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MÁRIO SOARES, O PS E A LIBERDADE

MÁRIO SOARES, O PS E A LIBERDADE

Um dia perguntaram-me quais são as três palavras que melhor dizem o que fez e o que foi Mário Soares na política. Eu respondi então o que respondo agora: a primeira palavra é liberdade; a segunda também é liberdade; e a terceira ainda é liberdade. Todas as outras vêm depois e por causa destas três.

Opinião de:

MÁRIO SOARES, O PS E A LIBERDADE

É pela liberdade, pela ubiquidade da liberdade, que vem a igualdade (de direitos, de oportunidades, de possibilidades). É pela liberdade, pela continuidade da liberdade, que vem a justiça social (emprego, trabalho com dignidade pago com integridade, tempo livre e libertador). É pela liberdade, pela contiguidade da liberdade, que vem a solidariedade (nos momentos de implosão e nas situações de exclusão). Foi em nome da liberdade que Soares, nos seus governos, que são os governos mais reformistas e mais duradouramente eficazes de todos os que vieram depois do 25 de Abril, construiu o Estado Social de Direito. Isto é: o Estado de Direito e o Estado Social, um com o outro, um do outro e um para o outro. 

É à palavra liberdade que o seu nome esteve, está e estará ligado. E foi à liberdade que ele ligou para sempre o nome do PS – à sua aura, ao seu prestígio, à sua força. A seguir ao 25 de Abril, num país que parecia ter saído de uma ditadura para entrar logo noutra, foi o PS que afirmou, alto e bom som, que Portugal tinha o direito de ser um país livre. Isto é, uma democracia europeia, pluralista e pluripartidária. Por isso, se disse que, entre uma direita à sua direita que, salvo poucas excepções, tinha sido salazarista, e uma esquerda à sua esquerda que, salvo raros desvios, não deixava de ser estalinista, o PS era “a fronteira da liberdade”.

Este caminho para a liberdade não foi, então, nem evidente, nem linear, nem simples. E menos ainda foi fácil, consensual, ou pacífico. Acusado pela direita de estar feito com a “esquerda totalitária” e pela esquerda de estar feito com a “direita fascista”, o PS aprendeu a fazer-se consigo próprio – a construir a sua identidade, a sua feição, a sua afeição, o seu rosto. Foi ao fazer isso que se tornou novo, mesmo entre os partidos socialistas, sociais-democratas e trabalhistas da Internacional Socialista. 

Pouco antes de morrer, André Malraux disse (e Soares repetia isso com muito orgulho) que, com o PS português e pela primeira vez na história do mundo, os mencheviques tinham vencido os bolcheviques. E outros afirmaram que Soares tinha desmentido, ao mesmo tempo, Salazar e Cunhal, quando ambos afirmavam que, “entre nós e os comunistas – ou entre nós e os fascistas – não há mais nada”.  

Para Mário Soares, a liberdade era um instinto, uma vitalidade, antes de ser uma política e uma moral. Foi por causa da liberdade que lutou contra a ditadura. Foi por ela que foi preso, deportado, exilado. Foi por ela que saiu do Partido Comunista. Foi por causa da liberdade que nunca justificou o injustificável. Foi por ela que nunca faz da cegueira uma visão. Foi por ela que nunca aceitou que se matassem pessoas para que as ilusões pudessem viver. Foi por causa da liberdade que se recusou a construir os amanhãs que cantam sobre os hojes que choram. Foi por ela e com ela que fundou o Partido Socialista. Foi por ela que a sua voz se levantou, invencível, na Fonte Luminosa. Foi por ela que governou e presidiu.

E, mais recentemente, foi também em nome da liberdade que denunciou as manhãs que fazem mega-ricos à custa das tardes que fazem infra-pobres (um dia, ouvi-o conversar, em Olinda, com o arcebispo Dom Hélder Câmara sobre o seu livro “ O Escândalo dos Infra-Homens”). Foi por causa da liberdade que, se antes condenara o capitalismo de Estado e a sua opressão, depois acusou o capitalismo de casino e o seu despotismo. Foi em nome da liberdade que não aceitou a sujeição da política à economia e o domínio desta sobre tudo e sobre todos. Foi assim, porque Soares sabia que só a política pode dar à democracia o poder que garante a liberdade de cada um, para todos – e a liberdade de todos, para cada um.

Os seus anos do fim foram feitos de dias de fúria e de furor. Também de sublevação, de insubmissão, de indignação por ver a liberdade mais uma vez ameaçada e desfigurada. Ameaçada e desfigurada por aqueles que dizem defendê-la, negando-a. Como outros, no passado, estes, no presente, usam, afinal, o nome dela – abusam do nome dela – para melhor a domesticarem e para assim a anularem.

Guardar a memória de Mário Soares, fazendo-a viva, inspiradora, motivadora, indutora, perigosa (no sentido mais poético desta palavra), é continuar a dizer que a liberdade não é esta mísera e mesquinha máscara com que a querem confundir – e com que nos querem confundir. 

Dizer a liberdade – e agir pela liberdade – não é um arcaísmo ou um dever cediço, fora de moda, ingénuo ou inútil. É, outra vez, a obrigação, a responsabilidade e a luta mais urgente, mais grave, mais necessária do nosso tempo. Foi esse combate que fez sempre, dos momentos perdidos, momentos ganhos. Assim foi a vida livre de Mário Soares e, com a dele, a nossa.