NA MORTE DE ALMEIDA SANTOS
O seu grande vício era o trabalho. E, nesse vício, cabiam outros vícios: o direito, a política, a escrita. No final dos anos 70, fiz com ele uma campanha eleitoral. No Palácio do Rato, Almeida Santos fechou-se, de dia e de noite, no gabinete que dá para o jardim e, com a sua caneta de feltro preta, da marca “Futura”, escreveu – sozinho! – o programa de governo. Depois, declinou-o em inumeráveis e densos opúsculos para serem distribuídos ao eleitorado atónito: O PS e a Saúde; O PS e a Agricultura; O PS e a Educação; O PS e as Finanças; O PS e a Economia; O PS e o Emprego, O PS e os Transportes; O PS e a Cultura; O PS e o Mar; O PS e a Defesa Nacional; O PS e a Política Externa; O PS e os Jovens; O PS e as Mulheres; O PS e os Deficientes – e ainda outros, muitos outros. Trabalhava metodicamente, afincadamente, afortunadamente, infatigavelmente – e encontrava nisso o maior prazer da vida. Era um epicurista do labor. Um enciclopedista das leis.
Nos cargos que ocupou (ministro de muitas pastas, deputado, presidente da Assembleia da República, Presidente do PS),foi sempre o que era e como era, com as suas qualidades e alguns defeitos delas. Ele dizia que tinha sido sobretudo um legislador. Era esse o seu balanço, a sua proeza, o seu orgulho (“ Dificilmente terá havido um legislador que tenha feito tantas leis e tão rapidamente. Fiz dezenas de leis no próprio Conselho de Ministros, eram aprovadas logo ali e publicadas”). Foi também um conciliador irresistível, um mediador insistente, um negociador invencível.
Era um político mais argumentativo do que instintivo, mais analítico do que sintético. Isso fazia dele um orador que conversava com as pessoas, que expunha e não impunha. Havia no que dizia jurisprudência, literatura, retórica, dialética – e uma graça leve e coimbrã. Usava palavras raras ou em desuso e com elas cunhou (era este um verbo de que gostava) fórmulas que fizeram época. Lembram-se quando, perante sondagens que anunciavam uma derrota estrondosa para a candidatura de Mário Soares a Presidente da República, ele, no jantar republicano de Alenquer, atirou: “Se Soares não for eleito, é porque o país ensandeceu”?! Viu-se, passado algum tempo, que o país não tinha ensandecido…
A sua ligação política e pessoal a Soares foi constante e resistiu a todas as derrotas, a todas as vitórias, a todas as ameaças, a todas as intrigas, a todos os equívocos, a todas as mudanças. Discordavam às vezes no que era fácil e circunstancial para concordarem no era difícil e decisivo. Sempre achei que o que aconteceu entre Soares e Zenha deu a Almeida Santos um ensinamento que aproveitou muito bem.
António Almeida Santos era um homem que tinha os ideais, os gostos, os hábitos, os conceitos, os preconceitos da sua geração e do seu meio. Era fiel à sua biografia: à Beira, onde nasceu, à Coimbra, onde estudou, ao Moçambique onde se fez advogado e se afirmou como oposicionista. Era sobretudo fiel a Coimbra – “à encantada e quase fantástica Coimbra”, de que falava Eça de Queiroz. Era fiel à poesia de Coimbra, à sua música (adorava cantar o seu Fado), ao seu sentimentalismo, à sua boémia. Ou à recordação disso tudo. Gostava do que gostam os homens que nascem na província: comida honesta, conversa calorosa, amizades duradouras, roupas tradicionais, segurança financeira, escritores clássicos, espetáculos ligeiros, viagens culturais.
Almeida Santos foi um dos raros políticos que escreveram sobre o que fizeram, viveram e conheceram. Os seus livros ficam a falar por ele. E fica-nos também a memória dos seus gestos de afeto, de generosidade, de gentileza, de atenção aos outros.