Opinião: A social-democracia para além da “terceira via”
(Artigo de Opinião originalmente escrito para o Publico)
Não é preciso afastarmo-nos da esquerda nas políticas para, com os resultados obtidos, convencer muitos eleitores do centro.
I
Num momento em que social-democracia está em forte retrocesso político em toda a Europa, o Partido Socialista em Portugal é uma exceção. Sem pretender dar lições a outros partidos da família social-democrata – cada partido opera num contexto nacional com oportunidades e constrangimentos específicos –, precisamos compreender o que nos permite ter hoje níveis de apoio popular elevados.
Como venho defendendo, a decisão tomada em 2015 de procurarmos construir com a esquerda parlamentar uma solução de governo maioritária, alternativa à viabilização de um governo de direita, pode ter salvo o PS do destino de outros partidos europeus da mesma família política.
A solução traduziu-se num programa político que restituiu a esperança de uma vida melhor a muitos portugueses. A configuração inédita da nova maioria enriqueceu a democracia, trazendo para a esfera governativa partidos que representam cerca de um milhão de portugueses. Mas foi o seu programa, que promoveu a recuperação de rendimentos e direitos, o crescimento económico e a criação de emprego, por um lado, e o respeito por quem trabalha ou trabalhou uma vida inteira, por outro, que gerou o nível de apoio de que o PS dispõe atualmente.
Teria sido bem diferente se tivéssemos feito o que alguns, mesmo dentro do PS, consideravam natural: a viabilização de um governo minoritário do PSD/CDS. Nesse caso, estaríamos hoje, certamente, na posição de outros partidos social-democratas europeus e incapacitados de disputar a liderança governativa em Portugal. Sobretudo, nunca teria sido possível construir com o PSD e o CDS o programa de mudança económica e social e de comprometimento com o Estado social público e universal, base de uma comunidade decente, que foi possível – apesar das diferenças com estes partidos – com o apoio do PCP, BE e PEV.
Num momento em que o PS reflete sobre o caminho a trilhar no futuro, temos não só de olhar para o que fizemos desde 2015, mas ir mais longe – para evitar o mesmo destino de muitos partidos irmãos – e refletir sobre o que aconteceu à social-democracia europeia.
II
Nos anos noventa, o centro-esquerda encontrou um paradigma de aparente renovação e de superação das derrotas sofridas nos anos oitenta, conhecido por “terceira-via”, que foi até à Grande Recessão de 2008 a referência principal da social-democracia na Europa.
Do ponto de vista ideológico e programático, a terceira-via tentou adaptar o papel do Estado às dinâmicas de um capitalismo global, repensando a centralidade e o significado de princípios como a igualdade, a liberdade e a solidariedade.
Do ponto de vista do papel do Estado, aceitou, por um lado, a introdução generalizada da lógica mercantil nos serviços públicos e, por outro, que os mercados fossem os únicos motores do crescimento económico. O Estado devia limitar-se a criar as condições para que os mercados funcionassem, com regulação minimalista, colhendo o dividendo orçamental para financiar as funções do Estado.
Do ponto de vista eleitoral, promoveu um discurso que visava explicitamente as classes médias mais qualificadas e as suas aspirações de mobilidade social, em detrimento das preocupações com os trabalhadores industriais dos setores tradicionais.
Mas, tal como a esquerda dos anos setenta e oitenta foi forçada a fazer uma autocrítica, hoje impõe-se fazer uma avaliação crítica da terceira-via. No plano ideológico, a fronteira entre a esquerda e a direita foi demasiado esbatida, e a corrida para o centro descaracterizou o nosso ideário ideológico, programático e linguístico, deixando que muitas bandeiras fossem apropriadas por forças à nossa esquerda.
No plano do modelo de desenvolvimento, a terceira-via deu prioridade à contabilidade do crescimento económico, independentemente do seu padrão: todo o crescimento da economia e do emprego era positivo, até porque gerava receita. A terceira-via abraçou um modelo de crescimento demasiado assente no imobiliário e no setor financeiro. Sim, sofreu o impacto da Grande Recessão; o problema é que participou na construção do modelo que a causou. Quando a bolha imobiliária estalou e o setor financeiro colapsou, o dividendo orçamental desapareceu e os governos tiveram de resgatar os bancos e cortar nos serviços públicos. E a terceira-via, que dependia do sucesso desses setores, caiu com eles.
No plano eleitoral, a terceira-via considerou garantidos os votos dos trabalhadores e que era possível falar apenas para as frações qualificadas das classes médias. Em algumas versões, promoveu mesmo o fim da aliança entre operariado e diferentes segmentos da classe média que dera coerência ideológica e força eleitoral à social-democracia.
Hoje, com raras exceções, os partidos social-democratas europeus são praticamente partidos das classes médias mais qualificadas. Isto não resulta apenas das transformações no mundo laboral. É verdade que o operariado industrial tem hoje um peso menor, mas a expansão do setor terciário gerou uma enorme massa de trabalhadores. Tantas vezes sujeitos a emprego precário, mal pago, rotineiro e sem expectativas de promoção, estes constituem a maioria do eleitorado, enquanto os profissionais liberais e as classes médias mais qualificadas continuam a ser uma minoria. Isto ajuda a explicar por que razão são poucos os partidos social-democratas que, na Europa, ultrapassam os 20% de apoio eleitoral. Por negligência ou escolha, a social-democracia deixou de representar os eleitores com baixas e média-baixas qualificações. Em muitos casos, passou a olhá-los como “deploráveis”.
III
Esta atitude é bem visível nas análises sobre o populismo na Europa. A ascensão deste, em particular o de extrema-direita, coloca desafios muito sérios, mas é, antes de mais, um sintoma de outros problemas: as regressões económicas e sociais das últimas décadas produziram justificadas reações de medo e ansiedade em grupos menos preparados para lidar com mudanças que não controlam e mais vulneráveis aos seus efeitos destruidores.
Combater o populismo sem tentar, antes, perceber o que o alimenta e, depois, sem procurar saber se e como é possível corrigir as suas causas, faz da crítica ao populismo pouco mais que mera projeção da arrogância das elites. Há mais de uma década que esta atitude impera no centro-esquerda e, no entanto, o populismo não parou de crescer. Seria bom repensar a forma de combatê-lo.
Esta análise não implica nenhuma “cedência” ao populismo. Ironicamente, quem cede são os que aceitam como clivagem central a distinção entre sociedades “abertas” e “fechadas”, pela simples razão que é precisamente essa a dicotomia que os populistas promovem. Centristas e populistas partilham a mesma visão de um mundo dividido entre um pólo aberto e outro fechado, divergindo apenas na valorização feita: onde centristas veem sectores dinâmicos e cosmopolitas, populistas veem elites corruptas; onde os primeiros veem grupos manipulados, os segundos veem o povo traído pelas elites. Mas ambos concordam que a clivagem esquerda-direita – que durante décadas deu identidade programática, autonomia estratégica e utilidade política à social-democracia – deve ser desvalorizada.
O resultado está à vista por toda a Europa: quando a social-democracia se demite de representar os que mais precisam do Estado como instrumento de desenvolvimento e proteção, os partidos populistas ocupam esse lugar; quando a social-democracia passa a falar sobretudo para os grupos ganhadores da globalização, ela deixa de ser politicamente necessária: qualquer partido centrista, liberal ou conservador pode fazê-lo com mais convicção.
IV
A esquerda soube evoluir em relação aos anos setenta e oitenta, mas é agora preciso que o saiba fazer em relação aos anos noventa e dois mil. Precisamos de olhar com humildade para os problemas, em vez de ceder à tentação de replicar modelos passados.
O mais apelativo da “terceira-via” era querer compatibilizar o que via como o melhor de dois mundos: do lado da produção, deixar os mercados funcionarem sem freios; do lado da distribuição, caberia ao Estado o papel de (mesmo que de forma punitiva) compensar os perdedores. Há vinte anos atrás talvez fosse possível acreditar que uma separação tão clara entre produção e distribuição de riqueza poderia ser eficaz e sustentável. Hoje, face ao crescimento dependente de atividades voláteis, à incapacidade geral para travar o aumento de desigualdades, ou à falta de credibilidade da social-democracia para proteger os mais vulneráveis, hoje é muito difícil aceitar essa divisão.
É, assim, urgente trabalhar – sem os fantasmas inúteis da “radicalização programática” e do “anti-capitalismo” – num diagnóstico sério sobre os desafios que a transformação do capitalismo e as dinâmicas laborais e demográficas colocam à social-democracia. Precisamos de corrigir os excessos liberalizadores cometidos nos últimos 20 anos e repensar o papel do Estado nas políticas de crescimento, regulação e inovação.
Em vez de esperar que os mercados destruam e criem, limitando-se a política social a apanhar os “cacos” gerados pela destruição criativa, o Estado necessita de melhor intervir previamente nos mercados, desenhando-os segundo critérios de justiça e eficácia. Trata-se, nuns casos, de limitar os mercados, como nos serviços públicos universais de educação e saúde (forçando o capital privado a investir em setores transacionáveis); trata-se, noutros, de limitar a ação dos mercados (no trabalho, na habitação, na energia, no ambiente) através de regulação inteligente; trata-se, noutros casos ainda, de construir mercados através de políticas de inovação onde o Estado deve ser capaz de definir missões coletivas, coordenando a atividade dos privados na resolução de problemas económicos, ambientais e sociais.
Se, por exemplo, o Estado português definisse como missão libertar o país da dependência de combustíveis fósseis num dado horizonte temporal e concentrasse recursos e incentivos aos privados para esse fim, não só estaria a dar resposta a problemas concretos (défice da balança de bens e qualidade de vida) e a potenciar os recursos naturais, como criaria novos mercados e oportunidades de inovação para o tecido produtivo, gerando emprego com salários mais elevados.
Esta não é uma agenda anticapitalista, mas também não é o liberalismo económico. É uma agenda social-democrata para o século XXI.
V
A relevância de toda esta discussão para o PS é dupla. Primeiro, o sucesso deste governo e desta maioria nada deve à terceira via. O PS não precisou de mercadorizar os serviços públicos, de liberalizar o mercado laboral, de diabolizar os “radicalismos programáticos”, de estigmatizar os mais fracos ou de ignorar os abusos do mercado para obter bons resultados sociais, económicos e orçamentais e para merecer o apoio popular.
Em segundo lugar, o PS deve evitar cometer os erros que contribuíram para que, em muitos países, se alienasse parte do eleitorado tradicional da social-democracia. É essencial, no plano ideológico, saber os valores em que acreditamos, evitando uma excessiva diluição das fronteiras com outros partidos; no plano programático, definir como esses valores se devem traduzir em políticas públicas de desenvolvimento económico e de proteção social; no plano eleitoral, saber quem queremos representar, compreendendo que o projeto social-democrata depende da construção ativa de uma maioria que vá dos trabalhadores menos qualificados às novas classes médias do privado e do público, da indústria aos serviços, do interior às cidades.
É o debate e a resposta a estas questões que garante a nossa autonomia e identidade, e não a discussão sobre se o PS deve ser “moderado” ou “radical”, que não só é espúria, como esvazia o debate que realmente interessa ter; sobretudo, é irrelevante para as pessoas. Para elas, o essencial é se as políticas são capazes de traduzir as suas intuições morais de justiça e de responder às suas aspirações materiais, individuais e coletivas. Essa tem sido a força deste governo e desta maioria, que nestes anos demostrou que não é preciso afastarmo-nos da esquerda nas políticas para, com os resultados obtidos, convencer muitos eleitores do centro de que o nosso projeto é mesmo aquele que lhes dá esperança de viver melhor em Portugal.