Acolhimento em Portugal da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Estabeleceram-se duas superpotências fortemente armadas. Por um lado, o grupo Ocidental, liderado pelos Estados Unidos da América, baseado numa ideologia capitalista e na defesa dos direitos individuais, considerados de primeira geração e que traduziriam os valores da liberdade (os direitos civis e políticos). Pelo outro lado, um bloco de Leste, sob a influência da União Soviética, assente em ideais comunistas e na valorização, quase exclusiva, dos direitos coletivos (no caso, os direitos económicos, sociais e culturais), chamados de segunda geração, assentes no valor da igualdade.
Estava, assim, instalada a Guerra Fria, uma guerra diplomática imposta ao mundo, por via de uma ameaça permanente de destruição nuclear, e que haveria de perdurar até 1989.
É neste contexto internacional divisionista que surge, em 1948 no seio da ONU, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A Organização das Nações Unidas não quis, de forma declarada, tomar partido nesta querela, tendo, no texto da Declaração, teoricamente, atribuído igual importância e destaque aos dois grupos de direitos. Acontece que, o artigo 22.º da Declaração, ao estabelecer que os direitos económicos, sociais e culturais serão realizados “ […] graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país”, deixa claramente espelhada a sua preferência. De facto, parece que, manifestamente, é tomada uma posição: Os direitos civis e políticos seriam imediatamente implementados, ao passo que os direitos económicos, sociais e culturais seriam concretizados de acordo com as disponibilidades financeiras de cada Estado Parte.
A desvalorização destes direitos de igualdade, não agrada aos países comunistas e não é por acaso que a Declaração, tendo sido aprovada sem votos contra, contou com algumas (oito) abstenções sendo, como se compreende, a da União Soviética (URSS) uma delas.
Aqui convém realçar que, mesmo que aos dois grupos de direitos não tenha sido dado (e não foi) o mesmo destaque e consideração, o facto de todos eles constarem do mesmo documento, já se trata de um avanço considerável no tratamento dos Direitos Humanos. Pois, deste modo, pelo menos teoricamente, a Declaração difunde o conceito de que o ideal do ser humano livre só pode ser plenamente realizado se forem criadas as condições que permitam, a cada um, o pleno gozo dos seus direitos, tanto civis e políticos como económicos sociais e culturais. E esta ideia é de facto inovadora, já que, as Declarações anteriores à DUDH, não entendiam os direitos como fazendo parte de um núcleo indivisível, interdependente e inter-relacionado. Na verdade elas destacavam ora os direitos e liberdades individuais, assumindo uma filosofia liberal, como era o caso das Declarações Francesa e Americana, ou assumiam uma postura de prevalência dos direitos sociais, como aconteceu com a Declaração do Povo Trabalhador da URSS do início do século XX. A Declaração Universal dos Direitos Humanos introduziu a conceção de que os direitos económicos, sociais e culturais e os direitos civis e políticos se conjugam. Ao misturar as filosofias liberais e sociais realça, desta forma, que igualdade e liberdade estão mutuamente ligadas não acontecendo uma sem a outra.
Em Portugal, à época em que foi criada, a Declaração poderia ter sido sentida, pelo menos pelos opositores confessos ao regime de Salazar, como um sinal de esperança, mas tal não aconteceu, tendo sido convenientemente ignorada tanto pela Ditadura como pela “esquerda” unida, polarizada no MUD (Movimento de Unidade Democrática) e controlada pelo PCP (Partido Comunista Português).
Quanto ao ditador, que pretendia manter os pensamentos cativos e para quem a defesa dos Direitos Humanos era um assunto inexistente, terá sido grande o seu repúdio por um texto que estabelece, logo no seu artigo 1.º, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
Com esta expressão da fundamentalidade dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade fica muito clara a influência da Revolução Francesa, no conteúdo do documento. Deste modo, seria natural que Salazar tivesse aproveitado esta proximidade de princípios para achincalhar a Declaração e os direitos nela contidos. Mas não o fez. Não o fez, desde logo porque não quis afrontar os seus parceiros e principais mentores da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos: Os Estados Unidos da América e a Inglaterra. Na verdade, apesar de, tanto na Carta das Nações Unidas (artigo 1.º) como no texto da Declaração (artigo 15.º) se proclamar a autodeterminação dos povos, estes dois países foram, depois disso, durante largos anos, coniventes passivos com o nosso regime colonialista. Conivência que o governante nacional queria conservar. Assim, apesar da filosofia individualista e liberal, que Salazar tão veementemente gostava de criticar, se encontrar inscrita na Declaração, esta passou pelo regime e pelo seu séquito de forma discreta e incólume.
Quanto aos antifascistas opositores do regime, seria expectante que, dentro das suas possibilidades gráficas e organizativas (muito limitadas pela censura), tivessem dado ao documento um destaque considerável, usando-o para “confrontar” e abalar o regime com as novas posições internacionais. Mas, tal, também não ocorreu.
Não podemos esquecer-nos de que, no contexto da Guerra Fria e por motivos ideológicos, a Declaração não agradou inteiramente à URSS, que, por isso, não a aprovou (absteve-se, já o referi). Por outro lado, como sabemos, é comum ouvir-se dizer que, em Portugal, durante a ditadura, a maneira de ser oposição era ser comunista. E, de facto, era mais ou menos assim. Ora, se o país que representava o Bloco Comunista não se comprometeu com a DUDH, os seus seguidores também não o fariam.
Concluindo, o acolhimento em Portugal da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na altura em que foi proclamada, oscilou entre a “tolerância” internacionalmente comprometida da ditadura e um “entusiasmo” discreto e apagado da oposição.