Lídia Jorge, Graça Morais, Pilar del Río
“Mário Soares, o nome do futuro”
Dentro de pouco tempo, se a justiça da memória for feita, alinhar-se-ão quatro nomes lado a lado, para se compreender a História da segunda metade do século XX na Europa – Willy Brandt, Olof Palm, Václav Havel e Mário Soares. Os seus nomes representam o melhor do sonho europeu passado ao terreno concreto, nos tempos da Guerra Fria e nos que se lhe seguiram. As melhores conquistas, em termos de liberdade e desenvolvimento que conhecemos, deve-se em grande parte à utopia que firmemente perseguiram. Num tempo em que tudo se denigre e os justos são confundidos com os injustos, é bom, para nos salvarmos, sabermos reconhecer aqueles que usaram as suas vidas para alterar as sociedades a que pertenceram, tornando-as mais justas e mais pacíficas.
Como o tempo sempre passa, é costume dizer-se que todos somos substituíveis. Mas não somos, e está à vista. Entre nós, a dívida de gratidão para com Mário Soares deve fazer-nos reconhecer, nos dias de hoje, que o nosso país seria mais rico se o antigo Presidente da República tivesse podido continuar a falar em voz alta, a afrontar, a resistir, a recusar-se à submissão passiva, como o fez até as forças lhe faltarem. O seu peito aberto e voz límpida para o contraditório têm-nos feito uma tremenda falta. Como falar dessa falta àqueles que não o conheceram, em contemporaneidade?
No futuro, quando se sintetizar o século XX português, por certo que duas figuras preencherão o imaginário dos vindouros. Na primeira metade, invocar-se-á Oliveira Salazar, na segunda, Mário Soares. Infelizmente, porém, custa escrever os dois nomes sobre a mesma folha, de tal modo o segundo é o oposto do primeiro, de tal modo Mário Soares representa a inscrição na página da liberdade, e o outro na página da tristeza e da opressão. Isto é, quando um dia escreverem esses dois nomes sobre a mesma página, que os separem por uma linha irreconciliável, e que o lado onde se inscreve o tempo de Mário Soares, o tempo da democracia, seja a parte luminosa, a folha cívica que nos salva. Espero que as crianças das escolas, no futuro, quando aprenderem a escrever sobre um papel as palavras liberdade e temperança, aprendam ao mesmo tempo a desenhar por baixo, o nome de Mário Soares.
Pessoalmente, não posso abrir o meu livro de relação com a sua pessoa. Ele é feito de admiração profunda, recordações infindáveis, momentos de alegria inesquecíveis, discussões acesas, publicação de livros partilhada, ideias, relatos, horas decisivas vividas em proximidade, por vezes em conjunto. Se não falar desse tempo longo e saudoso, ele ficará mais perfeito, porque guardado no local do afeto sobre o qual não há pública partilha possível. Prefiro invocar o seu carácter. Pensar que Mário Soares emprestou jovialidade, e uma esperança juvenil de combate, a um país inteiro, e foi com essa jovialidade tão pouco portuguesa que ele cativou os europeus, conseguiu sustentar o difícil desmembramento de um império, e deu a conhecer ao mundo o novo país que somos. Neste momento, em que se preparam pequenas lendas más ao lado das grandes lendas boas, oxalá que a verdade seja mais forte. Que todos aqueles que o conheceram sejam justos, e o contem em nome do futuro, juntando à lenda, os factos e os números.
Lídia Jorge
Mário Soares é para mim a grande referência política do século XX na Europa. Tive o grande privilégio de ser convidada por ele a integrar a sua Fundação, como membro vitalício e, ao longo das últimas décadas foram muitas as vezes em que o apoiei publicamente nos vários atos eleitorais. Por exemplo, fui, a seu pedido, a mandatária para o Distrito de Bragança na sua última candidatura à Presidência da República. O que sempre admirei em Mário Soares foi a sua enorme coragem física e política, a sua tenacidade, a grande intuição e atitude visionária, antecipando muitas vezes as soluções dos problemas que nos afligiram, numa expressão de otimismo que criava à sua volta uma força que nos contagiava a todos.
Com Mário Soares assisti pela primeira vez a uma verdadeira valorização social da Cultura que se expressava na forma como recebia, ao lado de sua mulher Maria Barroso, nas cerimónias públicas os artistas, os escritores, os cineastas, os músicos, fazendo-nos a todos sentir a nossa relevância no País, com a sua admiração e afeto.
Lembro as inaugurações das minhas exposições na Galeria 111 (ao lado da sua residência, no Campo Grande, em Lisboa) às quais nunca faltava, chegando mesmo a visitar a exposição no final da noite, depois de um dia cansativo de obrigações oficiais.
Fui convidada a integrar algumas comitivas presidenciais em visitas de Estado ao estrangeiro e ficou na minha memória o privilégio de, na visita oficial à Grécia eu partilhar o mesmo automóvel com Sophia de Mello Breyner Andersen, sua grande amiga de sempre, nascendo a partir daí a minha grande amizade com esta grande Poeta.
Maria de Jesus escolheu-me para ser a pintora do seu retrato oficial na Galeria dos Presidentes da Cruz Vermelha e nas sessões de pose, realizadas no meu atelier, confirmei mais uma vez que tinha à minha frente uma Grande Mulher que foi o grande suporte afetivo, político, cultural e familiar de Mário Soares.
Tenho um profundo sentimento de gratidão para com Mário Soares, pela possibilidade de poder criar em Liberdade e pela consciência da importância cultural do seu legado, numa época de superficialidade e de banalização na qual a Arte está quase sempre ausente dos discursos e dos atos da maior parte dos dirigentes políticos.
Curvo-me perante a sua memória e com muita tristeza vejo partir uma figura tão superior e tão perto de nós.
Graça Morais
“Um homem inteiro”
Há uns anos tive que escrever sobre Mário Soares e a ideia que se me afirmou foi esta: nada o impedia de ser todo naquilo que era e fazia, como escreveu o poeta, nem deixar de usar a razão e o instinto para viver de maneira plena e total, modo de estar no mundo que se lhe reconhece e inveja. Outros falarão do seu papel na história e do trabalho politico e institucional que realizou, mas o que a mim me interessa é destacar a aventura emocional que lhe fez viver cada dia com a consciência de que era único e devia de preenchê-lo de sentido. Mário Soares nunca confundia datas e nomes porque era capaz de narrar no tempo presente as aventuras do pai, a fundação de Portugal, a assinatura de um tratado histórico ou o jantar mais harmonioso e íntimo. Sua insólita capacidade para criar empatia em qualquer circunstância e país é um valor mais que suficiente para construir uma lenda, ainda que é a sua liberdade para expressar dissidências políticas e sociais o que se destacará quando se contemple a sua figura. Mário Soares é, e digo é, não era, um ser insólito que cruzou o século XX demonstrando que se pode forçar o destino se o empenho se une à inteligência e esta, à naturalidade. Era um homem inteiro em suas relações e manifestações: assim o conheci, disposto, animado, mordaz e corajoso. Um luxo para os amigos e adversários, uma pessoa irrepetível que se confunde com Portugal.
Pilar del Río