Entrevista de António Costa ao Diário de Notícias – Angola, um interesse português
in dn.pt por Ferreira Fernandes
Angola, um interesse português
Dois países que não exportam refugiados vão encontrar-se em Luanda. O mais importante problema da Europa e de África vai ser discutido entre duas nações que falam português.
A primeira visita de um primeiro-ministro português desde 2011 e um pacote otimista para discutir a cooperação. A António Costa, um pragmático, agrada-lhe o pragmático João Lourenço. Durante o último ano, os encontros entre as mais altas autoridades portuguesas e angolanas foram intensos. As relações continuavam, naturalmente. Mas o caso Manuel Vicente inquinava. João Lourenço declarou quais as balizas impostas por esse “irritante” (palavra usada por Costa e replicada pelo novo MNE angolano, Manuel Augusto): haveria trabalho mas não conhaque. O trabalho prosseguia (além dos encontros referidos na entrevista dada por António Costa, há que relembrar a ida de Marcelo Rebelo de Sousa à tomada de posse de João Lourenço, e a vinda da primeira-dama angolana, Ana Dias Lourenço, a Belém), mas não haveria conhaque – nem ida do chefe do governo português a Luanda nem do PR angolano a Lisboa. Caso Manuel Vicente resolvido – essencialmente, o Ministério Público português reconheceu o óbvio: teve de reconhecer como idónea a Justiça angolana -, as balizas caíram. E amanhã António Costa desembarca em Luanda. O fio da conversa com o DN, a única entrevista que o primeiro-ministro acordou com um jornal português, andou nisto: Angola é importante para Portugal e quanto mais importante Angola for, melhor para Portugal. A receita é clara. Tanto melhor serem pragmáticos a aplicá-la.
Chega amanhã a Angola e o presidente João Lourenço vem a Portugal em novembro. No Twitter, o senhor disse que este é “um momento auspicioso”. E o Presidente Marcelo classificou de “francamente boas” as atuais relações luso-angolanas. É este o ponto de situação?
No último ano tive oportunidade de me encontrar três vezes com o presidente João Lourenço, e ficou sempre muito claro que as relações entre Portugal e Angola não tinham nenhum problema político. Eram boas do ponto de vista económico e tinham um único irritante que se prendia com uma questão judicial. Ultrapassada essa questão judicial, nada mais ensombrava as nossas relações.
Como explicaria aos portugueses e aos angolanos o que tem de especial um primeiro-ministro português ir a Angola em 2018?
Acho que, em praticamente um mês, o primeiro-ministro de Portugal ir a Angola e o presidente de Angola vir a Portugal demonstra aquilo que deve ser a normalidade da relação entre Portugal e Angola. O que é estranho é nos últimos sete anos nenhum primeiro-ministro português ter ido a Angola e, nos últimos oito anos, nenhum presidente de Angola ter vindo a Portugal. Eu diria que a nossa relação devia ser praticamente anual. Ou cá, ou lá, ou a meio caminho. A intensidade da nossa relação, do ponto de vista político, do ponto de vista económico, do ponto de vista de que cada um dos nossos países pode ajudar para esse grande desafio que temos neste século, que é a relação entre África e a Europa, exigia que, enfim… não nos encontrássemos todos os meses, mas pelo menos todos os anos. Mas temos de nos encontrar.
“Angola vai ser uma das grandes potências económicas em África durante este século, o que é muito importante para o nosso país. Mais, é muito importante a influência política crescente de Angola, não só no continente como no mundo, porque isso reforça toda a presença política do espaço da CPLP.”
O ministro das Relações Exteriores, Manuel Domingos Augusto, abriu a primeira delegação angolana depois do apartheid na África do Sul e foi também embaixador na Zâmbia. E recentemente o presidente francês Emmanuel Macron sublinhou que Angola era decisiva na resolução da crise política crónica da República Democrática do Congo… Os dois exemplos colocam Angola numa região onde ela é uma potência. Isto dá força ou enfraquece Portugal?
Dá força sobretudo a Angola, e tudo o que dê força a Angola naturalmente puxa pelas relações económicas, em particular as relações económicas de Portugal. Angola vai ser uma das grandes potências económicas em África durante este século, o que é muito importante para o nosso país. Mais, é muito importante a influência política crescente de Angola, não só no continente como no mundo, porque isso reforça toda a presença política do espaço da CPLP no quadro global. Se algo é decisivo para as próximas décadas, é a relação entre estes dois continentes vizinhos, África e Europa. E nesta relação, Angola tem um papel fundamental porque vai ser um dos grandes motores do desenvolvimento do continente africano. E o facto de ela ter uma presença forte na Europa reforça a sua posição. Angola tem condições para não estar virada sobre si mesma, abrir-se ao mundo e ao continente. Todos temos uma enorme expectativa de que, com o presidente João Lourenço, Angola afirme esse papel de liderança. Não só na África Austral mas no conjunto do continente africano.
Portugal vê Angola como um mercado para as suas exportações…
É também um excelente mercado de emprego, convém não esquecer. Temos 170 mil portugueses que residem em Angola, que foi uma das grandes portas de saída para muitos portugueses nos anos mais difíceis da crise. E a demonstração de como, efetivamente, este espaço da CPLP é também um espaço económico muito importante para reequilibrar os fluxos consoante as crises vão atingindo uns ou outros. Angola não é só um mercado de exportação. É um grande mercado de vivência, das nossas comunidades e, designadamente, dos muitos portugueses que vivem em Angola.
“Nós com Angola vivemos muitos anos, os portugueses têm uma paixão especial por Angola. E essa paixão, muitas vezes, levou a que se confundisse aquilo que é essencial: uma relação Estado a Estado, governo a governo. Com debates, cá e lá, sobre as políticas internas de cada um dos países.”
A crise dos refugiados já levou a União Europeia a concluir que é necessário ajudar África a encontrar uma solução para os seus habitantes e que não produza só homens sem esperança. Isto é, o problema dos refugiados também é europeu. O senhor vai visitar um país africano que não exporta refugiados mas, pelo contrário, que os recebe. Esta questão está agendada nos encontros que vai ter?
Acho ser claro para todos que a estratégia do desenvolvimento do continente africano é decisivo para a estabilidade das relações internacionais. A solução não pode ser só a emigração em direção à Europa. Felizmente a União Europeia recentemente compreendeu que, mais do que securitizar fronteiras, importa investir no desenvolvimento do continente africano. Esse é o novo olhar que a Europa tem e espero que venha a aprofundá-lo. Gostaria muito que o grande tema da presidência portuguesa da União Europeia, em 2021, fosse precisamente as relações da Europa com África. Mas é preciso que aqueles que podem ser os motores do desenvolvimento do continente africano desenvolvam todo o seu potencial. E se há motor que tem potencial para desenvolver, é claramente Angola. Ela pode, quer com o investimento no continente, quer com o desenvolvimento da sua economia, quer com a atração de emigrantes, que é uma plataforma essencial, ser um dos grandes aliados da Europa neste esforço de apoiar o desenvolvimento do continente africano.
Angola foi vista durante décadas e sobretudo nas duas últimas como um lugar de negócio, inclusivamente com a intervenção de políticos portugueses de leque diverso. O socialista Jorge Coelho, o social-democrata Miguel Relvas, o centrista Paulo Portas estiveram…
Presumo que lá estejam…
“Esta viagem vai abrir novas áreas nos domínios da soberania da cooperação técnico-policial e da cooperação tributária, mas a língua é sempre uma mais-valia.”
Sim, mas hoje há um interesse mais político, e que se estendeu às lideranças dos partidos. Estamos perante uma unanimidade que não existia. De Jerónimo de Sousa a Assunção Cristas, passando por si, António Costa, e por Rui Rio, incluindo o Presidente Marcelo, há quase uma voz única a reconhecer Angola como de importante interesse nacional português. É possível aproveitar esta unanimidade atual para resgatar para a política aquilo que era quase exclusivamente negócios?
Acho que isso é um enorme sinal de maturidade. Nós com Angola vivemos muitos anos, os portugueses têm uma paixão especial por Angola. E essa paixão, muitas vezes, levou a que se confundisse aquilo que é essencial: uma relação Estado a Estado, governo a governo. Com debates, cá e lá, sobre as políticas internas de cada um dos países. Nós temos de ter com Angola, como temos com todos os outros países de expressão lusófona, uma relação fundamental que é: nós somos amigos do povo, do país e do governo que está em funções em cada momento… Haver essa unanimidade na sociedade portuguesa é da maior importância. Bem sei que a independência do Brasil tem uns séculos de avanço, mas mesmo durante a ditadura brasileira os democratas portugueses encontraram refúgio no Brasil. Mesmo depois da revolução em Portugal os democratas brasileiros encontram refúgio em Portugal. Mas Portugal e Brasil nunca esfriaram as suas relações. Qualquer que seja o regime, qualquer que seja o governo, qualquer que seja a orientação política, Portugal e Brasil têm sempre uma relação de amizade. Esta é a relação que temos com todos os outros países de expressão lusófona, e é assim que temos de ter também relativamente `a relação com Angola. Sempre me fez muita impressão esta ideia de que há governos com quem a relação é boa e governos com quem a relação é má. Não. As relações têm sempre problemas, mas assentes na amizade, na confiança, no respeito mútuo e na igualdade de tratamento conseguimos ir resolvendo os problemas. Quando não há problemas também não é preciso os governos meterem-se, porque isso os cidadãos, os agentes culturais, os agentes económicos fazem-no por si. A relação. A língua comum permite-o, o conhecimento mútuo e a afetividade ajudam.
Angola faz da língua portuguesa um dos pilares da sua identidade nacional. E não o faz por causa de Portugal, faz por ela. Consolidando a língua no seu território e expandindo-a – hoje a língua portuguesa tem cada vez mais falantes na República Democrática do Congo, na Zâmbia e na Namíbia, esse papel angolano é de todo o interesse de Portugal. Leva alguma proposta para ajudar Angola a ancorar-se ainda mais na nossa língua comum?
Nesta viagem vamos relançar a nossa cooperação estratégica. Vai ser todo um novo programa estratégico de cooperação, que vai assentar nas áreas tradicionais, como a saúde, como a educação – onde a língua tem um papel fundamental. Esta viagem vai abrir novas áreas – no domínio da soberania, da cooperação técnico-militar, da cooperação técnico-policial e da cooperação tributária, mas a língua é sempre uma mais-valia. Não é só uma mais-valia para Portugal, como disse, e bem. É uma mais-valia para todos e para cada um dos países lusófonos. Para aqueles quem a língua é no fundo um fator de unidade nacional e é sobretudo de podermos partilhar e enriquecer diariamente em conjunto uma língua que é falada em quatro continentes. E é uma das línguas globais e do futuro.
A política do visto obrigatório entre os dois países varia segundo os interesses de momento de cada um deles. Quando Portugal emigra mais, quer restrições mais suaves; quando Angola recebe mais emigrantes, quer restrições mais apertadas. Não é hora de os dois países falarem dos vistos com vistas mais largas?
Nós apresentámos uma proposta no quadro da CPLP, e que formalizámos em conjunto com Cabo Verde, para haver um acordo de livre residência entre os diferentes países da CPLP. Nós enquanto país membro da União Europeia estamos sujeitos à política comum de vistos. Mas relativamente às autorizações de residência não há política europeia e, portanto, gozamos de liberdade nessa matéria. E quem tem liberdade de residência está dispensado de visto. Nós temos agilizado muito os vistos, designadamente para quem é viajante frequente e, portanto, está no mundo dos negócios, para estudantes universitários, para agentes do poder político, por questões de saúde, etc. Mas está na hora de, não só na relação entre Portugal e Angola, mas no âmbito do conjunto da CPLP, de desenvolver este pilar da cidadania. E a melhor forma de cada um dos cidadãos dos países membros da CPLP se sentir parte de uma comunidade é poder circular entre uns e outros. Estes anos de experiência têm permitido eliminar muitos dos mitos. Quando tivemos esta crise profundíssima e vimos muitos engenheiros portugueses a ter dificuldades em ver os seus títulos reconhecidos, por exemplo, no Brasil, espero que tenhamos percebido o disparate que andámos a fazer com os dentistas brasileiros!
Aprender com os erros.
É que esta comunidade de língua é uma válvula de segurança para todos os nossos nacionais e para que as situações mais dramáticas de crise possam atenuar-se em cada um dos países. A liberdade dos portugueses de poderem partir para Angola, para Cabo Verde, para São Tomé, para o Brasil, nas épocas de dificuldades económicas aqui. E a liberdade de podermos acolher aqui, nas épocas de expansão económica como a que estamos a viver, em que precisamos de atrair mão-de-obra, termos quadros que possam vir de qualquer um dos países lusófonos e aqui se instalarem em igualdade de direitos. É absolutamente fundamental. Foi com muita satisfação que vi na sessão de enceramento da última cimeira da CPLP o presidente João Lourenço no seu discurso apoiar a necessidade de a CPLP aprofundar este trabalho. E tenho esperança de que na presidência angolana da CPLP, em 2020, sejam dados passos decisivos para que se criem condições para uma circulação fluida entre nós.
Dos seus dois dias de encontro ao mais alto nível em Luanda, o que poderemos esperar em decisões?
Vamos ter, seguramente, um avanço do novo acordo estratégico de recuperação. Vamos assinar acordos muito importantes para as parcerias económicas, como o acordo para evitar a dupla tributação, o que é essencial para facilitar os investimentos angolanos em Portugal e dos portugueses em Angola. E vamos alargar as linhas de crédito a Angola e, seguramente, também ter avanços nas questões relativas ao pagamento de dívidas, que se acumularam.
O senhor é filho de um goês que nasceu em Moçambique, Orlando Costa, que é um filho do império português e foi um anticolonialista… António Costa, o que lhe evoca a si, pessoalmente, ir agora a Angola? O que foi no seu imaginário, na sua vida, Angola?
Já tive oportunidade de ir diversas vezes a Angola. Mas é evidente que não posso ignorar a minha própria história particular e o facto de o meu pai ter sido um militante anticolonialista, ter convivido com grande parte dos iniciadores das lutas de libertação, da Casa dos Estudantes do Império… De ter um primo que foi general da Frelimo, o Sérgio Vieira… De o presidente Agostinho Neto e de Mário Pinho Andrade terem sido amigos do meu pai… E de eu ter brincado, em miúdo, com os filhos do Lúcio Lara… Obviamente tudo isso é uma circunstância especial que me dá, porventura, uma facilidade de leitura daquilo que é a realidade entre os nossos países. E perceber bem que essa luta pela independência foi uma luta gémea pela libertação do nosso país também.