Ricos e pobres “a aprenderem a ser homens”
Para garantir confiança ao investidor, o Estado comprometeu-se a não interromper o financiamento a meio dos ciclos de ensino. O que significa que no final de um ciclo, caso exista alternativa pública, o financiamento público cessa. Aparentemente tudo claro. Só que o Estado regulador, nem sempre regula bem. Por inércia ou por falta de coragem para cumprir a lei sabendo quanto dói qualquer mudança, governos houve que negligenciaram a situação, deixando que, em algumas localidades onde existe abundante e qualificada oferta de professores, coexistissem financiamentos a privados com escolas públicas de qualidade, mas subutilizadas.
Quando um governo decide repor o cumprimento da lei, aqui d’El Rei que nos querem destruir! Não foi fácil destrinçar a meada: no início, muita gente pensava que o Estado financiava o privado, de forma semelhante ao que faz com o ensino público. Como vivemos no meio de mitos, tudo o que é privado seria melhor que o público, colégios, tal como clínicas. Ao leigo não é fácil distinguir entre resultados excelentes de uma população escolar selecionada por localização, rendimento e acesso à cultura e os resultados esforçados da escola pública, por lei instalada próxima de todos, ricos e pobres, acolhendo crianças de meio instruído e de meio marginal, bem e mal comportadas, mas todas tendo igual direito à instrução pública, a fazerem-se homens e mulheres. Naquela ilusão da maior qualidade do privado assenta o famoso argumento da liberdade de escolha. Na verdade a liberdade de escolha só existe quando todos os utilizadores estão em circunstâncias iguais. Acresce que a escolha a expensas do Estado só existe entre escolas iguais. Uma escola pública não pode recusar alunos, seja qual for o pretexto, claro ou obscuro. Oferece um produto que não é igual ao da escola privada, tem servidões públicas, acolhe todos. Servidões que retratam o país real, realidade desigual, por vezes chocante, mas que educa todos: os afluentes e os menos afluentes, os mais e os menos dotados, os mais e os menos informados. Esse convívio com todas as classes na escola pública é a base do elevador social que permite ao filho da porteira ou do africano servente na construção civil subir na vida, tal como os filhos dos doutores. Esta realidade desperta as consciências, molda as personalidades, forja a cidadania. E mesmo assim bem sabemos como a origem social influi no rendimento escolar. Se a escola privada fosse paga pelo Estado nos mesmos termos da pública, duas coisas aconteceriam: a primeira, é que os alunos ricos frequentariam escolas privadas altamente diferenciadas e multiplicadas em zonas de afluência económica, os defensores do mercado rejubilariam; aos alunos pobres restaria a escola pública cuja qualidade se degradaria, por os melhores professores e os melhores alunos delas fugirem. Escolas pobres para alunos pobres, gerando-se resultados escolares ainda mais desiguais que os que já temos. A segunda consequência seria o Estado gastar o dobro do que hoje gasta, pagando duas vezes: à escola pública e ao colégio privado. Para afinal tornar o país ainda mais desigual.
Este modelo de organização dos deveres públicos de ensino é certamente recusado por quase todos, à exceção da pequena elite que entende ter nascido para mandar e que rejubila com as desigualdades que considera geradoras de progresso. Estou certo de não ser este o modelo que se ajusta à doutrina do Papa Francisco. Tal como não tenho dúvidas de que muitos dos agora revoltados não desejam ter os benefícios do ensino privado pagos por impostos, incluindo o IVA, afinal caindo sobre todos, eles e os pobres. Apenas estão descontentes por terem mudado as regras do jogo. Um jogo que vinha detrás, viciado por árbitros que não mereciam ser juízes em causa tão sensível. Sabem que não têm razão.
O Governo tem aqui uma tarefa dura, porventura irá investir mais na informação a dar. Mas não pode recuar.