Luís Goes Pinheiro, presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Justiça, foi convidado para o lugar quando a linha SNS 24 parecia muito próxima de colapsar. Em pouco tempo conseguiu resolver o problema tornando assim possível um outro tipo de gestão da pandemia. Nesta conversa fala sobre os dias mais difíceis, sobre a governabilidade do SNS, sobre o fim da pandemia, sobre a vacinação e os certificados digitais, sobre o populismo e até sobre o fadista Luís Goes que, afinal, não tinha qualquer parentesco consigo.
Luís Osório – Começo com a pergunta menos original que seria possível imaginar: existe algum parentesco entre si e Luís Goes, o extraordinário músico de Coimbra?
Luís Goes Pinheiro – O meu apelido é Goes Pinheiro, vem do meu avô, mas é frequente tratarem-me por Luís Goes esquecendo o Pinheiro. Tive oportunidade de contar ao Luís Goes que me fizeram esta pergunta durante toda a vida. Efetivamente não tínhamos nenhuma ligação conhecida a não ser a afetiva pois foi um cantor extraordinário.
LO – Já passou um ano desde que assumiu o lugar de presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Justiça (SPMJ)…
LGP – Um ano e três meses.
LO – E o que lhe passou pela cabeça?
LGP – Senti uma grande honra por poder servir o meu país, essencialmente isso. Sou estruturalmente otimista, tenho tendência para acreditar que a solução para os problemas depende quase sempre da nossa criatividade. Acabo por ter essa perspetiva otimista.
LO – No momento em que foi convidado para assumir estas funções o tema da rutura do SNS24 estava na ordem do dia, a linha colapsava quando se aproximava das dez mil chamadas por dia. Qual foi o segredo para as coisas terem começado a funcionar?
LGP – A estrutura do SNS 24 não estava dimensionada para a procura de todas as pessoas que procuraram perceber o que fazer. É um facto que ninguém tinha noção de como a Covid-19 iria tomar conta de Portugal e do mundo. Nos picos da gripe o SNS 24 recebia cerca de 5 mil chamadas por dia e se os números fossem um bocadinho superiores o serviço já tinha dificuldades. Com o Covid-19 a procura disparou para níveis nunca vistos e a partir das 10 mil chamadas tornou-se impossível. Essa era a situação quando aceitei o convite para este lugar.
LO – Qual foi o segredo?
LGP – Resolveu-se o problema quando o enfrentámos. Foi necessário um trabalho próximo entre as equipas dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e do operador responsável pela prestação do serviço da linha no sentido de alargar o número de profissionais. Não chegavam a mil e, para ter uma ideia, em janeiro deste ano, no pico da pandemia em Portugal, cerca de seis mil profissionais atenderam todos os que procuraram saber informações pela linha de apoio. Houve também uma reformulação tecnológica com soluções que permitiram lidar com este fluxo, nomeadamente soluções ao nível da separação dos casos, de uma pré-triagem.
LO – Quantas chamadas é que o SNS24 tem recebido?
LGP – Hoje estamos a atender cerca de 20 a 25 mil chamadas por dia. Em janeiro atendemos num dia quase 55 mil chamadas. O SNS 24 passou a conseguir responder sem estar dependente do fluxo de chamadas recebidas. O segredo tem sido a capacidade de sermos flexíveis, as flutuações de tráfego já não são sentidas.
LO – A sua passagem pela Modernização Administrativa foi-lhe certamente útil neste último ano.
LGP – Somos fruto das nossas experiências, do que vamos aprendendo do que fazemos. A saúde com as suas especificidades é uma forma de entrega de serviço público e quando baixamos à essência há muitas semelhanças entre o que se passa na saúde e no resto da administração pública, de bom e de menos bom.
LO – Nesta crise pandémica tanto o SNS como a Segurança Social, que muitos consideravam estruturas obsoletas, responderam muito bem à chamada. Surpreendeu-o a resposta dada?
LGP – De maneira nenhuma. Há uma tendência de olhar para o Estado com intolerância, tendência para generalizar defeitos e opiniões negativas. Nem todos os serviços públicos funcionam completamente bem, todos concordaremos. Mas o SNS é, muito provavelmente, um dos melhores do mundo. Depois do que nos aconteceu, depois desta pandemia, muito poucas pessoas conseguirão dizer que o SNS não esteve à altura.
LO – E em condições muito difíceis.
LGP – O SNS não nasceu hoje, mas foi ao ser sujeito a este embate violentíssimo, com um escrutínio diário que vai ao pormenor, que soube responder e provar que estava à altura.
LO – Talvez tenha sido uma das poucas coisas boas desta tragédia.
LGP – As tragédias nunca são boas, mas podem trazer lições que nos permitem ficar mais sólidos. Ninguém nos perdoará se não aprendermos com o que se passou neste ano e meio.
LO – Quando é que estaremos livres desta pandemia?
LGP – O conceito de estar livre da pandemia é difícil de responder. Uma das maiores dificuldades é que a ciência vai agindo à medida que responde aos problemas e novos desafios que vão surgindo. Desse ponto de vista a tomada de decisões torna-se muito difícil. Não sei se chegará o dia em que poderemos dizer “acabou”. Haverá seguramente um dia em que voltaremos a ter uma vida normal num contexto que poderá ter a presença e ameaça deste vírus ou de outros com características semelhantes.
LO – E atrás de uma estirpe tem vindo outra.
LGP – Sim, tudo isso. A vacinação tem sido a solução mais eficaz, essa foi uma boa notícia para a humanidade. Dentro de seis meses estaremos a lidar com uma realidade pandémica diferente da que tivemos até aqui, mas num mundo que será novo. Teremos todos que lidar com essa novidade.
LO – Lembra-se das frases publicitárias e otimistas no início do processo, o “vamos todos ficar bem” e outras, só que a vida é tudo menos linear.
LGP – Foi muito importante esse otimismo nos momentos mais difíceis. Na verdade, não sabíamos o que iria acontecer. Lidámos com a possibilidade dos serviços colapsarem e foi por tal não ter acontecido que quase parece que não tivemos de enfrentar essa possibilidade. Mas tivemos e foi duro. Nesses momentos a serenidade foi fundamental.
LO – Enfrentou sempre com serenidade os piores momentos?
LGP – Não é de quem exerce as funções que se espera tranquilidade, espera-se que haja entrega e ação. Espera-se serenidade dos portugueses. Portugal e os portugueses deram uma prova de serenidade e resiliência ao longo desta pandemia. Os portugueses são assim; quando os desafios são grandes respondemos à chamada.
LO – O vice-almirante Gouveia e Melo avançou com meados de setembro como data em que, muito possivelmente, poderemos estar mais descansados.
LGP – Acima de tudo o que o senhor vice-almirante pretende é que o plano de vacinação corra da melhor maneira possível, que as vacinas cheguem a Portugal e às pessoas.
LO – Não é uma injustiça o senhor não ser reconhecido como é o vice-almirante Gouveia e Melo? Porque o seu papel foi também importante e há até parecenças na entrada em funções de um e do outro.
LGP – Todos neste processo têm o seu papel, sei qual é o meu. Não é uma excessiva modéstia, mas é sempre importante sabermos qual o nosso papel. O papel do vice-almirante Gouveia e Melo é diferente do meu e está a fazê-lo muito bem. Fico muito feliz quando atribuem créditos ao senhor vice-almirante porque também me sinto valorizado, eu e a minha equipa. E também é uma forma de homenagear todas as pessoas neste processo, são dezenas de milhares de pessoas a ajudar no processo de vacinação. É um crédito justo que se associa ao crédito de muita gente, a começar pela ministra da Saúde que tem feito u trabalho extraordinário nesta pandemia.
LO – Muitos portugueses não têm respondido à chamada para serem vacinados. Coloca-se aqui um problema que pode ser grave.
LGP – A taxa de respostas negativas ao SMS de convocação para a vacina anda nos 2,5 por cento, é um número baixo. Depois há um número que não responde ao SMS, mas que é limitado. Repare, já foram enviados mais de 4 milhões e 500 mil SMS, um número muito significativo e a taxa global de resposta positiva vai nos 77 por cento, um número expressivo. Admito que o tema possa ser relevante noutros países, mas em Portugal não me parece. Vejo aliás ao contrário, a vontade de serem vacinados o mais depressa possível.
LO – É a primeira vez que oiço uma resposta tão clara.
LGP – Mas é uma resposta absolutamente sincera. Não há qualquer motivo para alarme.
LO – Começa a pensar na hipótese de fazer outras coisas?
LGP – Fazer outras coisas? Sinto-me mesmo honrado por estar nestas funções. Repare, o meu tempo no dia é limitado para o que desejava fazer. Há muitas coisas que poderia e quero fazer neste lugar. O meu mandato vai a meio e é nisso que estou concentrado e em exclusivo, nem me passa pela cabeça outro desafio que não seja este.
LO – O certificado digital começou a ser emitido há uns dias. Como está a correr?
LGP – É um sistema novo que permite a emissão do certificado digital. Já foram emitidos quase um milhão e meio de certificados em muito poucos dias, um número assinalável. Portugal tem virtudes muito interessantes, os portugueses são resistentes à mudança, mas adaptam-se muito rapidamente à novidade.
LO – Surpreende-o esta procura?
LGP – No caso do certificado também me surpreendeu muito a procura. Uma procura recompensadora por sentirmos que é útil para as pessoas, que as pessoas o procuram. Revela também que a literacia digital vai-se espalhando. E temos outros instrumentos que permitem às pessoas menos letradas digitalmente acederem como todos os outros. Aí tem sido determinante o trabalho das juntas de freguesia que têm disponibilizado os seus serviços de proximidade para que o contacto com o SNS seja eficaz.
LO – Aquilo que vai acontecer nos próximos anos irá determinar certamente o nosso futuro coletivo. Gostaria de o ouvir especificamente sobre a transição tecnológica e as mudanças que se preveem no SNS. O emprego de muitos profissionais estará em perigo?
LGP – A tecnologia é um promotor de qualidade de vida e não um instrumento para tornar as desigualdades mais profundas. Agora, todas as mudanças exigem adaptação e é fundamental não deixar ninguém para trás. Um governo socialista tem como matriz procurar garantir a igualdade e a igualdade de oportunidades. Todas as mudanças criam sempre as suas exclusões e é importante garantir que não acontecem ou são minimizadas. Temos de ajudar os que se tornariam esquecidos do sistema se não tivéssemos essa preocupação. No futuro próximo acredito que a transição ajudará os profissionais a concentrarem-se em tarefas essenciais e a não gastarem tanto tempo em tarefas repetitivas. Evidentemente que será necessário ter o cuidado que as pessoas são diferentes e que enfrentam a mudança de forma diferente e é obrigação do Estado proteger os mais vulneráveis.
LO – De todas as mudanças, de todas as adaptações que serão necessárias no futuro, quer destacar alguma?
LGP – No caso dos profissionais de saúde será necessária uma maior mobilidade. Já não há ninguém a pensar que o nosso posto de trabalho é algo fixo. Teremos que prestar o melhor serviço estejamos onde estivermos. Isso trará grandes benefícios à vida das pessoas, aos trabalhadores do SNS e aos utentes.
LO – A tecnologia veio para ficar.
LGP – A tecnologia veio para ficar, a familiaridade com que se lida com certas ferramentas é hoje diferente, ter uma teleconsulta passou a ser normal. Há vários anos que tínhamos a possibilidade de fazer conferências pelo telemóvel, mas não a usávamos, a necessidade acelerou a mudança.
LO – Preocupa-o o risco da desumanização?
LGP – O risco da desumanização exige que se encontre o melhor equilíbrio possível. Por um lado, a necessidade de contacto humano, por outro a eficiência e o servir melhor as pessoas. Estaremos certamente disponíveis para substituir muitas horas de espera por teleconsultas desde que estas sejam eficazes.
LO – Tendo em conta o que aprendeu sobre o SNS acredita que a Saúde em Portugal é governável?
LGP – Acredito que a Saúde é governada. O SNS deu uma prova extraordinária e continuará a dar. Os profissionais são de altíssima qualidade, as infraestruturas melhores do que se diz e a capacidade de organização e entrega têm superado todas as expetativas. Dito isto, claro que o SNS pode melhorar. Pode e deve melhorar. E a pandemia veio dar-nos uma série de lições que temos a obrigação de compreender. Se calhar é possível com os recursos que temos organizarmos as coisas de maneira diferente. É preciso tirar partido deste momento, desta sensibilidade para a utilização de recursos tecnológicos em benefício da eficiência do SNS.
LO – Desta vez não poupou nas palavras.
LGP – É importante não ter medo de dizer isto, de não ter medo das palavras: o SNS português é extraordinário.
LO – Os países governados por poderes populistas ou neoliberais tiveram dificuldades em lidar com a pandemia. Tem uma leitura para esse facto?
LGP – É uma evidência que o populismo não foi uma solução para a pandemia. Passou pela cabeça de muitos que em contexto de crise o populismo pudesse florescer, mas nos países em que foi testado falhou. O populismo vive apenas de dizer às pessoas o que elas querem ouvir.
LO – Para acabar, há algum dia que tenha sido pior do que os outros durante este último ano e três meses?
LGP – Houve um dia no mês de janeiro em que me senti muito apreensivo. Pelo número de casos, pelas chamadas para o SNS 24, pela pressão altíssima. Foi um mês muito difícil.