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Eusébio Macário, espécie extinta?

Eusébio Macário, espécie extinta?

Dei por mim a interrogar-me sobre se haveria ainda Eusébios Macário em Portugal. Uma distribuição em massa da famosa novela de Camilo por um semanário de referência deu-nos o prazer da leitura de um sorvo e de nos regalarmos em dia estival com a prosa riquíssima do nosso grande novelista do romântico.

Opinião de:

Eusébio Macário, espécie extinta?

Desafiaram Camilo a escrever uma novela realista, como as que os Srs. Teixeira de Queiroz e Eça de Queiroz andavam a escrever. Ele que desdenhava de Zola, de que só havia lido um livro, resolveu mostrar ser capaz de baixar às profundezas da alma lusitana com lanceta de anatomista. E então surge Eusébio Macário, uma figura secundária que dá o nome ao livro, um boticário de aldeia que inventa ervas, xaropes, tisanas e unguentos, com dois filhos com aduelas a menos, uma estouvada guardada para brasileiro e o outro, o José Fístula – o nome diz tudo – que haveria de casar com uma antiga guardadora de cabras, barregã do abade, mulher de carnes duras e redondas, talvez a única figura de mérito. Um irmão da barregã do clérigo partira cedo para o Brasil, voltara rico e comendador, barão de título comprado, procurando moça nova para casar. Caiu-lhe em sorte a filha do boticário Eusébio Macário. O Brasileiro com a desenvoltura dos muitos cruzados que trouxera, adquiriu para o sogro, o boticário Eusébio, uma casaca com a condecoração da Ordem de Cristo, então pelas ruas da amargura. Este brasileiro por omissão quase conquista o coração do leitor. Homem prático e direto, conseguiu a respeitabilidade do dinheiro sem perder a do trabalho e a da calada sageza. A figura negregada de todo o livro é o abade, um comilão, depravado e dissoluto, cheio de amantes e rico das ofertas dos paroquianos e do amontoar das côngruas.

A descrição desse Portugal rural das terras de Basto, coitadas sem culpa alguma, é verdadeiramente escatológica. Poucas figuras acendem na alma a luz da bondade. O abade é um devasso e um farsante, o boticário um aldrabão, os filhos uns tontos, maldizentes e estroinas, os restantes comendadores brasileiros uns descarados invejosos do parvenue e tentando liderar, a pataco, a vontade dos pobres aldeões. O pano de fundo de toda esta deletéria novela é o regime dos Cabrais, sob o reinado de Sua Majestade a Senhora Dona Maria Segunda. Mulher simples, dieta e farta de revolucionários de pacotilha e de militares de voz grossa, acabou por consentir na eternização dos Cabrais, segurando-os nas Cortes pelo aumento sistemático do número de pares fiéis à Coroa. O regime é apresentado como uma vindicta da direita da época à derrota do miguelismo, com todo o seu cortejo de fâmulos e de apoios rurais assentes na ignorância do povo e no arrebanhar do voto censitário. Num reino instável, a estabilidade governativa era um valor e tal permitiu que os Cabrais fizessem obra em estradas e caminhos de ferro.

O livro é naturalmente mais que a resposta a um desafio, uma aposta, mas muito menos que um bom romance, apesar da beleza luxuriante da escrita. Camilo escrevia a metro para ser lido ao mês. Da escrita vivia. Por isso esbanjou talento. Mas se trago o livro a esta crónica de hoje, não é para prosar crítica literária, que jamais fiz, nem apenas por razões estivais e para descanso dos meus leitores. É também para lhes mostrar que o País já foi muito pior que é hoje, embora descrito pela pena fecunda do habitante de São Miguel de Seide.