Opinião: Manifesto anti-Rangel
28 de Março de 2019
O que Rangel faz é consagrar a segregação de cidadãos com direitos só porque o destino os uniu pelo sangue ou por projetos comuns.
Os populistas, cada vez mais numerosos, usam a impostura e a insolência para fazerem valer as poucas e más ideias dos seus combates.
Este é um dos grandes problemas que se colocam às democracias liberais, este é um dos caminhos que mais danos tem criado aos agentes políticos que se querem afirmar pela moderação e pelo equilíbrio.
Ao trazer para o debate público a questão do “familismo governativo”, Paulo Rangel não quer fazer uma campanha para o Parlamento Europeu com base no que o seu partido propõe. Opta por ganhar espaço, tema e debate usando a taberna, o primarismo e o atavismo como condimentos das suas proclamações.
Rangel indica os graves problemas de, num governo de mais de seis dezenas de membros, haver dois ministros que são casados e dois ministros que são pai e filha. Não vai Rangel pelo lado da competência e adequação aos cargos, não segue pela realidade de uma democracia madura que que não deixa a sindicância da ação política com uma pequena falha. O que Rangel faz é consagrar a segregação de cidadãos com direitos, com inteligência e vidas autónomas só porque o destino os uniu pelo sangue ou por projetos comuns.
Talvez Rangel não saiba que um filho nosso tem o direito de ser tanto quanto conseguir e que num país de igualdade de oportunidades nada se pode autorizar como benefício e nada se pode confirmar como penalização só porque se é família. Talvez Rangel não saiba o que é viver com uma companheira e/ou um companheiro que ganhe para si independência e queira ter uma existência autónoma e com realização pessoal.
Rangel talvez viva no tempo em que a esposa ficava em casa fazendo renda e cuidando dos filhos. Talvez até ache que essas esposas devem falar francês e tocar piano, mas nunca podem ser autorizadas a ter opinião ou sentimentos próprios.
Quando Rangel fala de personalidades da vida política portuguesa com laços de sangue e que foram ocupando cargos políticos deveria, antes de tudo, olhar a história da nossa democracia. Deveria observar como ela foi sendo feita, consolidada e afirmada tendo em conta os muitos políticos que se formaram em conjunto e que não desmereceram por serem familiares de outros.
Para Rangel, os irmãos Portas estariam impedidos de viver a vida política ao mesmo tempo, um deveria ficar na sombra para o outro poder sobressair. E também Baião Horta e Basílio Horta não poderiam ter sido ministros em governos da mesma área política, porque o sangue o impedia. E agora Filipe Anacoreta Correia não poderia ser deputado, porque o pai, um autêntico Senador da nossa República, o proibiria. Muito menos os irmãos Frederico e João Pinho de Almeida poderiam viver a política com a paixão que se lhes conhece.
Para Rangel, os irmãos Moreira da Silva, um ex-ministro e outro ex-vereador, do PSD e do CDS, respetivamente, não poderiam nunca estar na vida política porque um deles deveria perecer antecipadamente. E também Raquel estaria impedida de ser uma influente dirigente do CDS só porque tem como apelido Abecassis.
E no seu partido esquece as legislaturas em que Amândio Anes de Azevedo era tão deputado quanto sua esposa Amélia de Azevedo, ou quando Luís Filipe Menezes era pai de Luís Menezes, ambos na atividade intensa da política portuense. Também esquece que, pelos seus critérios, Emídio Guerreiro, o homónimo, estaria impedido de se sentar nas filas da frente do hemiciclo nacional e que Cristóvão Norte nunca poderia ser parlamentar hoje só porque o seu pai o foi ontem.
E que Lima Costa, eleito democraticamente presidente da Câmara de S. João da Pesqueira e hoje deputado, deveria ser um homiziado só porque seu pai o antecedeu. E também Pedro Roseta nunca poderia ser ministro da Cultura só porque tem o mesmo apelido, e fez com ela vida, de uma constituinte que todos prezamos e que ainda hoje nos acompanha.
E olhando para o poder de hoje no PSD, nunca Paulo Mota Pinto poderia ter existência legal só porque seu pai foi ministro, primeiro-ministro e líder do partido em que milita. E o líder parlamentar do PSD-Madeira não poderia ser Ramos porque o seu pai o anteverteu no mesmo cargo. Talvez o PPD Madeira não conte…
Rangel poderia continuar a confirmar a nossa vida partidária e política. Impediria que os irmãos Lopes fossem algum dia distintos quadros do PCP, que os irmãos Judas tivessem ocupado cargos relevantes no sindicalismo e no municipalismo, que Ana Vicente tivesse sido companheira de Luis Sá, personalidade que deve ser recordada com saudade.
Rangel poderia continuar a olhar mais para o outro lado, onde esteve o saudoso Miguel Portas, e verificar que o parlamento só ganha com Joana e Mariana, que os irmãos Daniel Oliveira e José Gusmão são mais do que sangue e são autonomia de pensamento e de ação. E poderia ainda reparar no facto de Noémia Anacleto não precisar de ser mãe de Louçã para ter sido uma das personalidades nomeadas para a Comissão de Acompanhamento dos Julgados de Paz em representação do partido liderado pelo seu filho.
Rangel vive um país que estranha. Não pode dizer que os embaixadores Mathias, por serem irmãos, filhos e pais, todos no universo da diplomacia, foram menores nessa arte. Também não poderá dizer que os todos os Barbosa foram o que são porque o pedigree lhes veio do berço. Que Machete juiz do Constitucional deve o seu percurso a seu pai. Que os Menezes Cordeiro nunca poderiam ser nomes de referência porque só um estaria destinado a altos cargos. Que os Gentil Martins nunca poderiam ter contribuído para a nossa medicina porque só um deles deveria ter nascido com mais do que um neurónio.
Que os irmãos Cabral Couto estariam limitados e só um poderia ter sido general, que os Irmãos Espírito Santo, ambos generais, nunca teriam permitido a Gabriel ser Chefe, que os generais Reis ou os generais Fonseca, todos no ativo e irmãos, deveriam ter sido separados no berço.
Mas Rangel também deveria afirmar que na Comunicação Social, esse poder que é mais poder que outros de que falamos, Sebastião Bugalho não poderia fazer jornalismo de direita com a imaginação que se lhe conhece por ser filho de Patrícia Reis e que Cabrita Saraiva não poderia existir nas redações porque José António Saraiva o deveria ter impedido.
Rangel é o grande defensor dos morgadios – todas terras para o irmão mais velho e novo Senhor, seminário e exército para os seguintes, convento ou professorado para as irmãs que deveriam ser ótimas e sossegadas esposas.
Adivinhando que Rangel não é desatento, que muitas destas circunstâncias que aqui referimos são do seu conhecimento e vivência, que motivação encoberta estará no centro das suas diatribes?
Encontramos razões explicitas e outras não reveláveis. A mais relevante é aquela que fez dele um deputado europeu miniatural e um advogado de interesses excelsos. Segundo a Transparência Internacional, Rangel foi o 12.º deputado (em 761) que mais rendimentos teve decorrentes da advocacia de interesses. Esta circunstância é a que mais dano causa à democracia e mais faz desconfiar os cidadãos.
Pai e filha, marido e mulher, a cada hora do dia e a cada tempo de ação política, garantem portas abertas e janelas escancaradas para que os portugueses tudo saibam. Mas ter sido deputado europeu e advogado de negócios é mesmo a agra onde muito precisa de ser sabido.
Falta aqui um desafio – se Rangel quer ser um político sem mácula, que seja claro quanto à sua realidade pessoal, à atividade liberal do passado. Que se transforme num monge sofredor e proclamador de virtudes. Sabemos que nada fará, que este desafio nunca terá resposta, porque julgamos que o que interessa é mesmo a conversa fiada que sustenta o estilo político de um populista português.
Talvez Almada Negreiros tenha aqui um papel e permita que Rangel seja Dantas.
Morra Dantas, morra! Pim!
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Deputado do PS