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“É preciso estarmos atentos e não baixar a guarda perante o populismo”

“É preciso estarmos atentos e não baixar a guarda perante o populismo”

O ano de 2020 tem sido tão desafiante quanto singular, tendo como pano de fundo uma pandemia à escala global, que tem exigido uma resposta inédita a nível económico, social e também das instituições políticas. No final do ano parlamentar, o Acção Socialista Digital entrevistou Eduardo Ferro Rodrigues, Presidente da Assembleia da República, sobre este e outros temas que marcam a atualidade do Parlamento, do debate político e do país.
Implantação da República: de súbditos a cidadãos

Ainda antes de o país ser atingido pela pandemia, esta sessão legislativa continha já um dado político novo, depois de uma legislatura em que se falou de uma nova centralidade do Parlamento, marcada pelos acordos – inéditos – à esquerda e pelo alargamento do que poderíamos chamar de “espectro parlamentar de governação” ao BE, PCP e PEV.

Com a recomposição da relação entre os partidos da esquerda e com a novidade de novas representações políticas [Chega, IL e Livre], sente que essa dinâmica de centralidade do Parlamento saiu reforçada?

A centralidade do Parlamento é uma característica do nosso quadro constitucional. A Assembleia da República é a assembleia representativa dos cidadãos portugueses, o órgão em que assenta a nossa soberania, o nosso sistema político.

As últimas eleições para a Assembleia da República trouxeram, com efeito, mudanças significativas. Houve não só uma redistribuição dos mandatos, mas também uma dispersão da representatividade, com o aparecimento de mais forças políticas, de diferentes quadrantes, com assento parlamentar. Esses factos vieram, de certo modo, reforçar a centralidade da Assembleia da República. A existência de um Governo minoritário, de um só partido, sem apoio parlamentar sustentado em acordos firmados, como ocorreu na legislatura anterior, obriga a que a aprovação de propostas de lei do Governo seja objeto de negociação constante, caso a caso e com geometria variável. Por outro lado, as novas representações parlamentares deram uma outra visibilidade ao Parlamento, ao trazer outras vozes e ideias para o debate político.

O ano parlamentar fica marcado, incontornavelmente, pela circunstância inédita de uma pandemia e dos seus impactos, sociais e económicos, mas também na própria ação política. Foi um desafio?

Foi e é ainda um desafio ao qual, posso já afirmá-lo, a Assembleia da República soube estar à altura, dando a resposta adequada.

É importante sublinhar que em momento algum a Assembleia da República suspendeu os seus trabalhos, como alguns partidos chegaram a propor. Tenho, aliás, como assente que a Assembleia da República, órgão de soberania por excelência, deve manter a plenitude das suas funções, sobretudo, em situações de crise, como a que se vive, em que a ação do Governo deve ter um acompanhamento mais aturado e uma fiscalização mais cuidada, em total respeito e em cumprimento da Constituição.

Recordo que, pela primeira vez no âmbito da Constituição de 1976, a Assembleia da República foi chamada a autorizar a declaração do estado de emergência, e a proceder à sua avaliação, o que fez por três vezes. É por isso que não hesito em afirmar que a Assembleia da República cumpriu cabal e integralmente a sua missão, e que as Portuguesas e os Portugueses devem orgulhar-se do seu Parlamento.

A polémica em torno dos moldes em que se deveria realizar a comemoração do 25 de Abril foi, talvez, o exemplo mais representativo dos desafios que se colocaram. O presidente da Assembleia da República foi também, desde o primeiro momento, um defensor intransigente de que a sessão solene no Parlamento deveria ser mantida… 

Assumo que sou um defensor intransigente da sessão solene comemorativa do 25 de Abril, data fundadora do nosso Estado de direito democrático. A celebração do 25 de Abril é, a par do debate do estado da Nação e do debate do orçamento, um dos três momentos estruturantes da vida parlamentar. É a celebração da Democracia, do Estado de Direito e da Liberdade. Enquanto for Presidente da Assembleia da República, o 25 de Abril será sempre celebrado.

Sentiu que pudesse ter existido uma tentação, aproveitando a singularidade do contexto, de se querer diminuir a data da nossa Democracia?

Não tenho dúvidas disso. Houve uma forte instrumentalização política da situação pandémica que se vive por parte de forças antidemocráticas, com vista a descredibilização do regime democrático saído do 25 de Abril.

Uma das linhas de intervenção em que mais tem insistido diz respeito ao alerta sobre o crescimento do fenómeno do populismo e aos riscos que o mesmo implica, nomeadamente, na apropriação do discurso político. Portugal está a começar a correr esse risco?

O fenómeno do populismo tem vindo a ganhar terreno um pouco por todo o mundo. Na Europa, há partidos ou movimentos populistas com assento parlamentar mesmo em países com larga tradição democrática. 

Portugal, infelizmente, entrou também para esse clube. Não sei se fará caminho, mas, pelo menos para já, é uma realidade. As últimas sondagens indiciam uma certa estabilização na expansão dessa tendência, mas é cedo para tirar conclusões. A situação pandémica parece não estar, por agora, a trazer proveito aos populistas. Mas é preciso estarmos atentos e não baixar a guarda. 

E é preciso encontrar, aprovar e dar rápido seguimento às medidas de combate à COVID-19, não só na sua vertente de saúde pública, mas também na sua dimensão económico-social, para que as suas consequências mais negativas não sejam aproveitadas por quem quer minar a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas e pôr em causa a própria Democracia.

O próximo ano parlamentar vai começar em setembro já sem os debates quinzenais com o primeiro-ministro, uma matéria que tem suscitado opiniões diversas, sendo substituídos por debates mensais com o Governo. É uma boa solução para a garantia da pluralidade do debate político e do escrutínio parlamentar?

A minha preocupação é que haja um verdadeiro escrutínio da atividade do Governo, como determina a Constituição. E o Governo não se circunscreve ao primeiro-ministro. Parece-me, aliás, errada esta concentração da vida política na pessoa do primeiro-ministro. Ultimamente os debates quinzenais têm perdido profundidade ou relevância, reduzidos muitas vezes a meras disputas de soundbites, de efeito imediato, para obter algumas linhas nos órgãos de comunicação social ou nas redes sociais.

O novo figurino promete mais incidência nas políticas do que nas pessoas. Os ministros têm competências próprias e a sua ação, coordenada sem dúvida pelo primeiro-ministro, deve ser objeto de um escrutínio mais acentuado.

Os próximos anos vão ser também, certamente, dos mais exigentes de sempre para o país, com uma enorme tarefa pela frente, para fazer face aos efeitos da crise provocada pela pandemia. Como avalia a resposta que tem sido dada?

Antes de mais, importa sublinhar que as medidas adotadas pelo Governo para fazer face às consequências – de saúde pública, económicas e social – da pandemia têm tido um enorme consenso na sociedade portuguesa e até reconhecimento de organismos internacionais como, recentemente, a OMS.

Para o Governo, para todos nós, o objetivo principal é salvar vias e manter os postos de trabalho. Aos principais ministérios envolvidos – o Ministério da Saúde, o Ministério da Economia e da Transição Digital, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social – foram disponibilizados os meios necessários. Felizmente, e pela primeira vez em Democracia, podemos contar com a almofada resultante de um excedente orçamental. 

Naturalmente que a resposta nem sempre tem tido os resultados desejados e há discordâncias com esta ou aquela medida, o seu alcance ou adequação, mas, de um modo geral, tem havido uma aceitação e um reconhecimento de que a ação governativa tem conseguido mitigar alguns dos efeitos mais dramáticos da pandemia. 

Não nos podemos esquecer de que estamos confrontados com um novo vírus, de caraterísticas desconhecidas e imprevisíveis, e que os meios de combate de que dispomos são ainda fruto do improviso. E que esta crise afeta quase todos os países e que nem mesmo as maiores potências estavam preparadas para a grandeza desta emergência. O caráter universal da crise trouxe dificuldades acrescidas. A procura excessiva para a escassez dos meios disponível, que tem revelado algum egoísmo nacionalista, é motivo de preocupação. Por isso, era fundamental uma resposta a nível europeu, se não mundial, para absorver o impacto desta crise.

Tem insistido repetidamente na importância de existir uma forte cooperação institucional e na necessidade de convergências, não apenas no campo político, mas também de concertação económica e social. O plano de recuperação, cuja visão estratégica foi já apresentada, pode ser um elemento aglutinador dessas convergências?

Infelizmente não me foi possível assistir à apresentação da ‘Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica 2030’, do Professor António Costa Silva, mas já tive a oportunidade de a ler. É sem dúvida um documento bem preparado e elaborado, da maior importância no plano geoeconómico e estratégico, que apresenta perspetivas e elenca algumas ideias e projetos que podem ser estruturantes para a reconstrução do país nos próximos dez anos, no pós-pandemia.

É uma visão clara para a transformação da economia portuguesa, de modo a torná-la mais sustentável, social, ambiental e economicamente, apostando, nomeadamente, na Transição Energética, com a descarbonização da economia e a incorporação crescente de energias de fontes renováveis, e na Transição Digital, dotando as escolas, as empresas e todos os serviços do Estado com as infraestruturas digitais necessárias para aumentar a eficiência e a competitividade.

É manifestamente um instrumento de trabalho, ainda com algumas lacunas, nomeadamente nas questões sociais, competindo agora ao Governo, ao Parlamento e aos parceiros sociais a sua concretização. Ainda está em fase de análise e de quantificação, mas penso que as suas propostas têm sido bem acolhidas e que será possível conseguir um largo consenso nacional para a sua execução. Como tenho referido, a recuperação económica do País só é possível com o contributo de todos, num esforço de concertação entre o Governo, os parceiros sociais e demais representantes da sociedade civil organizada.

Depois de alguma hesitação e ainda que algumas divergências permaneçam, a Europa parece ter dado o passo que se esperava no sentido de uma resposta comum à crise. Há razões para otimismo numa nova dinâmica do projeto europeu?

O acordo que veio a ser alcançado é histórico, não só pelo volume do financiamento, mas também pelo facto de, pela primeira vez, uma instituição europeia ir ao mercado para financiar, com obrigações emitidas pela própria instituição, o plano aprovado, os empréstimos a efetuar e os subsídios a conceder ao seu abrigo.

É uma resposta impensável há alguns anos e que é de importância capital, já que, se não tivesse sido possível o acordo, a União Europeia entraria numa crise certamente irreversível, pondo em causa o projeto europeu. Nessa medida, penso que, apesar de alguma dissonância que permanece entre alguns Estados-membros, há razões para ter otimismo.

Vai completar cinco anos como Presidente da Assembleia da República. Se o desígnio do tempo político assim o confirmar, poderá vir a ser o Presidente com mais tempo de exercício na história da Democracia. É um legado que já lhe mereceu reflexão?

Espero que o meu legado não se resuma ao mero decurso do tempo no cargo de Presidente da Assembleia da República. Na última legislatura foi possível aprovar, com um largo consenso, reformas estruturantes para o reforço da transparência no exercício de funções públicas que entraram em vigor nesta sessão legislativa. Foram também lançados os projetos do Parlamento Digital e do Centro Interpretativo do Parlamento. O Parlamento Digital está já em pleno funcionamento, e é um exemplo de reforço da democracia participativa, de mais e melhor Parlamento. O Centro Interpretativo, apesar das vicissitudes processuais a que tem sido sujeito, deverá estar pronto para receber visitas no próximo 25 de Abril. 

Assim, se tivesse que falar em legado, gostaria que este fosse o de ter contribuído para tornar a Democracia mais aberta e mais transparente e para a valorização do Parlamento como Casa da Democracia.