Rui Lage começou por assinalar, no Parlamento, durante a sessão solene evocativa da aprovação da Constituição de 1822, que com o “nosso primeiro texto constitucional, aprovado há exatamente dois séculos, veio a ‘livre comunicação dos pensamentos’, a separação de poderes, a igualdade jurídico-formal, a extinção da inquisição e a abolição da tortura, o respeito pela liberdade e pela propriedade individuais, um governo representativo, e, claro está, o voto por sufrágio universal, ainda que severamente amputado no seu alcance”.
Frisando que deve ser “situada no seu tempo histórico”, o deputado do PS referiu que a Constituição de 1822 “pode ser lida pelos atuais deputados da nação sem estranheza, apesar de faltarem muitos dos atributos democráticos atuais”.
“Na verdade, ela apresentava-se adiantada face ao tempo político nacional, o que explica, em parte, o seu fim precoce”, notou o parlamentar. Mesmo assim, “tal não a impediu de pôr em marcha, num país depauperado e rebaixado, o desmantelamento do Antigo Regime, deslocada a soberania do monarca para o povo e convertidos os súbditos em cidadãos”, lembrou.
Rui Lage falou em seguida do “espírito constitucional”, recordando que Manuel Fernandes Tomás o classificou como um “sentimento íntimo” que “inflama os nossos corações pelo bem dos nossos semelhantes”.
Ora, “o espírito constitucional será talvez o único espiritualismo que se confunde com a própria razão, o que, longe de significar frieza e desafeição, longe de significar abstração inoperante, significa equilíbrio atuante”, destacou o deputado do Partido Socialista.
Rui Lage advertiu que “é em nome da razão que a democracia constitucional refreia os excessos e regra as paixões do poder político, atravessando-se no caminho do abuso e da arbitrariedade”, sendo também em “nome dela que encoraja a moderação e que solicita uma ética da discussão”.
O parlamentar fez, em seguida, o exercício de transpor o “espírito constitucional” para os dias de hoje: “Um antídoto, se o quiséssemos, numa altura em que em muitas partes da Europa a separação de poderes afrouxa e o credo iliberal faz caminho. Tempos sombrios que convidam a reconhecermos a fragilidade constitutiva da política e a constatar a possibilidade de uma morbilidade constitucional − as constituições também morrem. E não faltam nações onde os direitos liberais e sociais permanecem indisponíveis, senão mesmo inalcançáveis”.
Para Rui Lage, “o prosseguir e aprofundar das inovações da nossa primeira lei fundamental, nas Constituições de 1838, de 1911 e 1976, revela que o espírito constitucional é um espírito migrante, que é preciso conjurar e amarrar ao chão de cada época histórica”.
“Assim, aos direitos naturais e liberais vieram acrescentar-se os direitos sociais. Foi no húmus do Estado liberal que germinou o Estado social”, explicou.
“Uma constituição constitui juridicamente a liberdade que a democracia constitui politicamente. Mas se ela faz de nós cidadãos, também faz de nós associados – dela recebemos e nela pomos o comum, declinado em direitos e deveres. Na formulação do deputado constituinte Manuel Fernandes Tomás, ‘o bem de todos é considerado como a felicidade social’”, apontou.
Por isso, Rui Lage concluiu a sua intervenção com um desejo: “Que viva, pois, o espírito da Constituição de 1822”.