Estrela Serrano, Pedro Reis e Alfredo Duarte Costa
Colaboradores próximos de Mário Soares, Estrela Serrano, Pedro Reis e Alfredo Duarte Costa deixam-nos um testemunho emotivo e de cunho muito pessoal sobre a memória que guardam do antigo Presidente da República.
“Mário Soares, um testemunho muito pessoal”
A morte de Mário Soares causa-me um sentimento de impotência que me dificulta o distanciamento necessário para falar do “homem político”, do “pai da democracia” ou do “amante da liberdade” que todos, e eu também, reconhecem nele. Por isso, não vou repetir o que tantos disseram já sobre o que ele representa para o nosso País. Isso a História registará. Mas tendo convivido intensamente com ele nos 10 anos da sua Presidência, guardo desses anos memórias impressivas e como tal difíceis de verbalizar. Talvez se eu fosse poeta e juntasse as palavras que me ocorrem saísse um poema… Liberdade, coragem, intuição, alegria, destemor, audácia, desafio, provocação, fúria, ternura, curiosidade, força, teimosia, visão, esperança, capricho, descoberta… Não o sendo, resta-me tentar um testemunho muito pessoal, memórias que guardo dele.
O que me fascinava em Mário Soares era o seu espírito indomável, a vontade de vencer obstáculos, a capacidade de surpreender e estar sempre alguns passos à frente do momento presente. Quando, como era seu hábito naqueles tempos, me chamava para saber “novidades”, sempre me surpreendia a sua capacidade de dar sentido ao que parecia insignificante. Aprendi com Mário Soares que a política é uma arte que requer vocação, sensibilidade e carisma, características que ele aliava a uma cultura humanística ímpar que o fazia sentir-se melhor entre escritores e artistas do que entre engenheiros ou empresários.
A sua curiosidade permanente e o seu interesse pelas pessoas levavam-no a dizer que gostaria de ter sido jornalista e talvez por isso procurava o convívio com eles quer em deslocações no país e no estrangeiro, em atos oficiais ou em encontros informais, onde deliciava todos com as suas fantásticas histórias de vida. O carro oficial durante uma deslocação, a mesa do restaurante, um passeio a pé, eram lugares disponíveis para uma entrevista, uma confidência, uma conversa.
Mário Soares era um “modelo” apetecível para repórteres de imagem, nunca se furtando a solicitações para um bom “boneco”, alguns destes deram a volta ao mundo, fosse na Índia em cima de um elefante, nas Seychelles em cima de uma tartaruga, na praia do Vau cumprimentando uma banhista em topless ou dormitando numa sessão solene. E quando algum de nós o advertia para as críticas dos mais puritanos dizia, desprendido, “deixe lá, isso não tem importância nenhuma”. Nunca aliás deixou de ser ele próprio mesmo quando, no início do primeiro mandato presidencial, a sua Casa Militar tentou, por exemplo, que o seu caminhar bamboleante e informal se adequasse à “revista às tropas” numa parada militar.
Mário Soares era além de um político de dimensão superior uma personalidade fascinante, a um tempo afetivo e colérico, capaz de ser muito duro com um seu colaborador para logo a seguir se espantar se este se mostrasse magoado ou ofendido. Não conheci rancores a Mário Soares. Mas se um amigo lhe faltasse com a lealdade que esperava dele, não esquecia facilmente. Estimava os seus colaboradores, mantendo com eles uma relação não apenas profissional, interessando-se genuinamente por conhecer os seus familiares. Quase no final do segundo mandato, convidou para Nafarros os seus assessores e respetivos cônjuges a quem depois de um simpático almoço guiou numa visita aos jardins criados pelo seu grande amigo, arquiteto Ribeiro Teles, explicando detalhadamente cada árvore e cada planta, espantando os convidados com os seus conhecimentos sobre agricultura e botânica e com o seu amor pela natureza.
Ficam célebres as suas sestas no Palácio ou durante as presidências-abertas em casas particulares de pessoas comuns que, conhecendo esse seu hábito, ofereciam as suas casas para o Presidente descansar. Apreciador da boa comida, preferia um arroz de tomate com pataniscas a um sofisticado pavão servido num jantar de gala. Apesar dos seus gostos simples, era exigente em pequenas coisas, como os ovos estrelados que tinham de ter a gema mole e a clara firme e que não poucas vezes mandou para trás em restaurantes de estrada onde parávamos para uma refeição mais rápida durante uma deslocação no país.
Mário Soares nunca foi moldável a técnicas de comunicação e se aceitava que algum assessor aconselhasse a cor da gravata mais adequada a um cenário para uma entrevista televisiva, era impossível fazer com ele o chamado “media training”. A comunicação era para Mário Soares como o ar que respirava. Era um comunicador nato que fazia vibrar a assistência quando discursava como quando relatava uma das muitas histórias que viveu.
A História não registará muitas das facetas do seu caráter e da sua personalidade. Mas os que com ele conviveram em diferentes fases da sua vida guardarão memórias de um homem a quem ninguém podia ficar indiferente.
Estrela Serrano
“O meu Mário Soares”
Mário Soares era um homem afetuoso, impaciente e, às vezes, colérico. Mas passava-lhe rápido. Minutos após se ter zangado, já não era nada com ele, mudava de assunto e parecia que não tinha acontecido nada. Esta sua personalidade tinha a ver, julgo eu, com o facto de viver a vida em excesso de velocidade. Não tinha, por isso, tempo para grandes angústias ou rancores, como não tinha paciência para os pormenores. Mas era um observador nato, característica que me fascinava e deliciava. Percebia tudo o que se passava à sua volta, detetava gestos, olhares ou frases que nos passavam despercebidos, e atribuía-lhes uma causa ou um significado. O futuro, em regra, dava-lhe razão. A leitura era a que ele tinha feito, com tanta facilidade e rapidez.
Recordo, com saudade, as vezes em que entrava no seu gabinete e ele, sentado à secretária, me olhava por cima dos óculos e lançava o “então diz lá”. E o diz lá podia ser coisa importante ou coisa sem importância nenhuma, porque Mário Soares não resistia a uma boa conversa fosse sobre que tema fosse. Nas deslocações pelo país, passei muitas e muitas horas com ele, no carro. Nessas alturas, o tempo era dividido entre uma sesta, a explicação do programa que ia fazer a seguir e muita conversa. Recebi conselhos, ouvi reprimendas e aprendi muito sobre história e sobre figuras da nossa história. Ao seu lado cresci, casei, tive a minha primeira filha. Mas tinha muitas vezes a sensação de que, para ele, continuava a ser o miúdo que conheceu no início. Naqueles anos de Belém, não tínhamos vida própria. Vivíamos em função de, e para, o Presidente. E gostávamos. Eu gostava, e tenho saudades desses dias.
Vivemos tempos difíceis e, como Presidente, teve de tomar decisões complicadas e arriscadas. Tudo ultrapassou, pois a natureza dotou-o de uma enorme coragem, intelectual e física, que tantas vezes testemunhei. Naturalmente que tinha dúvidas e a noção de que, muitas vezes, se enganou. Mas tinha a inabalável certeza de que, no essencial, no que realmente contava, esteve do lado da razão e, muitas vezes, foi ele a própria razão.
Estas são linhas escritas a correr, que não abordam as qualidades políticas de Mário Soares, e o que o País e a democracia lhe devem. Milhares de textos foram escritos nesse sentido nos últimos dias. É um pequeno testemunho sobre um homem, um grande homem, com quem tive a felicidade e o privilégio de ter trabalhado. Muitas vezes, conhecemos as pessoas pela televisão, pelos jornais ou pelos livros, e fazemos delas uma ideia. A nossa ideia. Depois, nas voltas da vida, cruzamo-nos ou privamos com essas pessoas e ficamos desiludidos. Mário Soares, em tantos anos de trabalho e convívio, nunca me desiludiu. Foi sempre ele próprio, nos bons e maus momentos. Marcou-me e será sempre uma referência na minha vida, que ficou infinitamente mais pobre e mais triste com a sua partida. François Rabelais, um fascinante autor do século XVI, escreveu que, “morrendo, vou em busca de um grande talvez”. Mário Soares, o agnóstico que adorava a vida e nunca quis perder tempo a pensar na morte, foi agora em busca do seu talvez. A nós, deixou-nos a certeza de que não o esqueceremos um legado que saberemos respeitar.
Adeus e até sempre, meu Presidente e Amigo!
Pedro Reis
Tive a honra e o privilégio de ter sido aluno, de ter sido seu amigo e de ter trabalhado muitos anos com Mário Soares.
A vida de Mário Soares confunde-se com a História contemporânea de Portugal. Esteve presente nos momentos decisivos que a marcaram. A sua personalidade e a sua ação tiveram uma influência determinante sobre numerosos acontecimentos, porventura mais do que aqueles que podemos imaginar. Na oposição à ditadura, no fim das guerras coloniais e na descolonização, no Verão quente de 1975, na consolidação da democracia e na adesão à CEE.
Mário Soares foi uma das personalidades políticas portuguesas mais notáveis do século XX e do princípio do presente século e uma das poucas com notoriedade internacional.
Homem de liberdade, lutou por ela sempre com enorme coragem e sem nunca desistir.
Sem Mário Soares Portugal não seria o que é hoje e, por esta razão, todos os portugueses têm para com ele uma dívida de gratidão.
Alfredo Duarte Costa