Morte assistida
Na minha vivência, em apenas um caso a questão se podia colocar: amiga com pouco mais de sessenta anos, adorando a vida e sofrendo horrores na fase terminal. Ignoro se houve qualquer intervenção, embora ela me não chocasse. Como ignoro o que pensava a minha amiga naqueles momentos terminais, por ela mal se poder exprimir, não sei se no seu balanço de preferências teria preferido mais alguns dias horríveis, ou terminar ali o sofrimento. Noutro caso, um amigo que partiu quando muito dele havia a esperar. Em grande sofrimento, chegou a bramar aos colegas que lhe administrassem um soro letal, para logo a seguir mostrar que estava ainda agarrado à vida. Outro amigo partiu voluntariamente, tendo em devido tempo solicitado os ingredientes. Em plena consciência, pois a sua vida, com fraturas irreversíveis da medula prometia ser realmente um inferno. Positivista, organizou-se e desembaraçou-se ele próprio do horror que lhe estava destinado. Tive a sorte de perder meus Pais ambos em avançada idade. Apesar de não praticarem uma vivência religiosa, nenhum deles me pediu que os ajudasse a morrer mais depressa. Pelo contrário, apesar de já pouco satisfeitos com o segmento final da vida que levavam, parecia a ela se agarrarem.
Tudo evidências anedóticas, como se diz na linguagem da ciência. O suficiente para me encherem de dúvidas sobre a morte assistida. Nas minhas dúvidas registo os casos-limite: o jovem de Galiza que reconhecendo a miséria que para si e para os seus era viver, pediu e obteve uma morte assistida. Registo ainda como o nível socioeconómico influi na decisão: uma pessoa afluente pode contratar a sua morte assistida com uma clínica privada na Suíça. Um remediado, muito menos um pobre, nunca terão essa possibilidade. Registo também os riscos de fraude a uma potencial lei despenalizante. A novelística dos nossos prosadores do quotidiano, sobretudo rural, está cheia de casos de filhos a lamentar “nem o pai morre, nem a gente almoça”. Ou o “Alma Grande” da novela do Torga, chamado pelos filhos para assistir na morte o sofrimento do pai ou da mãe, e já agora, apressar as partilhas. Quanto mais choradas, mais abençoadas.
Como quase sempre acontece, o tema surge sem outra prioridade que a do sensacionalismo. Com o habitual combinação de humanismo e hipocrisia. A Bastonária dos Enfermeiros que ousou desvendar práticas, recuou logo de seguida. O Bastonário dos Médicos arguiu a impossibilidade fáctica, pela contradição com o juramento hipocrático. O ministro dos enfermeiros e médicos, como não podia deixar de ser, pediu rigoroso inquérito aos seus serviços.
Não sei se o tema vai durar na opinião pública. O que sei é que ele é divisivo, não entre esquerdas e direitas, mas dentro delas. Mais ainda que a IGV. Pedir um referendo parece-me a pior das soluções, por atear um fogo de emoções a um tema que não amadureceu o suficiente para sobre ele cada um de nós poder formar opinião sustentada e convicta. Com vossa tolerância, vou ser um pouco hipócrita: deixem as coisas como estão!