O EVANGELHO SEGUNDO LÁZARO
Jesus e Lázaro são as personagens centrais do romance. Jesus é apresentado por Lázaro através do filtro da amizade que não põe em causa a verdade declinada nos textos bíblicos. As vidas daqueles que se cruzam e confundem com as de Lázaro e Jesus coexistem em diferentes universos culturais e convergem para a construção de “uma história feita de ses”, porque assim é a “vida do homem mortal”, segundo Lázaro, o “narrador deste texto”, uma longa carta de 450 páginas, dirigida ao “neto adorado”, pois só a ele pode legar o seu conhecimento da vida e obra de Jesus.
A narrativa começa e termina num tempo presente, desenvolvendo-se em sucessivos flashbacks e flashforwards e abrangendo cinquenta sete anos da vida do narrador que, logo no início, antecipa uma síntese do que vai ser narrado: a amizade de Lázaro e de Jesus, centro irradiador de todas as pequenas histórias que ilustram vivências e ensinamentos.
A morte de Jesus e a ressurreição de Lázaro são os dois acontecimentos-chave que mudam o curso da história. A ressurreição de Lázaro desencadeia uma espécie de abalo sísmico. No próprio ressuscitado, na sua família e na comunidade, induzindo uma avalanche de emoções, superstições e tensões de vária ordem. “Ninguém que morre sabe que está morto”, pensa Lázaro, e acha desconcertante o facto de, durante todo o tempo que esteve no túmulo, “o Sol ter continuado a nascer e a Lua a pôr-se no céu”. Ver morrer Jesus é para Lázaro pior do que a sua própria morte. É não só uma perda irreparável, mas também o fim de tudo aquilo em que acreditou e pelo qual estava disposto a dar a vida. Ao ver Jesus pregado na cruz, conclui que “o seu sangue já não cai apenas sobre a terra seca aos pés da cruz, mas sobre todas as esperanças que alguma vez tive”.
O Evangelho segundo Lázaro é um romance singular, em que Richard Zimler vai cerzindo com audácia criativa a dimensão intangível de um universo onírico, alternando episódios luminosos com episódios sombrios, a provar que “a banalidade do mal” de que fala Hannah Arendt é inerente ao ser humano. As desigualdades sociais e as discriminações de vária ordem são temas que mantêm atualidade e pertinência. O papel da mulher na sociedade é desvalorizado. Apenas a sua função reprodutora é socialmente reconhecida. Marta, irmã de Lázaro, sempre que olha para a filha adotiva “sente no ventre o vazio estéril que lhe fez perder a leal afeição do marido e a tornou inútil aos olhos da própria família”. Como ainda hoje, também naquele tempo, o acesso à educação era mais difícil para elas que para eles. Quando Lázaro nasceu, Mia, sua irmã, deixou de estudar porque, segundo o pai, o nascimento de um rapaz tornara desnecessária a educação dela.
Dois mil anos depois, persistem as injustiças sociais, as discriminações de género, a desvalorização do trabalho braçal, a importância do parecer em detrimento do ser… Há domínios em que o mundo raramente pula e pouco avança.