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Memórias Minhas, Manuel Alegre

Memórias Minhas, Manuel Alegre

Não é – ou, pelo menos, não é apenas – por ser o mais recente livro do Presidente Honorário do Partido Socialista que merece aqui destaque, no órgão informativo oficial do Partido, o lançamento de Memórias Minhas, de Manuel Alegre (nas Publicações Dom Quixote).

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A obra Memórias Minhas, de Manuel Alegre, foi apresentada ontem, ao fim da tarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, numa sessão onde foram produzidas intervenções, sobre a obra literária e cívica do Autor, por António Feijó (Presidente da FCG), Guilherme d’Oliveira Martins, Isabel Soares e Jaime Gama. A encerrar a sessão, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, discursou e condecorou Manuel Alegre com a Grã-Cruz da Ordem de Camões. Manuel Alegre agradeceu a distinção, que disse ser uma surpresa, e afirmou ser esta, de todas as condecorações que recebeu, “aquela que mais fundo me toca”, “dada a minha veneração de Camões, dado o facto de Camões estar sempre presente em mim e estar sempre presente em tudo o que escrevi.”

De acordo com Manuel Alegre, Memórias Minhas foi escrito como o título indica, radicalmente: de memória, de memória mesmo, de memória apenas, sem recurso a quaisquer apontamentos ou documentos. Faz justiça ao facto de o autor, na sua vida cívica e política, ter continuadamente chamado a atenção para a importância da memória para a nossa vida coletiva, da necessidade de alimentarmos de memória a inteireza da nossa pertença ao mundo.

O livro traça as raízes históricas profundas do empenhamento cidadão do autor, incluindo os liberais do princípio do século XIX, desenhando a diversidade de pertenças políticas e sociais dos seus antepassados. E vem, também e principalmente, enriquecer o património da nossa vida pública por densificar o conhecimento disponível acerca das décadas mais recentes da nossa vida como povo. Antes e depois de Abril, em campanhas decisivas como a de Humberto Delgado, na sua passagem pelo PCP e na saída provocada de forma mais imediata pela não condenação da invasão soviética da Checoslováquia em 1968, na guerra colonial, no exílio, na prisão, na adesão ao PS, na luta contra o desvio gonçalvista que arriscou levar a revolução para fora do seu impulso democrático original, na camaradagem com Mário Soares e nos momentos de aproximação e afastamento político, na crítica à Terceira Via e à tentação do socialismo democrático pelas teses neoliberais, na voz que falava de Argel pela rádio quando não podia falar cá e na voz que representou sempre uma certa ideia de esquerda dentro do PS, no militante que nunca deixou de ser e contudo protagonizou um movimento de cidadãos que passava ao lado do PS e às avessas com algumas orientações do PS, … são inúmeros os episódios que merecem ser revisitados, em mais uma perspetiva agora exposta nesta obra.

A obra contribui, também, para a nossa compreensão da personalidade política e literária de Manuel Alegre. Não tanto por incluir novidades extraordinárias acerca de factos, mas especialmente por nos abrir um pouco a janela da compreensão do modo como Manuel Alegre vê Manuel Alegre. Jaime Gama, na brilhante oração que fez na sessão de apresentação do livro, disse isso de forma particularmente profunda – e também talvez um pouco provocante – ao afirmar que Manuel Alegre escreve o romance da sua própria vida. A verdade é que, seja ao contar episódios da sua vida pessoal e familiar, seja ao focar a sua escrita em episódios da grande história contemporânea de Portugal, este livro é nitidamente obra de um grande escritor.

Aprecio, particularmente, a forma como Manuel Alegre assume que política e poesia são partes inseparáveis da sua vida, do seu modo de ser, do mundo que lhe faz sentido. Ser poeta pode ser, e no caso de Manuel Alegre é, uma forma de olhar para o mundo que não se esgota nas suas palavras nos seus poemas. Ainda numa parte inicial do livro, essa questão é apresentada em referência a sua tia-avó Maria do Carmo, que “ainda eu não tinha escrito nenhum verso, já ela, referindo-se a mim, dizia ‘o nosso poeta’” (p.28).

Há, de qualquer modo, muito em Memórias Minhas para nos dar que pensar em termos políticos, sem que possamos desligar-nos da poesia do poeta. Nambuangongo é uma referência para quem conheça um pouco da obra de Manuel Alegre. Entretanto, é-nos contado que, a primeira vez que ficou em Nambuangongo, o autor dormiu no quarto de António Arnaut, que tinha na parede duas frases, uma de Fidel Castro e outra do Papa João XXIII. A de Castro rezava assim: “Nem Liberdade sem Pão, nem Pão sem Liberdade” (p. 109). Confesso que não conhecia essa frase de Fidel Castro, e lamento que o próprio líder da revolução cubana não tenha sido fiel a tal pensamento. De qualquer modo, segundo Alegre, foi a primeira vez que falaram de “socialismo em liberdade”. E a liberdade sempre foi uma bússola para o autor de Memórias Minhas, além de ser, também, um compromisso permanente do Partido Socialista.

O que é mais marcante num livro de memórias, quando as memórias são significativas para além do círculo do próprio autor, é que as memórias não são vidas passadas. As memórias fazem as vidas presentes. Há um momento onde, literariamente, isso é expresso, de forma particularmente bela, por Manuel Alegre. Está a contar (p. 35) um período em que, ainda adolescente, viveu em Lisboa com parte da família, mas tendo o pai ficado no Norte. E diz onde viviam em Lisboa. “Morávamos na Rua Padre António Vieira, nº 1, à esquina da Castilho, em frente ao Parque Eduardo VII. A mesma rua onde hoje mora o meu amigo Jorge Sampaio, ex-Presidente da República.” Não respigo este momento pela circunstância de eu próprio viver há bastantes anos nesse mesmo recanto de Lisboa, tendo também memórias vivas – e muito saudosas – da vizinhança com Jorge Sampaio. É que, vejam bem a forma extraordinariamente literária, e poética, como Alegre diz. Em 2024, tendo Jorge Sampaio desaparecido do nosso convívio há alguns anos, Manuel Alegre diz que Jorge Sampaio está lá. Vive lá. Nós temo-lo ali. E assim se diz, tão brevemente e sem adorno nenhum, algo tão belo e tão profundo acerca das nossas vidas e das nossas memórias.

Manuel Alegre é um amante de Portugal. Mesmo quando a sua pátria era diferente da pátria dos opressores. A resistência é em si mesmo uma pátria. Eis uma ideia central neste livro. E uma ideia que ajuda a compreender o seu autor. Um autor que correu os riscos inerentes. Como disse, ontem, na apresentação: “Não me precavi.” Precisamos mais de cidadãos assim.

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