Acabou de ser eleita líder parlamentar e teve logo uma grande tarefa, que foi o debate do Programa do Governo. Logo nesse debate percebemos que o primeiro-ministro parece pensar que tem maioria absoluta, ou então que está a tentar provocar eleições antecipadas rápidas, porque, na realidade, parece estar mais à vontade a fazer campanha eleitoral do que a governar. Esse é um dos aspetos que sobressaem deste primeiro debate, em que fala de diálogo, mas na verdade é um solilóquio. E depois, imediatamente a seguir ao debate, também percebemos que o primeiro-ministro acabou por enganar o país, dando a ideia de que ia fazer um brutal corte de IRS, mas não era nada disso, era um pequeno corte às cavalitas do corte que o anterior Governo do PS já tinha feito. O que é que podemos esperar da AD e do Governo, no Parlamento, nos próximos tempos, a partir desta primeira experiência?
De facto, o que nós temos assistido sistematicamente, no debate do programa do Governo, e já antes, nomeadamente na tomada de posse, é uma repetição da palavra diálogo, mas de forma um bocado vazia. Porque, na verdade, é repetida a palavra diálogo, mas todos os comportamentos, e até aquilo que se diz em vários discursos, é contraditório com a expressão diálogo. Desde ter incluído no Programa do Governo medidas dos programas eleitorais de outros partidos, escolhidas avulsamente e unilateralmente, sem nenhum tipo de conversa com os proponentes originais das medidas, depois de, no discurso da tomada de posse, o primeiro-ministro, associar a ideia de oposição a ser bloqueio, o que é pôr o principal partido da oposição numa situação de chantagem ou quase chantagem. E aquilo a que se assistiu na discussão do programa do Governo foi outra vez a mesma coisa. Fala-se em diálogo, mas o comportamento é todo ele ao contrário da atuação de diálogo.
Já antes tínhamos tido o episódio do presidente da AR, em que o partido do Governo optou por falar com o Chega e depois, como se viu, não tinha nenhuma solução de estabilidade e acabou por ser o Partido Socialista a resolver. E, portanto, o que eu acho que vamos ter, provavelmente, é um Governo a funcionar muito nesta linha. Ou seja, por um lado afirma e apela a um diálogo, por outro lado comporta-se, concludentemente, em sentido oposto, no sentido de “eu é que sou Governo, se vocês não querem instabilidade, resolvam”, quando é ao Governo que compete garantir uma solução de estabilidade. Não deve atirar essa responsabilidade para a oposição e, designadamente, para o maior partido da oposição.
No que toca concretamente à questão fiscal, aquilo que nós temos é que houve uma apresentação de uma medida de forma equívoca, não sei se propositada, mas provavelmente sim. Instado o Governo a responder, nem o primeiro-ministro nem o ministro das Finanças esclareceram o alcance do que estavam a propor – e aí tenho a certeza de que esse não esclarecimento foi propositado. Toda a comunicação social e quem acompanhou isto percebeu de uma maneira diferente e afinal aquilo que estava em causa era uma redução de IRS que é, na verdade, um pozinho acima da redução que o Governo do PS já feito e já fez desde o dia 1 de janeiro, do Orçamento de 2024. Dos 1.500 milhões de euros de redução de IRS, mais de 1.300 foram já feitos pelo Governo do PS e apenas pouco menos de 200 milhões serão feitos por este Governo. E, portanto, há pelo menos aqui um deixar criar a ideia na opinião pública e publicada muito diferente daquilo que é a realidade. E isso é um embuste.
E ainda duas notas sobre a questão fiscal. A primeira é que este engano não foi só no programa de Governo, foi na campanha eleitoral toda. Sistematicamente, falou-se em choque fiscal, em brutal redução de impostos e depois, afinal, a brutal redução de impostos são 200 milhões de euros. É na própria campanha que o engodo começa. Em segundo lugar, ao contrário do que foi dito por dirigentes da AD em campanha, e já repetido depois de serem Governo, entre IRC e IRS, na verdade a prioridade é o IRC. A prioridade não são os trabalhadores, são mesmo as empresas.
E essa análise, baseada nos factos do comportamento da AD, Governo e grupos parlamentares, acaba por colocar uma situação desafiante também ao PS e ao grupo parlamentar do PS. Na realidade, o PS enunciou, desde o princípio, a intenção de fazer uma oposição ao mesmo tempo firme, mas construtiva e responsável, e isso já é difícil quando os programas são tão diferentes e opostos em matérias essenciais, mas quando além dessa dificuldade política há também esta dificuldade comportamental, havendo uma certa falta de lealdade na forma como a AD quer lidar com o Parlamento, isso ainda torna a situação mais difícil e desafiante. Entretanto, nós vimos que o Secretário-Geral do PS anunciou, aqui no encerramento do Programa de Governo, um conjunto de iniciativas, o que significa que estamos a conseguir marcar o debate político, a antecipar-nos, e a concretizar, em termos práticos, essa oposição construtiva. Como é que o Grupo Parlamentar do PS vai gerir este desafio de querer ser uma oposição firme, responsável e construtiva quando vemos, que em termos políticos quer em termos comportamentais, uma atitude bastante longe dessa do outro lado?
É uma posição também muito responsabilizante do maior partido da oposição. Que eu acho que deve ser desenvolvida, basicamente, em três linhas. Por um lado, escrutinando; utilizando todos os mecanismos parlamentares para escrutinar a atuação do Governo. Por exemplo, no que toca exatamente a esta questão fiscal, já pedimos um debate de urgência para esta quarta-feira, que é uma figura regimental que serve exatamente para estas situações, que aparecem e que não são previstas, para obrigar o Governo a vir dar explicações sobre as situações que o exijam – e esta seguramente o exige.
A segunda linha tem a ver com o que o Secretário-Geral disse, que é apresentar as nossas propostas. Já foram avançadas algumas dessas propostas que, em tempo muito curto, pretendemos apresentar e que estão no nosso programa eleitoral, trabalhando também no sentido de fazer passar as nossas propostas, naturalmente dentro daquilo que é a correlação de poderes na AR (onde a AD tem menos deputados do que o conjunto da esquerda e depois temos os 50 deputados do partido Chega que vão oscilando nas suas votações, como bem se viu na eleição do presidente da AR).
A terceira dimensão tem a ver com a posição que temos relativamente ao Governo. O Governo é quem tem a responsabilidade de garantir a estabilidade e não vale a pena atirar essa responsabilidade para cima do PS. A AD, que formou governo com a maioria mais relativa, provavelmente, desde o 25 de Abril, com um empate de deputados entre a bancada do PSD e a do PS, é que tem que ver com quem quer e como quer garantir essa estabilidade. E não vale a pena atirar isso para cima do PS ou pretender obrigar o PS a viabilizar soluções que não são as suas. O PS será fiel ao seu programa eleitoral, que teve praticamente tantos votos como a AD e, se calhar, em relação ao PSD, até teve mais votos. Naquelas propostas do Governo em que possa haver alguma convergência poderemos viabilizar, naquelas que sejam contrárias ao nosso programa eleitoral vamos obviamente rejeitar. O que não podemos fazer é não sermos fiéis às nossas propostas, até porque este governo é um governo vincadamente de direita, com uma visão muito liberal para a economia e para os serviços públicos, com prioridades que são muito diferentes das prioridades do PS. E, portanto, não vale a pena invocar uma responsabilidade para tentar forçar o PS a aprovar coisas que traiam as suas medidas e o seu programa eleitoral. Noutras circunstâncias, de natureza institucional, de soberania, com certeza que cá estaremos como oposição responsável que somos e que já demonstramos no episódio da eleição do presidente da AR, em que viabilizamos a eleição do presidente proposto pela AD e fizemo-lo porque é uma matéria institucional e não programática, e para permitir até que o sistema continuasse a funcionar. Foi uma grande prova de responsabilidade, que continuaremos a dar nas matérias em que, ou haja convergência ou tenham natureza institucional. Nas matérias programáticas que não vão ao encontro do nosso programa eleitoral, isso não acontecerá.
Na intervenção de encerramento do debate do programa de governo, o Secretário-Geral do PS anunciou cinco iniciativas parlamentares. O que é que estas iniciativas significam quanto à orientação do GPPS nos próximos tempos? Pode dar mais alguns elementos sobre o desenho das propostas e calendário?
As iniciativas anunciadas pelo Secretário-geral, e que muito em breve darão entrada no Parlamento, já constavam do programa eleitoral do PS e têm em comum o facto de impactarem de forma muito imediata a vida das pessoas: a redução do IVA da eletricidade para 6%, isto é, para a taxa reduzida abrangendo mais de três milhões de portugueses; o alargamento do Complemento Solidário para Idosos, excluindo os rendimentos dos filhos da determinação dos recursos dos requerentes; a eliminação das portagens das “ex-SCUT” em territórios de baixa densidade, designadamente na A28 no Alto Minho, na A13 e A13-1 no Pinhal Interior, na A23 e A25 na Beira Interior, na A4 e A24 em Trás-os-Montes, e na A22 no Algarve; fazer com que o apoio ao alojamento estudantil, hoje pago aos estudantes bolseiros, chegue também às famílias de classe média até ao 6º escalão de IRS. E, por fim, mas não menos importante, aumentar a despesa dedutível com o arrendamento até atingir os 800 euros.
São medidas que procuram responder às preocupações reais e diárias das pessoas e que, por isso, acreditamos que contarão com os votos favoráveis dos restantes partidos. Numa democracia, não há partidos que trabalham e outros que deixam trabalhar. Estar na oposição não significa estar resignado e o PS, com estas cinco primeiras iniciativas, deixa bem claro ao que vem e o contributo ativo que quer ter para a melhoria das condições de vida das pessoas.
O Governo achou que, com a inclusão avulsa e unilateral de medidas dos programas eleitorais dos outros partidos “vendia” uma falsa ideia de diálogo e de abertura que na verdade não existiu. Depois, ensaiou um papel de vítima para mascarar a sua própria incapacidade para governar. Como disse na altura, e volto a sublinhar, não viabilizar uma moção de rejeição permitindo que o Governo inicie funções não significa que fomos de férias. Significa tão somente que o PS é a oposição responsável que os eleitores esperam que seja. Mas não estamos obrigados a viabilizar tudo. Essa ideia que tem sido reiterada por várias vozes do governo é, não só, absurda no plano político e incorreta no plano constitucional, como também muito arrogante.
A visão de sociedade dos socialistas implica uma forte atenção ao Estado Social, porque é a solidariedade que dá o cimento da ligação entre liberdade e igualdade. Assim sendo, é preocupante a falta de compromisso do programa de governo da AD nessa matéria, designadamente quanto aos serviços públicos, que são a forma concreta como o Estado Social aparece a muitos cidadãos. Como vai o GPPS posicionar-se em relação a essa grande área de preocupações?
É certo que a visão do PS sobre o Estado Social, e sobre a importância dos serviços públicos como garantes de um país mais justo e solidário, nos coloca numa posição diametralmente diferente daquela em que a AD se posiciona.
Sem prejuízo dessas visões distintas, também aqui, fica evidente a falta de coerência entre a AD candidata às eleições e a AD governo em funções. Falámos da questão do IRS, que é de facto gritante, mas há outros aspetos em que o Programa de Governo nos parece propositadamente equívoco, para “disfarçar” o objetivo de enfraquecer os serviços públicos e o Estado Social.
Basta fazer um simples exercício de comparação entre o que constava do programa eleitoral para os profissionais de saúde – “incentivos laborais, desenvolvimento de carreiras, flexibilidade de horários de trabalho, diferenciação profissional” – e o que podemos ler no Programa de Governo – uma vaga referência à progressão e formação ao longo da vida, sem qualquer resposta para o problema da carência de profissionais. Sobre o plano de emergência para o Serviço Nacional de Saúde prometido para os primeiros 60 dias do novo Governo, ficamos sem saber uma linha.
O mesmo se passa com os professores, para os quais não há qualquer calendarização quanto ao início da recuperação integral do tempo de serviço e se refere uma “simplificação do sistema remuneratório”, sem mais esclarecimentos.
Já sobre as forças de segurança, o texto não podia ser mais vago, uma vez que não há qualquer referência à equidade com outras funções e atividades equivalentes, em especial as que comportam também risco e penosidade.
Quando a palavra que melhor caracteriza a atuação de um executivo acabado de tomar posse é “ambiguidade”, temo que estejamos falados sobre o que podemos esperar para o seu futuro.