o direito à vida, mas quando se trata de uma imposição constitucional de viver contra a vontade do próprio, aí parece-nos bastante consensual que o legislador tem liberdade, com formação, para fazer um diploma que permite, em circunstâncias excecionais, desde que com balizas do tipo das que foram consagradas - a pessoa ser maior, a vontade ser livre e esclarecida, a vontade ser atual, estar livre de pressões - e, portanto, isto parece-nos bastante calmo, do ponto de vista do que é o entendimento objetivo, jurídico ou científico da questão. Portanto, sem paixões à mistura, sem lutas que extravasam o que realmente é uma análise objetiva do tema. Isto a mim parecia-me pacífico. O legislador tem liberdade para fazer este diploma, como teve liberdade para fazer outros.

NSL: Então o que é que aconteceu?

IM: Nós fizemos um diploma que sempre foi, desde o início, o mais cuidadoso existente quando comparado com outros diplomas de outros países. Não há nenhum diploma tão à prova de bala como o nosso e estou a referir-me à versão inicial e, portanto, o que me parece que aconteceu foi que as convicções pessoais dos vários atores envolvidos, seja no Tribunal Constitucional, seja na Presidência da República - isto é a minha leitura pessoal - foram de facto tão fortes que toldaram uma visão objetiva, límpida, sobre aquilo que estavam a analisar. Porque nós começámos a perceber, logo no primeiro acórdão do Tribunal Constitucional, que o Tribunal Constitucional começou a fazer relativamente ao diploma da morte medicamente assistida, aquilo que vinha fazendo quanto a outros diplomas que também levantavam questões para alguns juristas de convicção pessoal, que era, em vez de dizer frontalmente ‘eu sou contra’, que não pode, era substituir esse juízo por uma nova abordagem do Tribunal Constitucional, que é a questão da determinabilidade, que é uma questão um pouco difícil, porque é muito fácil usar o conceito de determinabilidade em qualquer lei, porque é impossível fazer uma lei como a lei da morte medicamente assistida sem conceitos indeterminados, eles têm é de ser determináveis. E, portanto, logo no primeiro acórdão, o Tribunal Constitucional, até por causa daquilo que disse - das constituições anotadas que existem, da jurisprudência em relação à IGV e por aí fora - disse que não havia problema relativamente às questões levantadas pelos mais acérrimos atacantes da eutanásia, no sentido de ser totalmente inconstitucional, viola o direito à vida e por aí fora… Mas disse, há aqui um conceito que não está totalmente determinado, há aqui uma indeterminabilidade… como o tinha feito, por exemplo, em relação à gestação de substituição, como o tinha feito em relação à questão da autodeterminação das pessoas trans, no que toca à questão das escolas. Ou seja, o Tribunal Constitucional começou a enveredar por aí. E é um caminho muito difícil de ultrapassar, porque este tema claro que obriga a lidar com conceitos como sofrimento, como doença, como gravidade…

NSL: Isso é tudo subjetivo?

IM: Não é subjetivo, são conceitos que quem opera com a lei, sabe preencher. Nós quando falamos da IVG, por exemplo, também falamos da malformação do feto. Hoje penso que à luz da exigência que o Tribunal Constitucional foi pondo relativamente à morte medicamente assistida, eu não sei se hoje a lei da IVG, no que toca à possibilidade de interrupção por malformação do feto, passaria, porque os conceitos da morte medicamente assistida são muito mais determináveis do que o conceito de malformação do feto, como muitos conceitos do Código Penal. Se eu falar em homicídio qualificado, os conceitos de especial emoção violenta ou tantos outros conceitos que nós encontramos no Código Penal, eu hoje tenho muita dificuldade em pensar se realmente alguém os pusesse à prova, com a composição do Tribunal Constitucional, que entretanto mudou, como é que aqueles juízes se viravam perante a argumentação que foram aduzindo relativamente à morte medicamente assistida. O que acontece é que no primeiro acórdão, o Tribunal não se limita a dizer ‘eu acho que este conceito é indeterminável, é pouco determinado’, faz uma coisa muito pouco vista por parte do Tribunal Constitucional: aponta um caminho ao legislador para fazer a lei que, no entender do Tribunal Constitucional, deve ser feita. E diz que há o exemplo da lei espanhola, que para nós é um bom exemplo. E também há conteúdos que podem ser retirados da lei dos cuidados paliativos. Bom, isto é muito raro. Porque o Tribunal Constitucional o que deve fazer é dizer se uma norma é inconstitucional ou não, mas não deve dar sugestões ao poder legislativo, mas a verdade é que deu. Portanto, quando nós pensamos toda a reformulação do diploma - eu tive essa responsabilidade e agradeço o facto de os meus colegas, quer do Partido Socialista, quer de outros grupos parlamentares que apoiavam o diploma, no fundo terem-me confiado essa tarefa - quando reformulo o diploma, naturalmente, olho para aquele acórdão que diz ‘este conceito é indeterminável, olhem para a lei espanhola, olhem para a lei dos cuidados paliativos. Entretanto, nós reformulámos. Quando apresentámos novamente, acontece uma coisa única que foi o CDS objetar a redação final. E, portanto, o que é que acontece para as pessoas que não sabem como é que se passa o processo legislativo? Nós reformulámos o artigo dos conceitos, usando a lei espanhola como inspiração e a lei dos cuidados paliativos, mas depois em comissão é que se harmoniza a totalidade do diploma para que todo o diploma passe a usar os mesmos conceitos. Quando o CDS objeta a redação final, o diploma fica com uma variabilidade de terminologia que permite ao Presidente da República vetar politicamente. Foi uma jogada do CDS que eu considero pouco leal, porque eu jamais o faria. Nunca vi a não ser agora o Chega a fazer esse tipo de coisas. Não é uma coisa que se faça, objetar a redação final. Nós perdemos democraticamente esta votação, mas eu vou lá por uma jogada de secretaria e então o Presidente aproveita isso para dizer ‘alargaram muito o espectro, usaram aqui um conceito que depois não usam noutro diploma…’ Ninguém alargou espectro nenhum e então veio aquela ideia do Presidente que nós, na verdade, estávamos a introduzir pela primeira vez uma ideia de que poderia recorrer à morte medicamente assistida alguém que não estivesse na iminência da morte, o que não era verdade.

Esta sempre foi a lei do Luís Marcos, como nós dizíamos, e, portanto, quando se dizia doença fatal, nunca era, por exemplo, no sentido da fatalidade da doença. Enfim, criou-se toda essa discussão. O Presidente envia depois a nossa nova reformulação para o Tribunal Constitucional, em que fica tudo harmonizado, sem variabilidade terminológica, isto com uma dissolução da Assembleia da República pelo meio, porque o Orçamento do Estado não foi aprovado, e o Tribunal Constitucional produz um acórdão em que, numa expressão que é sofrimento físico, psíquico e espiritual, que é retirada literalmente da lei dos cuidados paliativos, o Tribunal diz que a lei é inconstitucional apenas aqui, porque não tem a certeza se aqui ‘e’ quer dizer ‘e’ ou ‘ou’, se é alternativo ou cumulativo. Eu nunca vi um acórdão assim, devo dizer. Até porque se o Tribunal é ele próprio que diz para nos inspirarmos na lei dos cuidados paliativos, e a expressão é retirada da lei dos cuidados paliativos, se agora tem esta dúvida relativamente à expressão, imagino que se alguém enviar a lei dos cuidados paliativos para o Tribunal Constitucional vai ter que ter a mesma dúvida. Eu durante muitos anos dei aulas de Direito Constitucional e dedico-me ao Direito Constitucional há muitos anos. Eu aprendi e dei aulas nesse sentido: o Tribunal Constitucional quando inconstitucionaliza uma norma ou um preceito ou vários, tem de ser por uma inconstitucionalidade evidente, uma inconstitucionalidade que não é superável, por interpretação sistémica, teleológica, o que seja. Isto foi um tipo de acórdão que eu acho que faz história pela sua absoluta originalidade. O que acontece é que os juízes estavam de tal forma divididos relativamente a esta questão e tinham convicções - para mim isto é evidente agora que podemos falar com abertura e olhando para trás - que, depois lendo os votos de vencido, os juízes são tão opinativos nos votos de vencidos e de acórdão para acórdão, que quando nós começamos a fazer a matemática dos votos de vencido, começamos a perceber para já que os juízes de acórdão para acórdão vão acrescentando coisas do que acham que a lei devia ser, o que não acho muito simpático com o legislador. Mais vale dizer logo à primeira, porque estão pessoas desesperadamente à espera da lei. Mas fazendo a matemática dos votos de vencido, ficou para nós claro que se nós não introduzíssemos a subsidiariedade da eutanásia, ou seja, se nós não puséssemos na lei claramente que as pessoas, os doentes, só poderiam recorrer à eutanásia se não fosse possível primeiro recorrer ao suicídio medicamente assistida, se o Presidente enviasse outra vez para o Tribunal Constitucional, eles teriam maioria para chumbar outra vez a lei. E, portanto, pela leitura conjugada dos votos de vencido e do próprio acórdão, nós decidimos não só resolver a questão do ‘e’ ou do ‘o’, voltando a um conceito de sofrimento sem ‘e’ nem ‘o’, portanto a um conceito que já tinha passado no Tribunal Constitucional, como resolvemos, de uma forma defensiva, introduzir a questão da subsidiariedade da eutanásia. E isto, devo dizer, foi uma coisa muito fora do normal. Quer dizer, não é usual o Tribunal Constitucional condicionar de uma forma tão forte o legislador, nomeadamente em votos de vencido que tornam tão evidente, até por uma simples matemática que se o Presidente quiser, ou melhor, os juízes tornam evidente ao Presidente que se ele quiser voltar a enviar para lá a lei, eles têm maioria suficiente para voltar a atrasar o processo legislativo. E, portanto, nós fazemos isto, o Presidente veta politicamente. O Presidente que tinha dito um ano antes que se a lei vier sem problema nenhum de constitucionalidade, eu promulgo.

O Presidente resolve vetar politicamente dizendo que não há problemas de constitucionalidade, que sabe que não há, mas que enfim, poderíamos acrescentar mais qualquer coisa, portanto dá sugestões legislativas. Mais uma vez uma coisa que não é normal no sentido do usual e aí, de facto, chegou o momento de respeitar a maioria e de respeitar o Parlamento e de respeitar os doentes que estavam à espera da lei. E eu estou convencida que é isso que o Presidente queria que nós fizéssemos. Isto é, o Presidente tinha uma convicção pessoal muito forte contra a morte medicamente assistida e precisava de dizer a si próprio e aos seus, que o apoiavam nisto, porque há muitos eleitores socialistas que votaram no Presidente da República e há muita gente que é a favor da morte assistida que votou neste Presidente da República. Ele precisava que ficasse claro que ele fez o que pôde para atrasar o processo e quando promulgou, foi porque foi obrigado. Tanto que quando promulga, a seguir na confirmação explica que o faz porque é obrigado, o que também não deixa de ser um pouco estranho. Ele podia dizer, promulgo nos termos do artigo 136 da Constituição. Mas não, ele diz, promulgo porque sou obrigado, porque aprovaram por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, coisa que nem sequer é bem assim, foi por mais do que maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, foi por 129 deputados. Não foi por 116 nem por 117. No caso, teria de ser por 116. Foi por muito mais, foi por 129. E, portanto, o que eu retiro deste processo é que, voltando ao que expliquei no início, é normal que tenha que ser um processo legislativo muito cuidadoso, muito escrutinado, muito pensado, com muitas pessoas a serem ouvidas, com muitas entidades a serem ouvidas, e tudo isso foi feito. Porquê? Porque é uma matéria muito sensível e tem de ser um diploma muito cuidado. Isso tudo foi feito. O que não é normal é expedientes dilatórios apenas para serem dilatórios. O que não é normal é acórdãos do Tribunal Constitucional que se pronunciaram pela inconstitucionalidade - com todo o respeito pelo Tribunal Constitucional e nós respeitamos sempre os acórdãos do Tribunal Constitucional - que se pronunciaram pela inconstitucionalidade de normas de uma forma que não é comum, com critérios muito pouco exigentes, no sentido em que era fácil ultrapassar aquele tipo de juízo. O que não é normal é juízes e juízas em votos de vencido irem opinando de acórdão para acórdão, como que dando pistas ao Presidente do que fazer da próxima vez que se dirigir ao Tribunal Constitucional para deitar o diploma abaixo. O que não é normal é tantas pessoas em órgãos de soberania, responsáveis por analisar uma lei da República, legitimada tantas vezes no Parlamento por uma maioria tão esmagadora, terem de alguma forma toldado o seu juízo por convicções pessoais e não se terem rendido a uma coisa simples que todos e todas temos que fazer, que se chama olhar para um diploma de acordo com o que a Constituição de facto permite, mesmo que não corresponda às nossas convicções pessoais, e há um elogio que eu tenho de fazer. Eu percebo que uma pessoa seja contra, que lhe seja difícil, que seja mesmo uma questão que é complexa para si. Mas nós vivemos num Estado de Direito e os órgãos de soberania não são pessoas individuais com as suas convicções, são órgãos de soberania. Eu acho que o órgão que foi mais leal neste processo todo, que doeu tanto a tantas pessoas, e para muitas foi mesmo inultrapassável, porque não puderam esperar pelo seu desfecho. O órgão de soberania que comportou com mais lealdade àquilo que deve ser a nossa República foi o Parlamento.

NSL: E tendo chegado nós a esta fase, está à espera que aconteça mais algum capítulo neste processo, nomeadamente no Tribunal Constitucional?

IM: Eu penso que as pessoas que são muito ferreamente contra a eutanásia, claro que estão no seu direito de promover a fiscalização sucessiva. É um instrumento à disposição de um décimo dos deputados. Portanto, é um mecanismo normal. Mas qualquer diploma em vigor, tenha ele a idade que tenha, desde que esteja em vigor e que quem tenha legitimidade para requerer a fiscalização sucessiva o faça, é normal. Neste momento, o que me parece importante sublinhar é que, finalmente, a vontade democrática do Parlamento foi cumprida e a promulgação aconteceu.

Tenho pena que tenhamos passado por um processo tão doloroso e penso que ficou difícil até para os portugueses de compreenderem porque é que foi preciso esta caminhada tão árdua e, sobretudo, colocou um problema para o futuro, como eu dizia: é que eu acho que é difícil hoje nós compreendermos ou imaginarmos como é que o Tribunal Constitucional hoje olharia para leis que nós temos como seguras, como a lei da IVG, quando fala em malformação do feto, ou como tantas outras normas do Código Penal, nomeadamente, as que dizem respeito a categorias de homicídio, por exemplo. O Código Penal está pejado de conceitos muito mais indeterminados do que aqueles que afligiram o Tribunal Constitucional em relação à morte medicamente assistida.

NSL: Se calhar há uma diferença entre a aprovação dessas leis, relacionadas com os temas fraturantes, e esta…

IM: Mas é que o problema é esse. É chamar fraturante a este tema. Eu ainda ontem vi um tweet do ex-ministro Adalberto Campos Fernandes a dizer que, não sendo contra a eutanásia, explicando que é uma questão de consciência. Não é uma questão de consciência. Será uma questão de consciência se o médico tiver de decidir se é objetor ou não. Mas quando a Assembleia da República está a decidir, quando um deputado está a decidir, isto é uma questão de política criminal, é uma questão de direitos fundamentais. Portanto, um deputado ou uma deputada têm a obrigação de não se refugiarem na sua consciência - nomeadamente, para dizer ‘não consigo decidir’- e tentar estudar, analisar. Tem tudo ao seu dispor para estar absolutamente informado relativamente ao tema e tentar perceber se faz sentido ou não continuar a haver perseguição penal em determinadas circunstâncias ou não. Isto é uma questão de direitos fundamentais. Faz sentido não consagrar um direito fundamental que é a autodeterminação da nossa morte em determinadas circunstâncias ou não? Porque essa questão da consciência depois leva-nos para tudo. Quando nós criamos um tipo penal, por exemplo. Quando decidimos que determinada conduta passa a ser crime, quando nós aumentamos uma moldura penal, eu também posso dizer que isso é uma questão de consciência, porque se eu votar a favor, isso significa que alguém que for acusado de um crime vai eventualmente passar mais anos encarcerado por causa do meu voto a favor. Portanto, eu fico muito desconfortável com esse refúgio da consciência.

NSL: Mas onde eu queria chegar é que em relação a outros momentos da aprovação de outras leis de que falou, tem que ver com uma diferença, que é a forma como se debate hoje em dia a influência das redes sociais, a forma como o debate, às vezes, resvala para questões mais emocionais. Não acha que isso teve também um papel?

IM: Eu acho que teria tido mais se tivéssemos ido para referendo. Isso era o perigo do referendo, porque eu estive em debates com pessoas bastante incendiárias que me disseram que eu queria eutanasiar pessoas que tivessem um terçolho ou um problema no menisco. Quer dizer, em que o debate era irracional ou a dizerem mentiras descaradas relativamente ao diploma. Dizer, por exemplo, que a questão que o que estava em causa era a eutanásia de pessoas idosas ou de crianças. Portanto, a facilidade com que no mundo em que vivemos, altamente polarizado, altamente incendiário, altamente manipulável, com questões emocionais, misturando o que não é misturável, inventando mentiras que disparam à velocidade da luz, isso teria sido um perigo enorme num debate de referendo. Porque não seria um debate sério, não seria um debate racional. A partir do momento em que não havendo referendo, há quem vá para órgãos de comunicação social debater e dizer com ar sério que o que está em causa - e usavam mesmo o termo - matar crianças ou pessoas com terçolhos. Agora eu estou em crer que os juízes do Tribunal Constitucional e o Presidente da República não se deixam influenciar por isso. O que eu acho é que eles próprios têm uma convicção muito profunda relativamente a essa matéria e por vezes é difícil ao jurista distanciar-se e dizer ‘sim senhor, eu tenho esta convicção, mas eu acho isto’. Como acha, de resto, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, na sua Constituição comentada, relativamente a esta matéria. Que o legislador tem legitimidade para consagrar a morte medicamente assistida. Mas quando se é titular de um órgão de soberania tem que se fazer esse distanciamento. Se alguém é Presidente da República ou juiz do Tribunal Constitucional, tem que fazer aquilo que é ditado pela Constituição. Eu acho que foi um excesso este último acórdão do Tribunal Constitucional, de saber se o ‘e’ era cumulativo ou se era alternativo, que eu não tenho memória de uma coisa assim. Foi de facto muito penoso e não foi penoso para nós, quero dizer, claro que custa, estarmos a legislar, a formular, a reformular.

U A questão é que quando nós estamos a legislar sobre uma matéria destas, não se legisla em abstrato. Há pessoas atrás destas questões, há doentes que falam connosco, há doentes que dizem ‘mas porquê? Porque é que nos estão a fazer isto? Porque é que continuam a considerar-nos pessoas menores? Porque é que continuam a tratar-nos como criminosos? Porque é que não nos deixam determinar a nossa morte com dignidade?

Nós não aguentamos mais este tipo de debate’. O que doía muito nesta matéria é que quando há questões públicas que estão em discussão, com a posição A e a posição B, manifestações à porta da Assembleia da República, pessoas que pedem para ser recebidas pelo Presidente da República, e por aí fora, estes doentes, pela própria circunstância em que estavam, não tinham forças. E era das coisas que mais me angustiava quando via os movimentos ditos pró-vida, é que eu falava com doentes que me diziam ‘eu não posso fazer esse tipo de coisas porque eu estou muito doente e eu não tenho forças’. Havia aqui uma desigualdade de armas, até em termos vocais, que era muito duro. E isso foi, se calhar, o mais pesado e emocionalmente mais difícil de digerir.

NSL: E qual foi a reação dessas pessoas, desses contactos que tinha, com as pessoas mais diretamente envolvidas, quando finalmente se conseguiu a promulgação?

IM: Foi a sensação de se cumprir, finalmente, o respeito por eles. Eu recebi e ainda continuo a receber muitas mensagens e, sobretudo, emails de doentes e de familiares com quem já falava, com testemunhos absolutamente arrasadores. E eles sentiram-se muitas vezes usados no debate público. A forma simplista como se falava. Sentiam-se se usados nessas caricaturas que se faziam. Sentiam uma enorme falta de empatia. Porque uma coisa é uma pessoa não concordar, outra coisa é falar-se, como algumas pessoas falaram, com muita leviandade e até troça. Quando o que eles queriam era apenas escolher, não queriam impor isso a ninguém. E queriam viver numa sociedade em que pudéssemos todos autodeterminar esse momento como quisermos, mas sem oposição e sem perseguição. E depois houve aqueles doentes que acompanhei e que infelizmente morreram antes da lei ser aprovada e isso também foi muito duro.

Fotografias: José António Rodrigues