Nos discursos que merecem ser lembrados no 47º aniversário, foram declinados em diferentes perspetivas e com múltiplos sentidos os conceitos de “democracia”, “liberdade” e “igualdade”. Três vocábulos inteiros e luminosos que encerram o mais importante dos ideais da Revolução dos Cravos. Democracia que nos confere direitos e deveres, nos protege de discriminações, perseguições e abusos e nos garante, a todos por igual, o acesso à educação, à saúde, à segurança social, ao desporto e à cultura. Liberdade de nos exprimirmos contra e a favor sem delito de opinião, de nos reunirmos e manifestarmos, de sermos nós com as nossas singularidades. Igualdade é o terceiro pilar que equilibra, harmoniza e acrescenta sentido aos outros dois.
Nasci, cresci e estudei em ditadura. Ontem, descrevi ao neto mais velho o que era Portugal antes da Revolução. Contei-lhe que a bisavó dele tinha sido a primeira pessoa da aldeia onde nasceu “a ir estudar”, como se dizia então, e que eu tinha colegas que no inverno iam descalços para a escola e com fome. Surpreendeu-se ao imaginar a avó correndo pela alameda da cidade universitária à frente da polícia que nos perseguia sem razão. Falei-lhe desse passado sem liberdade de questionar, quanto mais de discordar. Um passado de medo e gritantes desigualdades. Ficou a saber que o Portugal de antes era muito diferente do que é hoje. Antes era a guerra colonial, o analfabetismo, a mortalidade infantil, o subdesenvolvimento, a pobreza e o “orgulhosamente sós”. Depois, o povo acordou “ para um novo tempo” e mudou “ o rumo ao vento/ para um novo alvorecer”, escreveu Ary. O povo, sujeito do seu destino, escancarou as portas da liberdade, lutou pela democracia e promoveu a igualdade. Portugal abriu-se ao mundo e à Europa, desenvolveu-se e modernizou-se. Concluí, afirmando que por tudo isto e o mais que o texto não comporta, para mim, a democracia é muito mais do que uma escolha, é uma segunda natureza, um modo de vida. A minha respiração livre e segura.
Hoje, ao contrário do que acontecia antes de 74, a democracia não está amordaçada, mas está ameaçada pelos se aproveitam das imperfeições inerentes à natureza humana, exploram o medo, amplificam legítimos descontentamentos, difundem a mentira e o ódio e, porque não têm coerência nem decência, vendem facilidades para comprar votos. Não, o sistema não está “podre”. A democracia é um edifício inacabado, cuja construção e melhoramento a todos compete. Sabemos que não está tudo feito nem tudo foi bem feito. E não vamos esquecer os excluídos do desenvolvimento. Os que ainda vivem na pobreza e na solidão. Os que não têm trabalho e os que, tendo-o, não ganham para ter uma vida digna. E os jovens cujos sonhos a pandemia subtraiu. Mas Abril deu-nos tanto que só por ignorância ou maldade alguém pode ignorar esse legado inestimável. Nós, mulheres e homens que conhecemos o antes e o depois, temos a obrigação de enfrentar o populismo que se alimenta da demagogia e defender a democracia ameaçada. Não esqueçamos que a invasão armada do Capitólio, incitada por quem tinha o dever constitucional de o proteger, aconteceu e deixou sequelas.