ADSE
Vai ao arrepio das recomendações do Tribunal de Contas, contraria o relatório que o Governo havia solicitado à Entidade Reguladora da Saúde e descarta as recomendações elaboradas pelo grupo de trabalho que havia sido nomeado pelo Ministério. Apenas parece ter contentado a própria instituição e alguns sindicatos da função pública. Razões nunca explícitas, mas não será difícil discernir que os que nela trabalham preferem a segurança do estatuto de direção-geral transformada em instituto público; os sindicatos não estão para aventuras, a transformação do atual serviço em mútua dos seus associados não só seria tecnicamente complexa, como daqui a alguns anos, quando as receitas não cobrirem mais as despesas, se podia correr o risco de serem cortados benefícios; à sombra protetora do Estado pensam estar mais protegidos. Aparentemente todos deveríamos ficar satisfeitos.
Convém, porém pôr os óculos contra a miopia. ADSE e Serviço Nacional de Saúde são vasos comunicantes. Dificilmente a melhoria de um se traduz na melhoria do outro. Se o SNS algum dia vier a ser o que dele se idealizou e ainda hoje retoricamente se afirma, a ADSE tornar-se-ia redundante. Se a ADSE continuar como está, ou quase igual, desnatará do SNS a clientela dos funcionários e pensionistas do Estado, com rendimentos médios bem acima dos trabalhadores por conta de outrem, oferecendo-lhes a possibilidade de escolha de cuidados nas amenidades do setor privado. Dir-se-á que podem sempre recorrer aos hospitais públicos, onde, de forma simplificada se reconhece serem menores as amenidades e superior a qualidade e segurança em casos difíceis e dispendiosos. Só que, desde que a ADSE foi eximida do pagamento aos hospitais públicos dos cuidados neles prestados aos seus beneficiários, naturalmente que os hospitais, assoberbados pela procura dos 75% da população do País sua utente sem opção, deixaram de se interessar por esta clientela. Claro que a acolhem, quando o caso se tornar complicado e subtil ou grosseiramente o funcionário ou pensionista for descartado do setor privado por se ter tornado um estorvo, tal como acontece com os segurados de responsabilidade limitada.
A primeira facada na ADSE foi dada em 2008 e de então para cá a faca ficou enterrada com desconhecidos autores a remexerem na ferida. Sob o manto protetor do Ministério das Finanças, nunca houve na ADSE subfinanciamento crónico, como no SNS. Não foram apenas as faturas dos hospitais públicos, mas até a fatura dos medicamentos que discretamente transitou da ADSE para o sempre esmifrado orçamento do SNS. Impossibilitados de retribuir por desempenho, abusados pelo rotativismo político das administrações, condenados à ineficiência, os hospitais públicos perdem médicos e enfermeiros na força da idade, acolhidos de braços abertos pelo setor privado ou pela emigração. Liberta do peso das faturas hospitalar e medicamentosa, a ADSE aumenta benefícios, celebra contratos com o novo setor privado hospitalar que passa a ser o seu mais acérrimo defensor. Sempre são 400 milhões de receita garantida.
Haveria alternativa? Claro que sim. A transformação em mútua devolveria à ADSE a justiça social que ela geneticamente distrai do SNS. Reporia as coisas como elas devem ser; ofereceria aos trabalhadores da função pública a possibilidade de tratarem como seu um bem que sempre prezaram, gerindo-o com responsabilidade, rigor, parcimónia e justiça. Libertaria o orçamento público do esperado peso de encargos em futuro próximo, ditados pela demografia e pela tecnologia médica.
Preferiu-se deixar tudo como estava, até se esquecendo o programa do Governo. É fácil, ninguém reclama, não há crise, encanou-se a perna à rã. Apenas uns tantos maduros se continuam a preocupar com estas coisas da justiça na distribuição dos bens sociais, com a eficiência do setor público e com o futuro do SNS.