Margarida Marques e Ivan Gonçalves
“Histórias da História”
Ao escrever hoje sobre Mário Soares, depois de tudo o que ouvimos e lemos nos últimos dias, para sair da repetição, em que, aliás, também participo convictamente, “Soares, o pai da democracia e da adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia”, vou centrar-me na minha relação com ele. Alguém escrevia um destes dias “estou farta das histórias pessoais com Mário Soares. Cada um conta a sua história…”. Mas são as “histórias de cada um” que, cruzadas, fazem a história que partilhamos. As histórias de cada um de nós com Mário Soares, para aqueles que têm o privilégio de as ter tido, fazem parte da nossa vida.
Conheci pessoalmente Mário Soares em 1974, logo a seguir ao 25 de Abril, quando me inscrevi no Partido Socialista e com outros e outras fundámos a Juventude Socialista. Soares ficou entusiasmado com o aparecimento da Juventude Socialista. Alberto Arons de Carvalho, o militante número 1 da JS, tinha estado em Bad Münstereifel e era fundador do Partido. Outras organizações de Juventude Socialista, junto de partidos socialistas ou trabalhistas, na altura, na Europa, tinham posições mais radicais que os seus próprios partidos e, em alguns casos, viam-se dominadas ou atravessadas pela presença de militantes ou movimentos trotskistas. Era o caso da Juventude do Partido Trabalhista e também, de certa forma, do Movimento da Juventude Socialista em França. Nós, JS, tivemos a nossa prova de fogo no segundo Congresso da organização. Na véspera desse Congresso Mário Soares quer saber junto de Arons de Carvalho quem estava com ele: com ele Alberto Arons; com ele Mário Soares. Soares não ficou muito entusiasmado com as respostas de Arons de Carvalho. Ganhámos o Congresso por cinco votos.
Na noite do 25 de Novembro, Melo Antunes aparece na RTP chamando a atenção para a necessidade de não marginalizar o Partido Comunista. O Secretariado Nacional da JS reúne nessa noite e faz um comunicado apoiando essa posição, que terminava com a expressão “Viva Melo Antunes”. Mário Soares chama Arons de Carvalho no dia seguinte, expressando alguma surpresa pela referência (embora, como o próprio lembrou mais tarde, Mário Soares tenha defendido basicamente o mesmo que Melo Antunes nessa questão).
Quando fui eleita Secretária Coordenadora da JS (em 1981 era essa a terminologia; hoje é Secretário ou Secretária-geral), fui eleita com um programa que Mário Soares considerava muito radical. Tivemos muitas discussões. Nunca deixámos de fazer o que achávamos necessário ou deixámos de tomar as posições ou as iniciativas políticas por reserva de Mário Soares. Na diferença de pontos de vista, reconhecia a autonomia da Juventude Socialista. Lembrava-nos o que Mitterrand tinha feito ao MJS. Nunca fez o mesmo à JS. Ontem tive o prazer de falar sobre este assunto com Lionel Jospin, que em representação do Governo francês participou nas exéquias, e entendi que se lembrava bem do caso!
Divergimos e convergimos. Nunca deixámos de discutir as posições que a JS, eu própria e ele tínhamos. Sobre o Médio Oriente ou sobre a América Latina ou sobre outras políticas com implicações na vida dos jovens portugueses.
Mais tarde, no início da década de 90, disse-me, na inauguração de uma exposição em Bruxelas: “Nunca nos entendemos porque eu achava que você era uma perigosa esquerdista e a Margarida achava que eu era um perigoso direitista. Hoje somos amigos”.
Em 2005, nos 20 anos da assinatura dos Tratados de Adesão de Portugal e Espanha à UE, em colaboração com o meu homólogo, chefe de Representação da Comissão Europeia em Madrid, organizámos uma reconstituição do ato de assinatura dos Tratados em 1985. Em Lisboa primeiro (no mesmo local onde, também simbolicamente, ontem tiveram lugar as Cerimonias Fúnebres de Estado), depois em Madrid. Convidámos Soares e Gonzalez. Em privado, defendeu uma posição a propósito da globalização, que eu comentei assim: “interessante, era a posição que eu defendia na década de 80 e o senhor dizia que eu era uma esquerdista por defender essa posição”. Ele teve a reação mais inesperada, mas que revela bem a preocupação que Soares sempre teve de conjugar liberdade de pensamento e sentido de responsabilidade. Disse-me: “nos anos 80 eu tinha responsabilidades governativas, a Margarida não tinha responsabilidades. Hoje mudámos de papel. Sinto-me livre para dizer tudo o que penso”.
Discutimos muito a Europa. Eu enviava-lhe documentos, artigos ou outras informações ou análises sobre a União Europeia. Há pouco mais de um ano enviou-me uma carta em que expressava todo o seu reconhecimento pela minha ajuda em melhor poder acompanhar as questões europeias. Mas nunca deixou de me dizer, coerente com a forma como sempre esteve na vida politica: “é preciso fazer mais; é preciso fazer diferente na UE”. Ontem, Martin Schultz, ainda Presidente do Parlamento Europeu, que também fez questão em vir a Lisboa, lembrava as intervenções de Mário Soares nas reuniões do Grupo Socialista no Parlamento Europeu. Dizia ele, “intervenções longas, preocupadas, criticas, construtivas mas nunca banais”.
São histórias na primeira pessoa, sei bem. Mas são o testemunho que posso dar hoje sobre Mário Soares. Não esquecerei as lições que me deu. Obrigada Mário Soares.
Margarida Marques
“Mário Soares: uma referência de humanismo e dedicação a Portugal”
Mário Soares marcou de forma indelével a segunda metade do século XX português. A resistência e luta contra o fascismo, a consolidação da Democracia pluralista e a forma como liderou decisivamente Portugal ao encontro do projeto europeu, figuram entre os momentos marcantes da sua vida política que provam o seu elevado sentido de dever e patriotismo.
Era um otimista por natureza, que sentia genuína satisfação por assistir ao envolvimento dos jovens nas causas políticas, em especial na defesa dos ideais do socialismo democrático. Um cidadão do mundo, crítico dos ditames que o liberalismo vai impondo ao nosso modo de viver e do suposto fim das ideologias, que nos reduz a todos a máquinas de consumo exacerbado. Um líder que abraçava a Liberdade e a Democracia, tanto nas vitórias como nas derrotas.
Mário Soares foi um “político”, como gostava de se descrever, sendo um exemplo de que esta é a mais nobre das artes, quando exercida ao serviço da causa pública. Foi um humanista que dedicou a sua vida a Portugal e aos portugueses. Um homem que inspira, ainda hoje, jovens dos mais variados credos e ideologias a seguirem o seu exemplo de vida, repleto de lutas pelas causas em que acreditava, muitas vezes com grande sacrifício pessoal.
Um exemplo que pode – e deve – ser transposto para o Portugal do século XXI, onde existem igualmente outros desígnios (necessariamente renovados) que devem merecer a nossa atenção e outras lutas, importantes para o nosso futuro coletivo, que devem ser travadas, a bem de uma sociedade menos desigual, mais justa e mais solidária.
Por esse legado, pelo quanto lhe devemos, mas, fundamentalmente, por aquilo que a sua vida nos inspira a fazer pelo amanhã, Mário Soares terá sempre a nossa eterna amizade, admiração e um sentido agradecimento de todos os jovens socialistas,
Até sempre Camarada!
Ivan Gonçalves