QUEM NOS PROTEGE?
O acórdão do Tribunal da Relação do Porto sobre violência doméstica, noticiado pelo JN, da autoria do juiz desembargador Joaquim Neto de Moura e assinado pela juíza desembargadora Maria Luísa Arantes, provocou uma generalizada e legítima indignação. A polémica estalou nas redes sociais e rapidamente chegou às Associações Feministas, à Ordem dos Advogados, à opinião pública e publicada, e levou o Conselho Superior da Magistratura a emitir um comunicado.
O caso, julgado em primeira instância pelo Tribunal de Felgueiras, é, em síntese, este: uma mulher casada tem uma relação extraconjugal a que põe termo ao fim de dois meses. O ex-amante persegue-a, ameaça-a e vai contar ao marido. O casal divorcia-se. O amante sequestra a mulher e o ex-marido agride-a com uma moca de pregos. Os arguidos foram condenados com pena suspensa. O Ministério Público recorre para a Relação que confirma a sentença com o controverso acórdão.
Numa linguagem anacrónica, o juiz relator considera que “este caso está longe de ter a gravidade” de outros, porque “a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente”. Em vez de fundamentar a decisão na Constituição e na lei portuguesa e nas Convenções internacionais que Portugal assinou, designadamente, a Convenção de Istambul, o senhor juiz invoca a Bíblia e o Código Penal de 1886, refere práticas de países que não respeitam os direitos humanos, para concluir que “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”.
Recolhi do Facebook algumas perguntas que deixo à reflexão dos leitores. O adultério da mulher tem um valor distinto do adultério do homem? Este acórdão não contém um incitamento à violência de género que a lei criminaliza? Perante quem responde o juiz? Segundo o comunicado do Conselho Superior da Magistratura, órgão de disciplina dos juízes, “os tribunais são independentes e os juízes nas suas decisões apenas devem obediência à Constituição e à lei”. E acrescenta que “os juízes em funções nos tribunais superiores não se encontram sujeitos a inspeções classificativas ordinárias”.
E o que acontece quando os juízes não obedecem à Constituição e à lei? Quem nos protege? Os tribunais são um órgão de soberania. Tal como o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo. Tal como estes, os juízes representam o Estado. Quando um juiz atenta contra o princípio fundamental do respeito devido à dignidade da pessoa humana, pilar fundamental do Estado democrático, é a própria ordem democrática do Estado que fica em causa.
O senhor juiz pode ter a cabeça cheia de mitos e estereótipos sobre o comportamento da vítima e do agressor em casos de violência doméstica. Mas, no exercício da função judicial, não pode veicular preconceitos que atentam contra a dignidade pessoal da vítima e servir-se do seu estatuto para promover uma representação social contrária à lei e à Constituição.
Os estudos revelam que o machismo mata. Todos os anos dezenas de mulheres são assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros. Repito a pergunta: se um juiz sentencia desobedecendo à Constituição e à lei o que lhe acontece?