Eu havia assistido ao terceiro congresso em 1979. Fascinado com a visão estratégica que Guterres criara em “Portugal anos 80”, não mais encontrei, em todos os congressos que até hoje se realizaram, a dimensão política e o debate intenso em torno de uma sociedade democrática, europeia e desenvolvida como a que, nesse final de década, se propunha.
O congresso de 8, 9 e 10 de maio de 1981, no Coliseu de Lisboa, não foi só o respirar de política em debate, foi, também, o melhor da conspiração, a dificuldade em se constituírem as listas para os órgãos estatutários. À margem estava a “Esquerda Laboral”, uma linha autogestionária que se extinguia no seu caminho de sensibilidade interna.
Tinha chegado à maioridade há uma semana, era um recém inscrito no partido depois de três anos de militância na JS. Estava a nascer uma outra gente que haveria de substituir Arons de Carvalho, José Leitão e Margarida Marques e que sofreria a longa travessia do cavaquismo. Um punhado de criaturas, provavelmente deslumbradas, haveria de se sentar, durante aquele fim de semana de vida em Coliseu, ao lado das bancadas dos convidados, uma permanente algazarra que não passava despercebida aos apoiantes de Soares quando falavam, tal era a dimensão do assobio. Esses catraios achavam que havia uma nova geração a revelar-se no PS e que se deveria antecipar a jubilação dos fundadores. Estávamos errados!
As duas noites lisboetas desse congresso não tiveram cama. Sabíamos isso quando rumámos a Lisboa e não consideramos qualquer problema. De sábado para domingo o começo foi nas tascas de bifanas que havia na baixa e o final da noite foi numa padaria que vendia pão quente na Praça do Chile. Estávamos todos derreados quando se contaram os votos e se confirmou a maioria reforçada de Soares. Esse corte partidário haveria de se resolver passados sete anos.
O volume do barulho dos tais jotas insolentes havia-se extinguido. Eu aproveitaria para dormir no comboio correio que sairia perto da meia-noite em Lisboa e me permitia chegar a Vila Real ao meio-dia seguinte.
Foi neste estado zombie que notámos a agitação dos convidados internacionais, primeiro entre eles com um ar de surpresa e de alegria, depois só alegria. A notícia era confirmada por várias fontes, François Mitterrand havia sido eleito Presidente da República francesa.
Ao anúncio feito pela mesa responde o congresso. Naquela altura o Coliseu tinha almofadas em cada cadeira de cores várias, todas voaram num espetáculo único.
Soares via o seu amigo mais próximo consagrar um novo tempo político em França e na Europa, os apoiantes de um reforço da convergência à esquerda viam a confirmação de que os comunistas eram essenciais para o futuro.
Os trabalhistas ingleses, os sociais-democratas nórdicos e germânicos já eram práticos no poder do pós-guerra, mas a esquerda francesa parecia ter perdido a esperança. Mitterrand haveria de a devolver. Para os portugueses existiam duas razões muito relevantes que beneficiariam desta mudança política: o número de emigrantes e as sus condições de vida; a adesão de Portugal à CEE.
Mitterrand haveria de ser, como Soares também o seria, um presidente-rei. A sua aura, antes do seu imenso poder, fez da França um elemento central da construção democrática da Europa, consagrou uma aliança perene com Berlim (Bona) que foi essencial para o fim da União Soviética e para a implosão do Bloco de Leste.
Mitterrand nacionalizou partes relevantes da indústria, modernizou a economia, voltou a privatizar, abriu setores à concorrência internacional e afirmou as marcas no automóvel, na moda, nos vinhos, nas tecnologias. Mitterrand esventrou o património para lhe dar uma outra dimensão, das pirâmides de vidro do Louvre à reafirmação da língua em África. O presidente socialista mirou olhos nos olhos os Estados Unidos da América, consagrou a autonomia militar da Europa, iniciou o processo de comércio livre que as décadas seguintes acelerariam. A França passou a contar e a voz de alguém enorme, mesmo que de físico médio, ecoou até hoje.
A política de direitos que Mitterrand haveria de oferecer às comunidades imigrantes é, ainda hoje, uma marca. Escola obrigatória para todas as crianças até aos catorze anos; assistência na saúde para documentados e indocumentados; segurança social para contratados e precários; eliminação dos bidonvilles e alargamento significativo das condições de dupla nacionalidade. Olhando alguns emigrantes portugueses que, na França de hoje, militam na extrema-direita, só poderemos considerar que falhámos no atualizar da memória de um passado de miséria que atingia centenas de milhar de concidadãos que negaram a fome e saltaram fronteiras rumo ao desconhecido.
Portugal obriga-se, porém, a uma outra dívida com Mitterrand. As elites socialistas francesas assumiram, durante muito tempo, uma visão elitista no contexto europeu. Jacques Chirac, nas suas memórias, conta-nos como se havia criado um muro de rejeição à adesão de Portugal à CEE nos anos de 1984 e 1985. Também nos conta que o máximo que esses socialistas aceitavam era a entrada de Espanha no grupo europeu. Mitterrand não ouviu ninguém e deu ordens ao seu governo para que no dia em que Espanha entrasse também entrava Portugal. Foi Soares, na sua amizade forte com o presidente francês, quem nos fez abandonar a saudade de um império e nos criou o sonho de um mundo desenvolvido.
Passam hoje 40 anos do 4º congresso do PS, talvez o último onde a política se inalou como cocaína. Também passam 40 anos da eleição de Mitterrand. E os socialistas portugueses, todos os portugueses, devem assinalar esta efeméride com um forte e sentido reconhecimento.