Numa semana em que tivemos duas eleições legislativas importantes no espaço europeu, Reino Unido e França, os socialistas têm muita coisa a festejar. O Partido Trabalhista britânico conquistou uma larguíssima maioria absoluta, acabando com mais de uma década de trapalhadas dos conservadores e permitindo a esperança de uma governação mais decente naquele país (por exemplo, acabando com o projeto de entrega de refugiados a países terceiros, ao arrepio das garantias com que os países civilizados se comprometem face à lei internacional). Pelo seu lado, o Partido Socialista Francês integrou a vasta reunião de forças de esquerda que trabalhou para impedir o acesso da extrema-direita ao poder – tendo conseguido concretizar esse desiderato. São, pois, duas realizações positivas de partidos com quem o PS mantém estreitas e cordiais relações, baseadas em valores e compromissos progressistas.
Convém, no entanto, continuar com os pés bem assentes na terra e sermos capazes de medir os desafios que temos perante nós. No Reino Unido, o Reform UK, o partido extremista liderado por Nigel Farage (o Trump inglês), só conseguiu eleger quatro deputados para a Câmara dos Comuns (o que compara com mais de quatrocentos eleitos pelo Labour), mas isso deveu-se ao sistema eleitoral vigente (uninominal maioritário a uma volta, em que, em cada círculo, “o vencedor leva tudo”). Em votos, esse partido extremista colheu mais de 14%. Ficou, pois, em terceiro lugar (os Trabalhistas venceram com mais de 33% e os Conservadores ficaram com mais de 23%). Em França, o partido extremista, que tenta apresentar uma imagem adocicada para melhor enganar os incautos, e que vai navegando em sucessivas gerações Le Pen, tendo, graças à “frente republicana”, ficado em terceiro lugar em número de assentos na Assembleia Nacional, recolheu cerca de 32% do voto popular, contra um pouco mais de 25% da Nova Frente Popular e um pouco mais de 23% das forças centristas mobilizadas por Macron. Era com este sistema que a extrema-direita ambicionava chegar à maioria absoluta, chegando o seu candidato a primeiro-ministro a dizer que só formaria governo nessas condições, pelo que não devemos dar qualquer crédito aos seus protestos pelo funcionamento do sistema depois de conhecerem os resultados das urnas – mas a questão merece reflexão.
O que estes números nos dizem é que, mais do que derrotar a extrema-direita hoje, é preciso derrotar a extrema-direita duradouramente. Agir nas raízes, não apenas na copa das árvores. É preciso eliminar as causas sociais e políticas do avanço da extrema-direita, única maneira de evitar que ela volte, mais forte a cada nova perturbação, até derrotar a democracia.
Para derrotar as causas sociais do avanço da extrema-direita é preciso ultrapassar a insensibilidade social que, por vezes, impede os partidos democráticos de atentar mais cuidadosamente na vida concreta das pessoas e dos territórios – e de lhes dar respostas substantivas. Em França, essa insensibilidade social apresentou-se, nos últimos anos, desde logo, no topo do Estado, com a atitude do Presidente Macron, tornando-se a marca dessa forma de centrismo equilibrista e com uma ideia de progresso excessivamente abstrata e desligada das realidades sociais.
Para derrotar as causas políticas do avanço da extrema-direita é preciso insuflar vida nas instituições democráticas, permitindo que a discussão real e concreta da vida quotidiana de todos os cidadãos e de todos os territórios se torne o centro da vida política – e criando espaços de verdadeira deliberação democrática, de tal modo que se torne visível que aquilo de que os políticos falam é mesmo acerca dos melhores caminhos para conseguirmos, todos, uma vida melhor. Uma democracia deliberativa é uma democracia que não se esgota na prevalência dos que têm mais votos: é uma democracia que se exerce escutando efetivamente os argumentos dos outros e integrando todos os contributos positivos num processo de ir continuando a tentar fazer melhor.
Para derrotar as causas políticas do avanço da extrema-direita é preciso que a esquerda não renuncie a ser alternativa: em vez de querer apenas rodar no poder com a direita, a esquerda deve trabalhar para oferecer soluções melhores, mais justas e mais sustentáveis, para a vida das pessoas e do país. Por isso, no caso da França, é importante que a Nova Frente Popular seja capaz de se manter unida a trabalhar por uma visão alternativa para a governação do país, com o programa comum que as diferentes forças de esquerda apresentaram em conjunto ao país, capaz de ultrapassar a insensibilidade social que o bloco centrista liderado por Macron tem protagonizado. E, ao mesmo tempo, para garantir que a derrota da extrema-direita não é momentânea, mas duradoura e profunda, é preciso que a esquerda vencedora, a Nova Frente Popular, seja capaz de trabalhar com as demais forças democráticas para criar o espaço social necessário para tratar das feridas e ir em frente: se foram capazes de se eleger mutuamente, apesar das diferenças, deverão ser capazes de recusar à extrema-direita a instabilidade e a crispação de que ela se alimenta.
Numa democracia representativa, onde o parlamento é o lugar central de deliberação, não faz sentido continuar com a ficção de que basta chegar à frente numa eleição para poder governar sozinho. Ninguém pode nunca governar sozinho, mesmo que tenha maioria absoluta no parlamento, porque, felizmente, a sociedade conta – e conta cada vez mais. Mais claro se torna que, ficando em primeiro lugar, mas com maioria relativa, é preciso trabalhar num horizonte mais amplo. E, claro, a esquerda só pode escolher trabalhar com os democratas, com os outros democratas. Com os democratas que não hesitam em defender a República face à ameaça da extrema-direita, porque só esses são democratas com que se pode contar. Numa palavra: em tempos difíceis, em democracias complexas, o sectarismo é suicídio. Em França como alhures. Quer isto dizer que a esquerda deve perder de vista a sua diferença, o seu contributo próprio? Não. Quer dizer que a esquerda relevante é a esquerda que, antes de mais, é a força democrática por excelência, a força determinante para que prevaleça a democracia contra o fechamento das sociedades e contra as tentações totalitárias.