Sistema prisional e segredo de justiça exigem acordo de regime
O sector da Justiça vive um ambiente “efervescente”. As palavras são da própria ministra. Juízes, procuradores e guardas prisionais multiplicam greves e protestos. Uma agitação social que para Francisca Van Dunem se deve a expectativas falhadas. Na semana da abertura do ano judicial, o último desta legislatura, a ministra critica, em entrevista ao Expresso, muitas das propostas do PSD para o sector, mas acredita que para haver reformas profundas é necessário um pacto de regime.
Nos últimos meses tem havido um aumento de greves em vários sectores da Justiça: juízes, procuradores, inspetores, guardas prisionais. Como explica esta contestação?
A alteração do ambiente económico gerou nas pessoas a expectativa de que os constrangimentos dos últimos anos seriam todos ultrapassados, e já. Essa expectativa não foi concretizada.
Sente-se acossada?
Não. Isto nunca foi tranquilo. Logo que iniciei funções deu-se uma greve dos guardas prisionais. Na Justiça deveria reinar a tranquilidade, a serenidade, o equilíbrio. Mas é um ambiente muito efervescente. São classes com uma capacidade muito reivindicativa.
A proximidade das eleições não lhe coloca uma pressão adicional para tentar agradar a todos?
Não. Há algumas reivindicações que não fazem sentido, não são aceitáveis ou razoáveis. No período da crise dizia-se que o Estado tinha sido gastador e que tinha satisfeito todas as classes profissionais, sobretudo as que tinham mais capacidade reivindicativa. Provavelmente, as pessoas que disseram isso nessa altura pedem hoje que se satisfaça as necessidades dessas classes.
Quais as reivindicações que não são justas?
Por exemplo, quando se pretendem fazer alterações do estatuto remuneratório, elevando acentuadamente as remunerações de hoje para amanhã. Isso não é exequível.
Está a falar dos guardas prisionais?
O que os guardas prisionais pretendem essencialmente é a equiparação à PSP. Isso é justo. A questão que se coloca depois é em que termos é que se equipara. Aí pode haver pretensões que não são justas.
Acha que os juízes ganham mal?
Depende do que estamos a falar. As comparações internacionais apontam que nos nossos tribunais superiores se ganha a média dos tribunais superiores de outros países. Já nos de primeira instância ganharão menos.
Leu o Compromisso para a Justiça de Rui Rio?
Li. Achei que há um conjunto de propostas que não são realizáveis. Como as da alteração da composição dos Conselhos Superiores, na lógica de aumentar o pluralismo, a representação externa e a legitimidade. Outras, como na área administrativa e tributária, estão em linha com as que o Governo tinha apresentado e submetido a debate público.
O PSD propõe a recomposição do Conselho Superior do MP, e quer que os magistrados percam a maioria dos lugares atuais. No MP fala-se em pressão do poder político. O que defende?
Não defendo nenhuma alteração à composição do Conselho Superior do MP. Mas não podemos excluir o debate sobre o assunto.
E ter juízes a ganhar em função da produtividade, como pede o PSD?
Não é uma boa medida. A qualidade da Justiça não se mede em função de resultados quantitativos apenas. Uma medida dessa natureza pode ter o efeito contrário: o de condicionar os magistrados e fazer com que procurem obter resultados independentemente de uma maior ou menor maturação das decisões que tenham que tomar. É um risco que é preciso evitar.
Considera que são necessárias reformas que exijam um acordo de regime na área da Justiça, com o apoio do PSD?
Admito que haja reformas que exijam isso. Estou convencida de que o sistema prisional implicaria um debate e um trabalho amplo e conjunto. Para percebermos o que pretendemos do universo prisional. Também o segredo de justiça precisa de um entendimento sério e transversal.
O que sente quando vê na televisão um depoimento vídeo ou áudio de uma inquirição judicial em segredo de justiça?
Sinto-me mal. Não vejo com bons olhos a exposição de peças processuais que não estavam destinadas a ser públicas.
O que falta fazer para acabar com as violações do segredo de justiça?
Falta decidir. Não temos modelo de rastrear como a informação circula para o exterior.
Quem são os principais violadores do segredo de justiça?
Terei alguma dificuldade em saber quem são. É difícil perceber onde deixou de haver o dique de contenção que deveria rodear a investigação.
O sindicato dos magistrados diz que os procuradores-gerais da República são escolhidos de “forma opaca”. Concorda com uma mudança no modelo de nomeação, que passe, por exemplo, por um maior papel do Parlamento?
Esse não é o modelo português e nem seria adequado caminhar para aí.
Lucília Gago é a sua PGR?
É a PGR de Portugal.
O processo de escolha da nova PGR foi a certa altura turbulento. Considera que acabou por ser bem resolvido?
Está à vista de todos. A sucessão fez-se com inteira naturalidade.
Se o PS ganhar as eleições e a convidarem novamente, aceitará?
Não se coloca. Neste momento a minha grande preocupação é cumprir adequadamente este mandato.
Reconheceu que é um sector muito efervescente. Sai cansada?Toda esta intervenção no ambiente político é novidade para mim. Lido com classes profissionais que têm uma visão quase de antagonismo relativamente à classe política e isso torna as coisas menos fáceis. Mas não estamos cá para coisas fáceis. Quando se aceita um cargo destes tem-se a perceção de que vai ser difícil, que entre o que queremos fazer e o que deixamos feito há um espaço muito grande.
Está arrependida de ter ido para o Governo?
Não.
“Corrupção e crimes de ódio são os que mais me preocupam”
Este é o ano em que se vai provar se o Ministério Público fez ou não um bom trabalho nos megaprocessos de corrupção?
Recuso-me a associar o bom ou mau funcionamento da Justiça a um núcleo reduzido de processos, que são diferentes pela sua natureza, complexidade e pessoas envolvidas. Sabem quantos processos entram anualmente no Ministério Público? Cerca de 500 mil.
Também segue esses processos com mais atenção?
Não. A única coisa que faço como ministra é garantir que o MP e a PJ tenham meios. Entre 1982 e 1985 trabalhei na Autoridade Contra a Corrupção, uma entidade não-judiciária para a prevenção da corrupção. Nesse tempo, o crime económico-financeiro praticamente não era investigado. Houve uma evolução muito grande.
Para a opinião pública essa evolução deveu-se essencialmente a Joana Marques Vidal.
Pois, admito que sim. A PGR precedente fez uma intervenção muito importante, mas as coisas não aconteceram todas nesse mandato. Há um histórico que não se faz apenas em seis anos. Chamaria a atenção para reformas anteriores: por exemplo, o facto de os procuradores do DCIAP terem saído dos DIAP distritais, onde desde 1996 lidam com o crime económico-financeiro.
Quais são os crimes que mais a preocupam?
A corrupção e os crimes de ódio. Vivemos numa sociedade cada vez mais violenta. A argumentação foi substituída pela violência física e verbal, deixou de haver freios. O antagonismo é hoje muito expresso em mensagens de ódio.
As redes sociais proporcionaram essa violência?
É óbvio. Facilita a divulgação deste tipo de discurso. Isso é muito perigoso.
Teme que o ódio se generalize como noutros países?
Não acho que em Portugal as coisas sejam diferentes e que tudo vá correr bem. Há coisas que podem não correr bem. É necessária atenção para o controlo dos discursos de ódio que levam a ações criminosas.
E a corrupção preocupa-a porquê? Por estar a alastrar?
Nem por isso. Preocupa-me pelo que representa do ponto de vista financeiro e da reputação. Há que fazer um trabalho de prevenção, mais até de que de repressão.
Análises como as que estão a ser preparadas pela OCDE prejudicam ou são um incentivo?
Depende de como são feitas. Não sei se uma abordagem dessa natureza pode ser feita apenas através das perceções.
Mas não há indicadores puramente científicos à escala internacional sobre corrupção…
À escala nacional temo-los.
A OCDE foi preguiçosa?
Não diria isso. Digo que se faça o trabalho, mas com base em dados.
“A Justiça é efetivamente cara”
As custas judiciais vão ser graduadas em função do rendimento, aliviando alguns orçamentos, mas é preciso que as pessoas se consciencializem de que a Justiça é cara. Crítica do hábito português de falar com base em perceções em vez de factos, garante que a Justiça não é tão lenta quanto se lhe aponta.
Está a entrar no último ano do seu mandato e a perceção da Justiça não se alterou significativamente. Ainda na abertura do ano judicial ouvimos o bastonário da Ordem dos Advogados dizer que esta está “doente”. O que fez de estrutural para alterar esta perceção?
O bastonário disse que a Justiça está doente num contexto: “Está doente se…” Em qualquer caso, gostava de sinalizar que todas as outras intervenções — a da procuradora-geral da República e a do presidente do Supremo — foram no sentido de que a Justiça está melhor. E também devo dizer que a qualidade da Justiça não pode ser medida com base em perceções. Temos a prática reiterada de fazer afirmações com base em perceções que nem sempre são confirmadas pelos factos.
Lentidão, dificuldade de acesso e qualidade de algumas sentenças são alguns dos problemas apontados.
Temos hoje estatísticas fiáveis que apontam para uma redução muito significativa do volume de pendências processuais e um aumento das taxas de resolução: estão sempre acima dos 120% e em alguns casos atingem os 160%. Onde a situação é crítica é nos Tribunais Administrativos e Fiscais (TAF).
Isso deve-se ao atual Governo ou essencialmente ao anterior Governo?
Esses resultados são sempre a soma de um conjunto de intervenções — haverá uma parte de contributo do Governo anterior e de outros Executivos. Recordo que um dos problemas reiteradamente apontados à Justiça era o seu défice de gestão, a ausência de mecanismos que permitissem ir gerindo os efetivos e os meios de acordo com as necessidades. Na sequência do 2º Pacto para a Justiça — este repto não é o primeiro — acordou-se numa reforma do território judiciário. Ora bem, esse trabalho começou a ser feito em 2007…
A ideia da morosidade é errada?
É. É errada. Na justiça cível temos níveis de pendência muito baixos, ao nível de 1996. Temos um número maior de efetivos e pendências na ordem das 900 mil, quando nos anos de 2012/2013 eram 1,6 milhões.
Praticamente não há inquérito a empresários que não aponte a Justiça como um entrave ao investimento ou, pelo menos, como elemento de incerteza. Na área da justiça económica ainda há muito a fazer.
Há, mas já foi feito muito caminho. Tivemos o programa Capitalizar, onde se procurou por um lado melhorar as condições da atividade empresarial, via reforço de capital; e, por outro, intervir nas questões processuais associadas à reestruturação e dissolução das empresas, numa lógica de simplificar e agilizar os mecanismos.
Então o único problema é dos TAF?
Na minha avaliação é o maior constrangimento, e apresentámos recentemente propostas para lhe fazer face.
Os operadores judiciários continuam a dizer que faltam meios. Está muito dependente de Mário Centeno?
No atual contexto, é natural que o Governo procure ter o maior controlo possível da qualidade e quantidade da despesa pública. Obviamente que todos os ministérios são solidários.
São todos Centeno?
A expressão não é minha, mas compreendo o controlo das Finanças.
Deixou de fazer alguma coisa fundamental por falta de meios?
Não. 56% das receitas do Ministério da Justiça são próprias e só o resto vem do Orçamento do Estado. E temos o Fundo para a Modernização da Justiça que já existia, mas não era mobilizado e que nos dá um apoio importante na área da modernização, onde registámos avanços assinaláveis. Modificámos as rotinas das secretarias judiciais, substituímos os fluxos dos papéis pela digitalização, reduzimos a complexidade de algumas tarefas, automatizámos outras, permitimos o acesso online a um conjunto de serviços e ampliámos o acesso dos agentes ao Citius [sistema informático]. No passado, a resposta clássica aos problemas da justiça era aumento de efetivos, meios e criação de equipas de recuperação, mas os problemas voltavam. É óbvio que são precisas respostas novas: reorganização, gestão e modernização.
Anunciou para breve alterações nas custas judiciais. Vão baixar?
As custas são o preço da Justiça, e a Justiça é efetivamente cara. O importante não é tanto o preço das custas — porque é preciso que as pessoas tenham ideia de quanto custa um processo — mas garantir o acesso ao Direito. A Constituição não diz que não há custas, diz que o Estado tem a obrigação de garantir o acesso efetivo.
O preço interfere no acesso.
Não, porque o acesso pode ser garantido de outra forma. Até agora as regras do apoio judiciário só abrangiam pessoas com rendimentos próximos do salário mínimo e não havia uma relação entre o valor da causa, a custa e o seu rendimento. Criámos escalões que associam o rendimento das pessoas ao valor das causas, e isso já facilita. A pessoa pode não ter isenção completa, mas pode ter uma percentagem de isenção que torne compatível a necessidade de interpor a ação com o seu rendimento.
Então um conflito laboral para uma família com um salário médio pode ficar mais barato?
Pode. E fez-se uma outra coisa igualmente importante. Atualmente, um advogado que faça consulta a um cliente que depois resolva a situação por acordo não é remunerado e passará a sê-lo. É um desincentivo à litigância.
Concorda que há uma Justiça para ricos e outra para pobres?
Acho que há um conjunto de frases feitas que vão pululando pela sociedade portuguesa. Há uma saúde para ricos e outra para pobres. Um ensino para ricos e outro para pobres. Uma vida para ricos e outra para pobres. O problema coloca-se ao nível das desigualdades que, quando são grandes, desequilibram muito os pratos da balança. É sobre as desigualdades na distribuição de rendimentos que é preciso agir, e temos estado a trabalhar nisso.